Neoplatonismo e pensamento oriental: uma visão geral

O diálogo de Plotino, Porfírio, Jâmblico e Proclo com ideias de origem persa, indiana, caldeia e egípcia, entre outras

Sarcófago em que estariam representados Plotino e seus discípulos | imagem: Wikimedia Commons

Uma primeira versão deste trabalho foi apresentada como comunicação no V Simpósio Internacional do Grupo de Pesquisa Delphos, em abril de 2023, na Universidade Mackenzie

Introdução

Para a historiadora Frances Yates (1995), o mundo greco-romano do século II EC foi marcado pela condição de ser um período em que a razão era completada pela busca de respostas existenciais baseadas na intuição, na mística e na magia. A filosofia aparecia como uma gnose, ou seja, um saber religioso e iluminativo, transparecendo isso no hermetismo enquanto uma religião filosófico-gnóstica, ainda que carente de cultos e liturgia. Os homens dessa época também acreditavam que, quanto mais antiga uma tradição de sabedoria, mais pura e próxima dos deuses estava, daí o seu interesse tanto pelo pitagorismo quanto pelos “bárbaros”, como indianos, persas, caldeus, egípcios. E inclusive o Império romano multicultural permitia a conexão com cultos orientais, especialmente os do Egito, sob a crença do contato de filósofos gregos com a sua sabedoria, assim como a crença no valor do conhecimento mágico-religioso dos sacerdotes egípcios.

O neoplatonismo coloca-se na esteira dessa tendência mística, sincrética e oriental mais ampla, e possivelmente a aprofunda, enquanto uma síntese entre a filosofia helênica e as tradições orientais. Ele foi uma corrente filosófica de índole mística da Antiguidade tardia, desenvolvida aproximadamente entre os séculos III e VI EC, sob o influxo da helenização cultural (cf. Reale, 2008, p. 24-27; Brown, 2012; Clota, 1989).

Conforme pondera Ramos Jurado, o neoplatonismo tinha como características típicas do mundo helenístico: a) ser uma filosofia eclética; b) ter uma orientação religiosa ou mística; c) voltar-se para fontes como Platão e comentá-las ostensivamente; d) buscar autoridades tidas como sagradas e revelações antigas usadas como base para as novas doutrinas; e) buscar uma articulação entre fontes pagãs várias (Platão, Aristóteles, Homero, Hesíodo, Orfeu e a teurgia dos Oráculos caldeus), reunindo o paganismo de forma coesa contra o cristianismo e seu exclusivismo soteriológico (Ramos Jurado, 1997, p. 13-14; cf. Brown, 2012). Percebe-se já nesse interesse pela teurgia uma influência oriental (Clota, 1989, p. 76-77).

Tais características do neoplatonismo praticamente se combinam dialeticamente, já que seu “ecletismo” parece inseparável de sua natureza místico-espiritual enquanto uma filosofia que busca levar o homem de volta à sua origem divina, e ambas se confundem com a tentativa de costurar um acordo entre diferentes fontes e tradições, amiúde de origem oriental.  Esta peculiaridade do neoplatonismo de estabelecer uma concordância entre elementos religiosos (orfismo, Oráculos caldeus) e elementos filosóficos (platonismo, pitagorismo, aristotelismo), já foi reiterada e comentada por diversos autores, como Pierre Hadot, Radek Chlup e Henri Bergson. Não por acaso, nessa direção tornou-se comum o surgimento de trabalhos de comparação entre o neoplatonismo e tradições do pensamento oriental, em especial o indiano (Yoga, budismo, hinduísmo), por exemplo, aqueles feitos por Joaquim Lacrosse, Francisco G. Bazán, Arthur Versluis.

À luz desses pressupostos esboçados, este trabalho pretende apresentar, dentro de uma visão geral e de maneira puramente introdutória, o interesse e o diálogo de alguns filósofos neoplatônicos com as diferentes tradições filosóficas e espirituais do Oriente, diálogo que é inseparável do caráter místico-espiritual da própria filosofia neoplatônica na medida em que ela se abre a uma compreensão do mundo não restrita apenas à razão, o que em nada diminui seu estatuto filosófico.

