Um jogo para criadores de conceitos
para Pedro Paulo Rocha
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Este é um ensaio-jogo inspirado principalmente por Mil Platôs, obra escrita por Gilles Deleuze e Félix Guattari (doravante, D&G). Não é preciso conhecê-la para acompanhá-lo, mas pode ajudar. Modos de jogo:
- leia sucessivamente e invente um sentido para a nossa numeração aleatória
- (per)siga, aos saltos, uma ordem numérica linear (crescente ou decrescente)
- lance até nove dados de seis lados (d6), vá à casa correspondente e leia
Vencem todos os que concluírem as seções do ensaio, de um jeito ou de outro.
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Perguntar-se de saída: estou em um platô?
Proceder à resposta por revisão bibliográfica:
[…] jamais um platô é separável das vacas que o povoam e que são também as nuvens do céu). […]
É forçoso, pois, descobrir: onde estão nossas vacas? Onde estão nossas nuvens?
Levar essa pergunta a sério.
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Foucault anunciou que um dia “o século será deleuziano”. O que ele quis dizer com isso?
Perguntado sobre, Deleuze disse:
Não sei o que Foucault queria dizer, nunca lhe perguntei. Foucault tinha um humor diabólico. Talvez quisesse dizer isto: que eu era o mais ingênuo dos filósofos da nossa geração.
O que claramente não tem nada a ver. Deleuze poderia ser o mais ingênuo dos filósofos sem que isso afetasse o destino dos séculos. Por que Deleuze evita responder à questão? Depois de frisar que não se vincula a nenhuma das correntes intelectuais pujantes na época, diz:
É talvez isto que Foucault queria dizer: eu não era o melhor, mas o mais ingênuo, uma espécie de arte bruta, se se pode dizer; não o mais profundo, mas o mais inocente ( desprovido da culpabilidade de “fazer filosofia”).
Por que Deleuze evita responder à questão? Se a intenção de Foucault fosse tal qual ele cria, restaria a pergunta sobre por que a inocência e a bruteza tomarão o século para si.
Um dia o século será bruto e inocente?
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Segundo o Michaelis, platô: 1) planalto.
Usar “platô”, mais incomum na nossa língua cotidiana, faz perder de vista a familiaridade do termo: Mil Planaltos não soa simplório?
Podemos dizer, em termos D&G, que o uso de “platô” no português desterritorializa o livro. A lembrança de “planalto” o reterritorializa. Os tons geográficos da palavra são ressaltados.
Haveria voluntária ou involuntariamente em Mil Platôs um apelo à paisagem francesa? Talvez não mil, mas há muitos platôs por lá. Um sexto da terra natal de Deleuze é constituído pelo Maciço Central, que, localizado no centro-sul do país, é no geral composto de planaltos e já foi chamado Platô Central da França. O Oeste do país, por sua vez, foi qualificado por René Musset como um “platô ondulado”. Ademais, poderíamos citar dezenas de platôs franceses: Plateau de Brabois, Plateau de la Danse, Plateau du Limon, Plateau de la Garoupe…
O Brasil tem 11 planaltos.
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Proposta de uma heurística: multiplicar as variações da frase “como criar para si um Corpo sem Órgãos”. Seguem abaixo exemplos não-exaustivos dessa ferramenta:
- Como criar para si uma subjetividade sem presente, passado e futuro?
- Como criar para nós uma universidade sem divisão de trabalho?
- Como criar para nós um evento acadêmico sem debates e palestras?
- Como criar para nós um debate sem posições e contraposições?
- Como criar para todos um País sem Federação?
- Como criar para todos um estado sem cidades?
- Como criar para todos uma cidade sem bairros?
- Como criar para todos um bairro sem residências e empresas?
- Como criar para o mundo informação sem emissores e receptores?
- Como criar entre nós arte sem artistas?
- Como criar para os outros arte sem o circuito das artes?
