Mil Fucôs, ou o que resta de Foucault

Compreender Foucault é compreender como o leem, a partir de que bases, privilegiando quais conceitos e obras

“Existe ainda um ‘Foucault para ser experimentado'” | imagem: Duncan Cumming

Dois anos após a morte de Foucault, Maurice Blanchot publicou um pequeno livro chamado Foucault como o imagino. Logo no primeiro parágrafo, ele disse que nunca tinha tido relações pessoais com Foucault. Afirmou que nunca o encontrou, exceto uma vez no pátio da Sorbonne durante os acontecimentos de maio de 1968. Acontece que Foucault residia na Tunísia durante esses acontecimentos. Longe de ser um erro histórico ou biográfico, Blanchot usa desse humor e ironia para iniciar a reflexão de como o seu encontro com Foucault tem muito mais a ver com o aquilo que ele lhe provocou.

Veja também:
>> “O Meu Foucault: Cinco depoimentos sobre o filósofo nos 40 anos da sua morte“, por Duanne Ribeiro
>> “A vida é um fenômeno coletivo: uma resenha de Por uma pedagogia da cura, de Caio Souto“, por Antonio Neto

Uso essa posição de Blanchot como inspiração, pois o Foucault que apresentarei aqui não passa de uma ficção particular produzida através do meu encontro extemporâneo com ele, com o tom generalista, pouco rigoroso e com certa dose de passionalidade próprias das nossas fantasias. Apesar disso, acredito que a exposição desse encontro pode ajudar outras pessoas a se encontrarem com algum Foucault ou com “qualquer outro que lhe faça ressoar”, como diria Heliana Conde. Meu objetivo não é fazer uma defesa dele e de seu pensamento ou de convidá-los a serem foucaultianos, como discípulos, seguidores ou defensores. Comentar a obra de Michel Foucault é importante, sem dúvida, mas é secundário comparado a outra tarefa: a de pensar de maneira foucaultiana a atualidade. Paradoxalmente, hoje, pensar a realidade foucaultianamente se esbarra com a tarefa de pensar com Foucault para além de Foucault, ainda que isso signifique pensar contra Foucault.

Mais do que um intelectual francês, Foucault denomina também um efeito, um efeito-Foucault. Para mim, Foucault foi esse efeito que me permitia pensar e agir diferente, tanto no interior da psicologia enquanto curso universitário quanto no interior da militância estudantil. A articulação foucaultiana entre saberes do campo da saúde e problemas da ordem da política pavimentaram o caminho pelo qual eu pude passar como jovem estudante negro de psicologia. A frase: “A psicologia nunca dirá a verdade da loucura porque é a loucura que detém a verdade da psicologia” sempre condensou para mim o cerne da crítica foucaultiana durante meu tempo de estudante. Como disse certa feita Heliana Conde, cito-a novamente como demonstração de respeito a quem nos deixou recentemente e foi talvez a maior foucaultiana entre nós, não se trata nunca de fundar uma psicologia foucaultiana, o que seria uma contradição em termos, mas sempre de instaurar uma presença outra no interior da psicologia. Parafraseando Patricia Hill Collins, trata-se do exercício artesanal de ser um outsider interno.

Embora Foucault tenha dito que “talvez um dia o século será deleuziano”, anos depois, Antonio Negri, um foucaultiano de esquerda, afirmou: “já havíamos compreendido que, se o século XX tornara-se deleuziano, o século XXI será foucaultiano”. Concordando com essa tese, Michael Behrent, um foucaultiano de direita, já em 2021, afirmou que “o início do século XXI tornou-se foucaultiano”. Isso porque os temas clássicos de Foucault são hoje questões que nos tocam: doença mental, saúde pública, sexualidade, vigilância, normalidade etc. Isso significa que Foucault é um dos arquitetos do nosso atual modo de vida. Uma espécie de agrimensor do território de nossas existências. Ele se tornou incontornável para todos nós, de modo que falamos de Foucault mesmo quando não citamos o seu nome.