Dessa forma, pretendemos abordar os seguintes pontos centrais: a) o interesse de Plotino, relatado por Porfírio em sua biografia do mestre (Vida de Plotino, III, 13-15), pela filosofia dos persas e indianos; b) a referência de Porfírio (Sobre a abstinência, IV, 17) à “teosofia” dos indianos, além de sua busca pessoal por um caminho universal para a libertação da alma (conforme Agostinho, A Cidade de Deus, X, 32) e seu interesse na teurgia dos Oráculos caldeus; c) o interesse de Jâmblico pela teurgia e pela sabedoria egípcia na obra Sobre os Mistérios egípcios; d) o interesse de Proclo por um acordo com a “teologia dos bárbaros”, ou seja, dos persas, egípcios, caldeus e outros, segundo seu discípulo Marino de Samaria.

Plotino

O neoplatonismo começa oficialmente com Amônio Saccas (c. 175- c. 240, 242 EC), uma figura misteriosa da qual pouco se sabe. Especula-se se Amônio não era de origem indiana, devido ao nome “Saccas”. Ele teria sido um cristão depois convertido ao paganismo (Reale, 2008, p. 5-6). 

Em Alexandria teve discípulos como Plotino (205-270 EC), formando uma espécie de círculo seleto de alunos, talvez até mesmo uma escola esotérica. Mais tarde, Plotino foi ensinar em Roma um tipo de filosofia eminentemente mística, a partir do pressuposto de que todas as coisas e seres partiram do Uno e anseiam retornar a ele, a verdadeira origem de tudo, algo que, contudo, não pode ser feito apenas através da razão, mas através do intelecto e, sobretudo, de uma união em que o sujeito se funde a seu objeto de conhecimento (Ullmann, 2008, p. 17-39).

Segundo o testemunho de Porfírio na Vida de Plotino, III, 13-15 (Porfírio apud Ullmann, 2008), sabe-se que Plotino estava interessado em aprender a filosofia ensinada entre os persas e indianos; inclusive, com esse objetivo, chegou a participar da expedição oriental do imperador romano Gordiano, mas não teve sucesso pois a expedição malogrou, e o próprio imperador acabou morto nela, tendo Plotino fugido para Antioquia durante um tempo (Reale, 2008, p. 14-15).

Não deve ser mero acaso que a filosofia de Plotino, e isso é independente da existência ou não de conexões históricas com a Índia, suscita muitas comparações com a filosofia indiana, especialmente com a escola do advaita-Vedanta de Shankaracharya (Lacrosse, 2014; Zimmer, 2015, p. 21-31; Bazán, 2012; Berdiaev, 1953), pois nesta o objetivo é que o Atman reconheça e realize sua identidade originária com o Absoluto impessoal, Brahman, assim como, na filosofia de Plotino, a meta da alma humana é alcançar a união com o Uno, além de toda predicação e conceituação.

Com relação a outras correntes orientais, sabe-se que Plotino não citou muitas fontes ou autores anteriores, com exceção de Platão ou, quando muito, citou mitos antigos, como o de Orfeu. Sabe-se que não demonstrou grande interesse pela teurgia, então atribuída aos “caldeus”, e que polemizou com o gnosticismo, cuja origem em parte é oriental, em especial o sethiano, na Enéada, 2: 9 (Plotino, 2010), devido ao dualismo extremo insíto à visão gnóstica.

Porfírio

Porfírio (c. 234-c. 304/309 EC) não só relatou o interesse de Plotino pela filosofia indiana e persa como demostrou conhecer diretamente o assunto. Por exemplo, nesta passagem da obra Sobre a abstinência, IV, 17:

A estrutura social dos indianos se compõe de várias classes, e há entre eles uma casta, a dos teósofos, aos quais os gregos optaram por chamar de gimnosofistas. Por sua vez, estes se dividem em duas seitas. Uma é constituída pelos brâmanes e, a outra, dos samaneos. Os brâmanes recebem de geração em geração sua específica teosofia, como uma espécie de sacerdócio; os samaneos são eleitos e o número deles que se consagra à teosofia se seleciona entre voluntários. Deste modo são os fatos que lhes concernem, tal como exposto pelo babilônio Bardesanes, que existiu na época de nossos pais, e se encontrou entre os indianos que foram enviados com Dandamis ao imperador. Todos os brâmanes pertencem a uma única casta, porque todos provêm de um só pai e uma só mãe; os samaneos não formam uma casta única, senão que são constituídos de todo povo indiano, como temos dito (Porfírio, 1984, p. 214-215, tradução nossa).