- Como criar para si um maquinário de D&G sem seu vocabulário?
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O que é máquina de guerra e o que é aparelho de Estado aqui e agora?
D&G descrevem a máquina de guerra, da qual um exemplo é o nomadismo, não só como um foco de criação de novos espaços de vivência e de sentido, mas como algo que pressupõe – tem em seu horizonte – o Estado, inscrevendo em si meios de afastá-lo de si, impedi-lo de se realizar nela mesma. E D&G descrevem como o aparelho de Estado, figura de organização e controle, criador de espaços de desenvolvimento, se apropria da máquina de guerra e a faz funcionar nos seus termos. Há idas e vindas nesse jogo: o que se captura transborda, o que transborda está aberto à captura, o incapturável pode ir à outra decadência (há um perigo da linha de fuga absolutizada, linha suicidária, dita fascista). D&G conjuram o maniqueísmo.
Postulado: essa estrutura e essa dinâmica existem, de maneira como que metáforica, em uma variedade de circunstâncias. Para evidenciá-las, podemos usar os conceitos de D&G como filtros coloridos ou lentes. Assim, como quem altera composições em um caleidoscópio, nos fazemos ver realidades subjacentes. Um exemplo prático disto, você me pede? Toma:
O que é máquina de guerra – linha batedora – e o que é aparelho de Estado – linha agrimensora – nas dinâmicas da Universidade? A história da filosofia registra estruturas e dinâmicas do tipo nas relações tensas e rugosas entre, no medievo, a filosofia grega e a religião cristã; a filosofia árabe e a filosofia europeia; o humanismo e a escolástica. E hoje? E no Brasil? Um pensador como Nêgo Bispo é máquina de guerra? A universidade o enquadra feito aparelho de Estado?
Suponhamos que em um encontro de pesquisadores sobre Deleuze dois grupos distintos – em origem, em composição, em lealdades, em perspectivas – se relacionem. Quem faz o papel de máquina de guerra? Quem o de aparelho de Estado? E qual a fatura?
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Tradutor, traidor mesmo: há um embuste na tradução de D&G ao português.
O embuste é esse: “devenir” é palavra comum no francês; “devir” é incomum no português. E sobretudo a declinação desta última não existe na nossa rotina: quem fala “devim”, “deveio”?
A um francês, essa chave-mestra do vocabulário Mil Platôs não soa exótica, por mais provida de novos sentidos que esteja. Ouvir que as coisas devêm ou que talvez devenham não causa qualquer sobressalto a ele. No entanto, em português, o termo salta sobre nós.
Portanto, como se diz em videogame, Deleuze precisa ser localizado. Em PT-BR o que pega é o verbo virar. Por acaso Ney Matogrosso canta
devém, devém, devém
devém, devém, devém homem
devém, devém
lobisomem
? Claro que não. E se “devir” remete à imagem de uma linha, “virar” figura o eixo. De um lado, o ir em frente; do outro, o giro. De um lado, a construção; do outro, a substituição.
Todo raciocínio que se refere a “um lado” e “outro lado” é regido pela ontologia do eixo.
Em PT-BR, portanto, a modificação que resguarda seu oposto e a possibilidade de retorno. A circunstancialidade e a funcionalidade das posições do ser. Tarefa: descobrir em que a cultura do país é determinada pela epistemologia, pela estética, pela ascética do eixo.
Por exemplo: as crianças francesas jogam bafo?
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Foucault anunciou que um dia “o século será deleuziano”. Ouvi falar que o que ele quis dizer é que a filosofia de Deleuze um dia será comum, típica, vulgarizada (“século” no sentido de “mundano”). Assim como Marx e Freud, Deleuze se tornaria o pão nosso teórico de cada dia.
Isto já aconteceu? Deleuze deveio trivial, com todas as degradações que isso implica?
Ou será que foi e deixou de ser? (E deveríamos exigir: make the century deleuzian again?)
