Invisibilidades Objetivas: o Caso da Afro-Matemática

Divulgaram-se recentemente manchetes que noticiavam que a Universidade Federal do ABC (UFABC) inclui no “currículo obrigatório” uma tal de afro-matemática. Disso, todos os comentários foram no sentido de uma interpretação como a que segue:

“A UFABC vai incluir como disciplina obrigatória [a todos os estudantes] uma disciplina de afro-matemática.”

Está implícita nessa interpretação (e explícito nos comentários de deboche) a ideia de que não seria possível tal coisa como uma afro-matemática, afinal, números não possuem ideologia, gênero, etnia, maldito-seja-o-pós-modernismo.

Confesso que o nome da disciplina me causou incômodo por um instante, sim. De fato, isso me lembrou a frase atribuída a Stalin de que a genética era “burguesa”. Zero sentidos. Mas uma coisa é ter um incômodo inicial, outra é você se deixar governar por esse impulso.

É muita prepotência supor em definitivo que os outros sejam tão imbecis e você seja tão especial assim. Não tenho usado esse ponto de partida tem um bom tempo e isso só fez bem para o meu aprendizado e desempenho intelectual

Se a interpretação mostrada parece estúpida há um bom motivo pra isso: ela é estúpida mesmo. Quer dizer, podemos ir por dois caminhos: o primeiro é supor que professores universitários de exatas criaram um curso inteiro que tenta distinguir o indistinguível (números são neutros!) e a imensa maioria ficou nessa barreira aqui; ou, alternativamente, podemos investigar mais para rever nossa interpretação inicial e desafiá-la em face de novas evidências.

Vou poupá-los do conteúdo dos comentários em relação às manchetes (que em si já são desonestas), mas asseguro que o teor de racismo é extremamente pesado.

Escolhi o segundo caminho e fico bem triste que os inúmeros comentários de deboche tenham optado pelo primeiro. Quer dizer: é muita prepotência supor em definitivo que os outros sejam tão imbecis e você seja tão especial assim. Não tenho usado esse ponto de partida tem um bom tempo e isso só fez bem para o meu aprendizado e desempenho intelectual.

Olhando mais de perto vemos o seguinte: o curso é de “afro-matemática como transformadora social” e será incluído no currículo de LICENCIATURA EM MATEMÁTICA. As omissões aqui são dolosas, já que são capazes de alterar profundamente os significados percebidos.

Ora, um curso de licenciatura em matemática não é um curso “apenas” de matemática, mas sim um curso que envolve o ENSINO de matemática. Isso passa por aspectos pedagógicos e da relação geral de aprendizagem. Invoca, ainda, elementos de formação e cidadania que são inerentes aos professores na nossa sociedade (até por uma falha na formação familiar, mas isso é assunto para outro texto).

A pessoa toma impressão por evidência, evidência por prova, prova por prova cabal, prova cabal por não-há-possibilidade-nesse-universo-disso-aqui-na-minha-frente-não-ser-o-que-me-parece

Bem, e sobre o que é o curso? É justamente sobre métodos de ensino de matemática, que passa pelo uso de instrumentos físicos baratos e de modelos mentais que se desenvolveram em diferentes países africanos e que ajudaram na formação matemática de crianças que cresceram em zonas de conflito ou em ambiente de profunda desigualdade. Se o método se mostra capaz nesse cenário, talvez seja razoável aplicá-lo por aqui e vermos se pode ser uma ferramenta interessante no nosso contexto. E é isso. Se antes parecia inadequado um curso de “afro-matemática” que continha a desonesta alegação implícita de que se defende que matemática tenha etnia, por um lado, por outro, soa plenamente razoável que um curso universitário de licenciatura em matemática explore diferentes métodos de ensino-aprendizagem.

Uma coisa que muito me incomoda é quando alguém assume uma tonelada de premissas que não deixa claras e sai concluindo por efeito dominó a partir de uma mera impressão.

A pessoa toma impressão por evidência, evidência por prova, prova por prova cabal, prova cabal por não-há-possibilidade-nesse-universo-disso-aqui-na-minha-frente-não-ser-o-que-me-parece. No meio do caminho, ainda, sai assumindo que os únicos neurônios do mundo que funcionam são os seus: e sequer passa pela cabeça que teve um contato superficial com a questão.

A nossa mania de debochar está nos tornando irracionais, estúpidos e insuportáveis. Em geral você não é mais esperto porque gosta de ironia e sarcasmo — aliás, a chance de você parecer um ornintorrinco tentando patinar no gelo é gigantesca. Provavelmente é só babaca mesmo.

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