Na passagem acima citada, Porfírio curiosamente usou o termo “teosofia” (sabedoria divina) para se referir ao pensamento filosófico-religioso dos indianos. Ele diz que os gimnosofistas seriam divididos em dois grupos, os brâmanes e o samaneos (provavelmente os budistas), sendo que aqueles recebem a teosofia por tradição e estes por eleição. E cita o gnóstico Bardesanes como fonte, pois este teria estado entre os indianos.

Além de referências à teosofia indiana, Porfírio também se interessou pela teurgia dos Oráculos caldeus, dando a esta última um valor, ainda que menor, não de todo desprezível. Segundo o relato de Santo Agostinho n’ A Cidade de Deus (X, 32):

No fim do primeiro livro Acerca do Regresso da alma (De regressu animae), Porfirio declara que a doutrina que propõe o caminho universal da libertação da alma ainda não foi ensinada por nenhuma seita, nem por qualquer filosofia de grande aceitação, nem pelas disciplinas morais dos Indus [hindus], nem pela indução dos [Oráculos] Caldeus, nem por qualquer outro sistema chegou essa doutrina, por via histórica, ao seu conhecimento. Admite sem a mínima hesitação que esse caminho existe, mas que não chegou ainda ao seu conhecimento. Portanto, tudo o que ele tinha aprendido à custa de muito estudo acerca da libertação da alma, tudo o que, a si e aos outros mais do que a si, lhe parecia saber e possuir, tudo isso considerava insuficiente. (Agostinho, 2000, p. 977, vol. 2)

Conforme Santo Agostinho, Porfírio teria buscado em fontes diversas, entre elas as hindus e os Oráculos caldeus, um caminho universal de libertação anímica, sem sucesso em sua busca, apesar de acreditar que tal caminho realmente existia. Como essa obra porfiriana mencionada foi perdida, não sabemos exatamente qual era o seu verdadeiro teor. Mas, como afirma Reale (2008, p. 54), Porfírio comentou os Oráculos caldeus à luz do neoplatonismo, abrindo o caminho para Jâmblico. Os Oráculos, junto com os poemas órficos, homéricos e hesiódicos, tornaram-se então uma espécie de Bíblia sagrada pagã para os neoplatônicos, com um rol de textos considerados como revelações divinas e acolhidas como ponto de partida para a filosofia.

E o que eram os Oráculos caldeus, afinal? Um conjunto de versos relacionados com a teurgia e disseminados a partir dos séculos II-III EC. Esse material sobreviveu em fragmentos citados por autores como Proclo, Damáscio, Psellos e Plethon. Sua origem estaria em supostas mensagens divinas recebidas sob estado de transe místico por Juliano pai, o caldeu, e Juliano filho, o teurgo, figuras possivelmente contemporâneas do imperador-filósofo Marco Aurélio (século II EC). Juliano pai teria vindo da Caldeia ou da Síria para Roma. De todo modo, nesse contexto o termo “caldeu” parece remeter à magia de forma genérica mais do que à Caldeia em termos geográficos.

Nos Oráculos existe a busca da salvação da alma através da recepção de uma inspiração divina e da prática de ritos tradicionais, com uma linguagem mágico-simbólica para invocar os deuses, que, por sua vez, transmitem mensagens mediante transes místicos (Körbes Hauschlid, 2018, p. 52-53). As ideias dispostas nos Oráculos são afins ao platonismo tardio, e circularam em um ambiente cultural comum ao gnosticismo, hermetismo e papiros mágicos. 

Jâmblico

Jâmblico (245-325 EC), discípulo de Porfírio, discordará de seu mestre1, dando maior destaque para a função da teurgia, articulada a um projeto intelectual mais amplo. Há historiadores que consideram Jâmblico uma suposta guinada na história do neoplatonismo, abandonando a filosofia em direção à magia e à teurgia, interpretação que nos parece distorcida, pois insiste em separar o que os antigos não separavam claramente, a saber, o racional e o irracional (Clota, 1989, p. 81). 

De acordo com Giovanni Reale, Jâmblico amplificou o número de hipóstases metafísicas, assim como estabeleceu sua vinculação com uma gama de práticas e ritos mágicos, a teurgia, que possibilitaria um contato direto dos praticantes com os deuses, acima da capacidade cognitiva do logos (Reale, 2008, p. 159-160). Além da influência dos Oráculos, são dignos de nota no pensamento jambliquiano as influências do neopitagorismo, do hermetismo e quiçá até do gnosticismo, em um contexto de debate com o judaísmo e o cristianismo. Para Ramos Jurado, nomes decisivos do neoplatonismo como Plotino e Porfírio, apesar de procederem do Oriente (Egito e Fenícia, respectivamente), eram culturamente mais gregos e atuaram em Roma, atenuando o processo de orientalização, enquanto Jâmblico, nascido no mundo oriental também, apresentará um helenismo ainda mais orientalizado (Ramos Jurado, 1997). 