Não existe “um Foucault”, mas “mil Foucaults”. Existe um “Foucault brasileiro”, um “Foucault alemão”, um “Foucault italiano”, um “Foucault americano” e assim por diante. Foucaults de direita, Foucaults de esquerda, Foucaults de centro. Porque as recepções do pensamento de Foucault variam fortemente a partir de onde o leem, quando o leem, para que o leem, quem o lê etc. Isso porque Foucault atuou como um “efeito” e não como um “autor”. Compreender Foucault é compreender como o leem, a partir de que bases, privilegiando quais conceitos e obras. Esse exercício, marcado por uma “heterodoxia rígida”, é o que permite manter a vitalidade de Foucault.

Infelizmente, houve seguimentos acadêmicos que se destinaram a “comentar Michel Foucault”. Eles exerceram aquilo que o intelectual liberal José Guilherme Merquior chamou de “foucauldolatria” e se enclausuraram no que Stephane Legrand chamou de “clube dos amigos da subjetividade”. Para eles, a obra de Foucault é complexa, nebulosa, fonte de necessárias precisões conceituais. Eles se organizam em grandes eventos, cujos temas se repetem por décadas e cujas intervenções prezam, por exemplo, pela complexa relação de Foucault com o legado da filosofia grega. Essa recepção academicista de Foucault tem raiz na nossa leitura brasileira, embora não seja exclusividade esse tipo de apropriação. Sugiro chamar essa tradição de “foucaultianismo de centro”.

Presenciei por algumas ocasiões essa ortodoxia centrista foucaultiana, para quem Foucault é um intelectual nebuloso, de conceitos difíceis que exigem muito cuidado na menção, como se, ao falar dele, estivéssemos num terreno minado, qualquer erro retórico – confundir sujeição com assujeitamento, por exemplo – seria um grave equívoco, pois demonstraria a falta de compreensão de sua genialidade. Além disso, Foucault seria antimarxista, a amizade dele com Louis Althusser não é sequer mencionada, aliás, traços pessoais de Foucault não são bem-vindos. Foucault aqui é uma espécie de gênio radical, que nunca erra, cujas visões sobre acontecimentos políticos é complexa, difícil de apreender.

Um texto como “É inútil revoltar-se”, de 1979, aparece nesse foucaultianismo acadêmico como um texto teórico brilhante, quando, na verdade, é uma tentativa dele de responder às críticas que ele vinha recebendo e evitando ao longo daqueles meses. Numa edição brasileira de intervenções de Foucault sobre a Revolução Iraniana, fala-se com orgulho da “espiritualidade política”, mas não se questiona o motivo pelo qual Foucault preferiu olhar para o Irã e não para a Nicarágua de 1979 e o papel fundamental ali desempenhado pela Teologia da Libertação. Aliás, também nunca se questiona por que Foucault, no seu curso sobre neoliberalismo, de 1979, não faz nenhuma menção ao golpe neoliberal de Pinochet no Chile, em 1973. Antes que um foucaultiano de centro diga que ele não podia saber tudo, que o mundo era diferente e as notícias circulavam de modo lento, peço que leia a epígrafe do desastroso livro de André Glucksmann para o qual Foucault teve a questionável iniciativa de escrever uma resenha elogiosa. Não por acaso, alguns desses foucaultianos de centro hoje possuem práticas abertamente misóginas, sexistas, machistas, racistas, e capitularam em direção àquilo que Benjamin Noys chamou de “thatcherismo deleuziano”.

Minha posição é a de que existe ainda um “Foucault para ser lido”. Evidentemente não se trata de evidenciar obras recém-publicadas ou reler conceitos de outra maneira buscando sutilezas. O que está para ser feito é buscar os modos pelos quais Foucault permanece como nosso contemporâneo, quarenta anos após a sua morte. Talvez, pensando melhor, existe ainda um “Foucault para ser experimentado”. Afinal de contas, o que resta de Foucault? Esse interesse não pode ser academicista, calcado num especialismo, demarcado no interior de um departamento. Esse interesse só poder ser público, aberto e coletivo. Esse interesse também não pode ser ortodoxo, porque há um mundo depois de Foucault e esse mundo ele não viveu, somos nós que vivemos.

No final de março de 2021, um intelectual e ensaísta chamado Guy Sorman, hoje ligado ao projeto neoliberal e defensor de Margareth Tatcher e Pinochet, deu uma declaração num jornal americano que consistia no seguinte: Michel Foucault teria abusado de menores num cemitério durante a sua estadia na Tunísia, em 1969. Mais do que isso, dando detalhes, Sorman dizia qual o nome do cemitério e que, durante o luar, Foucault violava os meninos deitados sob túmulos. Segundo ele, quando Foucault levava duas ou três crianças, outras perguntavam: “E eu? Me leve, me leve!”. Essa declaração foi também uma divulgação de seu livro chamado Meu dicionário de besteiras. É um livro composto mais ou menos de verbetes e Foucault aparece no verbete “pedofilia”.