A obra Sobre os mistérios egípcios de Jâmblico tem relações com a cultura egípcia, e existe um paralelo com a tradição hermética na própria estratégia discursiva utilizada nela (assim como os Oráculos caldeus), já que o sacerdote que fala ao longo do texto seria um conhecedor e seguidor dos escritos herméticos (Jâmblico, 1997, p. 27-28). Deste modo Jâmblico começa seu livro Sobre os mistérios egípcios:

A divindade que preside a eloquência, Hermes, há tempo é considerada acertadamente comum a todos os sacerdotes e este único protetor da verdadeira ciência dos deuses é o mesmo em todo o mundo, a quem precisamente inclusive nossos antepassados dedicavam os descobrimentos de sua sabedoria, pondo sob a autoridade de Hermes suas próprias obras. E se também nós obtemos desse deus a parte que nos corresponde na medida de nossas possibilidades, você faz bem em expor aos sacerdotes, como gostam, questões teológicas pertencentes ao âmbito de seus conhecimentos. Em absoluto seria decoroso que Pitágoras, Platão, Demócrito, Eudoxo e muitos outro entre os antigos gregos haviam obtido o ensinamento adequado graças às inscrições sagradas de sua época, e você, contemporâneo nosso e com a mesma intenção que aqueles homens famosos, não atinja a guia outorgada pelos professores atualmente vivos e chamados de mestres públicos (…) Nós, pois, de acordo com as ancestrais doutrinas dos assírios, te transmitiremos em verdade nossa opinião e te desvelaremos nossas doutrinas com claridade, umas deduzindo-as mediante o entendimento a partir dos inumeráveis escritos antigos, outras a partir dos escritos em que mais tarde, em um número limitado de livros, reuniram os antigos todo o saber teológico. E se propões alguma questão filosófica, esta interpretaremos a você de acordo com as antigas estelas de Hermes, que Platão, já antes, e Pitágoras, depois de lê-las em sua totalidade, utilizaram para criar sua filosofia, assim como as questões estranhas e contraditórias que evidenciam um caráter conflituoso, mediante explicações afáveis e harmonias (Jâmblico, 1997, p. 41-44, tradução nossa do excerto).

Essa obra era, na realidade, uma carta de Jâmblico com o objetivo de polemizar com Porfírio, seu antigo mestre. Hermes aparece nela como o guardião da ciência divina, reconhecido por todos os sacerdotes, além dos antepassados, como uma autoridade. De Hermes, ou seja, da sabedoria egípcia, teria derivado a filosofia grega de Platão, Pitágoras, Eudoxo e outros, assim como a filosofia do próprio Jâmblico, igualmente tributária dos assírios. Em suma, temos nesse texto tanto uma concordância entre a sabedoria grega com a sabedoria oriental, aquela derivando desta, quanto uma possível linhagem de transmissão dessa sabedoria. 

Proclo

Em Proclo (412-485 EC), o último dos grandes neoplatônicos, ocorre uma continuação do programa de Jâmblico, inclusive o liame íntimo da filosofia com a teurgia. E provavelmente ele também deu continuidade à intenção concordista de seu mestre Siriano (Reale, 2008, p. 176), por exemplo ao apresentar uma espécie de linhagem da sabedoria perene na obra Teología Platoníca (I, V):

Portanto, é necessário mostrar que cada um das doutrinas concorda com os princípios platônicos e com as tradições secretas dos teólogos; porque toda a teologia grega é filha da mistagogia de Orfeu, primeiro Pitágoras [que] foi instruído por Aglaofamos nas iniciações relativas aos deuses, depois Platão recebeu toda a sabedoria perfeita tanto dos escritos pitagóricos quanto órficos. No Filebo, com efeito, ele refere a investigação das duas espécies de princípios aos pitagórios, os quais, por viverem com os deuses, [ele lhes] chama verdadeiramente bem-aventurados; também o pitagórico Filolau, por certo, escreveu muitos e maravilhosos pensamentos para nós em torno disso tudo, celebrando tanto a sua processão em direção aos entes como a procissão diferenciada; no Timeu, empreende a lição sobre os deuses abaixo da Lua e a sobre a ordem entre eles, recorre aos teólogos e os chama filhos de deuses, e faz deles pais da verdade sobre os deuses; e enfim sobre o modo da processão dos reis intelectivo que se encontra neles, transmite também as disposições que procedem do Toto; por sua vez, no Crátilo, a ordem das disposições divinas, e no Górgias, [referindo-se a] Homero ensina a existência triádica da mônada demiúrgica. Mas em todas as partes, para dizê-lo brevemente, atendendo aos princípios dos teólogos entrega os discursos sobre os deuses, suprimindo o trágico das ficções míticas, mas considerando como fundamentos os [princípios] mais excelsos que compartilha com eles. (Proclo, 2011, p. 57, tradução nossa)