Em 28 de março de 2021, o jornal O Globo divulgou a matéria “Escritor afirma que filósofo Michel Foucault abusou de meninos na Tunísia”. E, claro, num ambiente público hegemonizado pela nova direita, essas palavras assumiram ares de verdades absolutas e foram disseminadas rapidamente. Eu lembro, na época, de ter me deparado com um post no Twitter do Henry Bugalho, no qual ele dava completa razão às acusações de Guy Sorman e terminava o texto dizendo: “Enfim, este é mais um dos casos em que é possível separar autor e obra? É possível relativizar, se for verdade, abusos sexuais de menores? Ou é possível fingir não ver a defesa pública de estupro de vulneráveis? Isso vale pra um(a) autor(a), mas não vale pra outro(a)?”. Henry Bugalho, naquele momento, era um influencer progressista que fazia frente nas redes sociais ao bolsonarismo. Era um grande defensor de uma “ética do debate racional”. No entanto, nesse post em específico, adotou o esquema dos cliques capitaneados por falsas polêmicas e desinformação.

Essa declaração de Guy Sorman veio no contexto de seu livro no qual ele defende a tese segundo a qual os intelectuais formam uma casta privilegiada, uma espécie de elite superior. Acusações de atos perversos como esses creditados a Foucault servem como mais um capítulo dessa campanha de difamação de intelectuais ligados à esquerda. Vejam, por exemplo, a série chamada A face oculta que tem episódios sobre Foucault, Paulo Freire, feminismo etc. Trata-se de um tipo de propaganda específica da direita conservadora: repetir os mesmos rótulos para desmoralizar figuras públicas de relevância vinculados ao projeto de esquerda.

Daniel Defert, companheiro de Foucault, redigiu uma carta na qual diz que as datas que Guy Sorman sugere que aconteceu o crime não batem com a biografia de Foucault, pois ele não estaria mais na Tunísia em 1969 ou em 1970. Além disso, Defert menciona também os costumes tunisianos em vigor no cemitério citado, que tratavam tal cemitério com alta vigilância e respeito. Defert também cita jornalistas e pesquisadores que fizeram estudos desmentindo tal narrativa de Guy Sorman. Claro, nem Henry Bugalho nem outros que surfaram na onda da disseminação da informação falsa tiveram o cuidado de checar junto aos mais próximos, como Defert.

Estranhamente, apesar de ataques desse tipo, Foucault vai gozando de prestígio em setores da direita. Ele vai saindo do registro hostil para com a direita para o registro da utilidade contra a esquerda. A pandemia de covid teria sido um grande exemplo disso, no qual a crítica de Foucault à biopolítica forneceu uma arma útil para atacar a fidelidade da esquerda aos conhecimentos científicos. Lembremos aqui da infeliz intervenção de Giorgio Agamben, em fevereiro de 2020, em que ele escreve o texto “A invenção de uma pandemia”. Ali ele critica a realidade material da pandemia e também fala sobre as limitações de liberdade diante do decreto italiano acerca do isolamento social. Essas e outras intervenções igualmente criticáveis de Agamben foram reunidas num livro chamado Reflexões sobre a peste, lançado pela Boitempo.

Consolidou-se, para espanto dos foucaultianos de centro, um “foucaultianismo de direita”. No sono dogmático do foucaultianismo acadêmico, essa leitura direitizante não teria fundamento, seria uma “leitura equivocada”. No entanto, eles não sabem lidar com o fato de que essa posição vem de intelectuais tão próximos a Foucault, como François Ewald, Alessandro Fontana e Pierre Rosanvallon. Um dos últimos grandes sucessos dessa interpretação foi A última lição de Foucault, de Geoffroy de Lagasnerie, então companheiro de Didier Eribon, autor da melhor biografia sobre Foucault que temos disponível. Cada um a seu modo, todos recusam a ideia de que Foucault teria sido um antiliberal e um crítico radical do neoliberalismo, além de alguns deles afirmarem que ele teria sido inclusive um defensor do neoliberalismo. Essa leitura neoliberal de Foucault não é um enxerto, algo que vem desde fora, mas expressa de maneira sintomática as aporias do próprio Foucault. Essas aporias, a meu ver, são tão dramáticas que só podem ser resolvidas se estivermos dispostos a abandonar Foucault a partir dele mesmo. A única maneira de ser foucaultiano hoje é abandonar Foucault, como quem diz adeus a um moribundo lhe permitindo finalmente descansar em paz.