Destaca-se nessa passagem a cadeia de transmissão da “teologia grega” conforme a interpretação procliana: Orfeu, Aglaofemo, Pitágoras e Platão. Os nomes do pitagórico Filolau e Homero também são mencionados, e em outros lugares da Teologia Platônica Proclo cita ainda as figuras de Adrasteia e dos Curetes (Mendes, Michel & Cerqueira, 2021). E em outras obras (Comentário ao Timeu e Comentário a República), ele menciona também Zoroastro e os magos da Pérsia, conquanto secundariamente. 

Essa linhagem na construção procliana tem vários eixos de estruturação. Como considera Polymnia Athanassiadi, é um objetivo claro de Proclo colocar Homero e Platão em acordo entre si (o que também ocorre n’ A Teologia de Platão, I, V) como membros de uma cadeia divina, ou de uma cadeia de ouro referida por Homero na Ilíada (Canto VIII), citada depois por Platão no Teeteto (153 c-d), por Macróbio nos Comentarios al sueno de Escipión (I, 14, 15, 2005: 79) e por Damáscio na Vida de Isidoro, e ambos em concordância com os Oráculos caldeus. Tal cadeia de ouro é um reflexo no espaço e no tempo da própria cadeia do Ser da ontologia neoplatônica, e engloba todos os emissários conscientes de um saber de origem divina (Athanassiadi, 2016, IX, p. 75-76). 

Sob o aspecto divino, Hermes é ainda considerado o pai dessa cadeia mencionada por Proclo, que inclui todos aqueles que têm consciência da sua identidade hermética enquanto veiculadores da verdade divina. De acordo com Marino de Samaria, seu mestre Proclo sonhou uma vez que pertencia à cadeia hermética (ou hermaica)2 e que era a reencarnação do pitagórico Nicômaco (Marinus of Samaria, 1925, p. 15-55).

Dessa forma, ainda conforme Athamassiadi (2016, IX, p. 75-76), os platônicos desse período levaram em consideração tanto a tradição pitagórica quanto a tradição dos poetas ou teólogos como Orfeu, Museu, Hesíodo e Homero, como se formassem um único corpo de escrituras, ao qual são acrescentados os Oráculos caldeus, e, no caso de Jâmblico e Proclo, é somada ainda a figura de Hermes.

Acreditando-se inspirado pelos deuses, Proclo buscou tanto explicar os mitos quanto colocar em acordo a teologia helênica com a “teologia bárbara”, conforme seu discípulo Marino:

O filósofo [Proclo] não só não teve dificuldade em penetrar em toda a teologia, grega e bárbara, e aquela que se esconde sob as ficções dos mitos, mas também, para quem quer e pode entender, ele produziu à luz do dia, explicando todas as coisas sob a inspiração dos deuses e colocando todas essas teologias de acordo (Marino apud Saffrey, 2000, p. 144, tradução nossa).

Para encerrar este texto meramente introdutório, a quem Proclo se refere quando falava da “teologia bárbara”? É possível que estivesse falando sobre caldeus, fenícios, persas e egípcios, referências conhecidas e mobilizadas pelos neoplatônicos. Nota-se, assim, em Proclo e nos demais neoplatônicos um espírito concordista, ainda que este não incluísse o cristianismo, até porque havia um ambiente de hostilidade mútua entre este e os últimos expoentes do paganismo helênico.

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Autor

  • Licenciado em Filosofia (USP) e Mestre em Filosofia (UFU). Habilitado em Sociologia e Licenciado em História. Especialista em História (PUC-SP). Professor da Rede do Ensino Básico desde 2009. Autor do livro "Theosophia Perennis" (Daemon 2022) e de artigos publicados em livros e revistas.

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