A obra fundamental dessa perspectiva é Critiquer Foucault: les années 1980 et la tentation neoliberal [Criticar Foucault: os anos 1980 e a tentação neoliberal], uma obra coletiva organizada por Daniel Zamora, publicada no segundo semestre de 2014 na França, tendo sido traduzida para inglês em 2016, pela editora Polity Press e traduzida para o espanhol em 2017, pela Editora Amorrotu – ainda sem tradução para o português. Nem todos os intelectuais que contribuem com essa coletânea endossam essa leitura de Foucault, a exemplo de Loïc Wacquant, mas alguns são claramente seus expoentes. Embora amplamente negligenciada no Brasil, essa leitura neoliberal de Foucault talvez seja importante para demonstrar que não se pode negar tais pontos problemáticos da obra de Foucault, de modo que seu enfrentamento é hoje necessário e urgente para mantê-lo vivo no século XXI. Outra obra importante dessa tradição é O último homem a usar LSD: Foucault e a Revolução, de Mitchell Dean e Daniel Zamora, publicado pela Editora Telha recentemente.

Se existe um foucaultianismo de centro e uma direita foucaultiana, há, é claro, e ainda bem, uma esquerda foucaultiana. Para ela, a condição da manutenção da atualidade de Foucault é o ato de “fazer as pazes” com Marx. Ou seja, Marx é a única maneira de manter Foucault vivo hoje. Esse é o pressuposto geral dessa perspectiva. Sua origem pode ser localizada no interior da divergência entre Foucault e Deleuze no final dos anos 1970. O gesto deleuziano de pensar foucaultianamente o contemporâneo, consolidado em seu texto sobre as sociedades de controle, é a característica principal dessa tradição, materializando aquele imperativo que mencionei no início de pensar com, contra e para além de Foucault. Um dos livros mais emblemáticos dessa tradição é Marx e Foucault: leituras, usos, confrontações, organizado por Christian Laval, Luca Paltrinieri e Ferhart Taylan. Ali, reunindo nomes como Antonio Negri, Robert Nigro, Étienne Balibar, Jacques Bidet, Stéphane Haber, dentre outros, se recoloca à questão da atualidade de Marx e Foucault. Infelizmente, ainda não disponível em português.

A esquerda foucaultiana é composta por intelectuais como Franco Berardi, Byung-Chul Han, Pierre Dardot, Nikolas Rose, Maurizio Lazzarato, Michael Hardt, Thomas Lemke, Achille Mbembe, dentre outros, além dos já citados. Cada um à sua maneira, todos partem do pressuposto de que há um desencontro de Foucault com o tempo presente, de modo que é necessário partir de Foucault mas também superá-lo, razão pela qual todos, sem exceção, realizam inovações conceituais, como necropolítica, noopolítica, biopolítica afirmativa e assim por diante. Todos também partem do insight deleuziano seminal de que a análise crítica de dispositivos disciplinares, embora necessária, já não dá mais conta da nova conjuntura histórica. Por fim, todos também compreendem a aproximação de Foucault com a tradição neoliberal como sendo profundamente crítica.

Esse mapeamento político do pós-foucaultianismo – esquerda, direita e centro –  me serve para afirmar um Foucault múltiplo e aberto, cuja obra ainda é influente em nosso tempo. Em outra oportunidade, com dois grandes amigos, Aline Passos e Moyses Pinto, pude defender essa multiplicidade a partir de outro critério, o geográfico-filosófico, falando sobre o “Foucault brasileiro”, “Foucault americano”, “Foucault italiano” e assim por diante. Foi inclusive essa intervenção, feita em meio à pandemia, em meados de 2020, que motivou o convite para que eu escrevesse esse pequeno texto. Assim como naquele momento, quis aproveitar o convite para ventilar todo um debate que não vejo ser feito com tanta frequência quando o assunto é Michel Foucault.

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