Ou isto ainda está para acontecer? Talvez tenha ocorrido nesse caso o que sempre se passa com os destinos ditos inevitáveis: invariavelmente pedem muito de nós para que se efetivem.
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Perguntar-se de saída: isto é um platô?
(Isto se refere a que? A este texto? Ao momento em que ele é lido? A quaisquer situação?)
Proceder à resposta por revisão bibliográfica:
[…] Quando os gregos antigos falam do espaço aberto do nomos, não delimitado, não repartido, campo pré-urbano, flanco de montanha, platô, estepe, não o opõem à agricultura, que, ao contrário, pode fazer parte do nomos; eles o opõem à polis, à urbe, à cidade. […]
Possibilidade de se transportar – idealmente e, portanto, efetivamente – a um platô por meio da negação da cidade? Como se recusa uma cidade? Ou por meio da negação da polis?
Se eu fosse D&G, desejaria que este ensaio fosse lido só por quem subjetivou-se num platô.
Mas eu não sou.
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Só a piada fácil nos une: talvez a contribuição que o Brasil possa dar à história da filosofia seja a construção do trocadilho como gênero filosófico. Justificativas para tal são expostas abaixo. Chamemos o que segue de Manifesto do País da Ironia Socrática Pronta.
Shakespeare, pela boca de Julieta, se perguntou: o que há numa palavra? O trocadilho se pergunta: o que se pode pôr numa palavra? Podemos pôr “e aí, beleza?” em “Deleuze” e produzir um: “e aí, beleuze?” (no qual a graça não se separa de dispositivos de recorte de público e de dessacralização). Podemos achar “Deus” em “Deleuze” e transtornar todo uma variedade de frases comuns da língua. Seguem exemplos não-exaustivos:
- Deusleuze escreve certo por linhas tortas
- Deusleuze dá o frio conforme o cobertor
- Deusleuze ajuda a quem cedo madruga
A palavra é um corpo com órgãos, funcionando em corpos com órgãos – frases, parágrafos, gêneros textuais. O trocadilho no seu primeiro momento tem órgãos de mais – quatro fígados, dois corações, sete peles – e, assim, órgãos (no significado próprio de componentes de um organismo, estrutura de funções e subordinação a um objetivo total) nenhuns. “Coloquei um pulmão a mais aqui só pra fazer uma graça!”
Como criar para si um corpo sem órgãos? Ora, basta fazer um trocadilho! A palavra, estriada nos dicionários, apropriada pelo aparelho de Estado “língua culta”, torna-se lisa e nômade no no trocadilho. A palavra adora os universais. O trocadilho doa ecceidades baratinhas.
Joyce reconheceu a potência das palavras-valise – mas não teríamos mais necessidade de palavras-bexiga ou palavras-pendrive? Com efeito: precisamos das palavras-platô.
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Deleuze denuncia os publicitários como falsos criadores de conceitos. Os marqueteiros, com suas buzzwords, suas etiquetas de tendências, sua busca por essencializar para conquistar, usurpam um espaço de atuação que seria da filosofia. Deleuze demarca então o território dos verdadeiros criadores de conceitos e dos fazedores de anúncio. E declara guerra.
Nunca nas faculdades de publicidade e propaganda nem nas agências de marketing se ficou sabendo que estavam em guerra com a filosofia (cf. Ribeiro, 20231). Mas estou com Deleuze nas trincheiras. Proponho, para que vençamos a luta, roubá-los de volta.
Não só roubar seus pseudoconceitos (ladrão de conceito que rouba ladrão de conceito tem cem anos de perdão) – arrancar do seu vocabulário termos como “modelar” e carregá-los de filosofia –, mas tomar seus procedimentos, utilizando-os para os propósitos da filosofia.
O filósofo como criador de campanhas publicitárias. Melhor: a criação da campanha filosófica.
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Deusleuze joga dados é um ensaio em construção.
Pode e será ampliado no futuro.
Por hoje, deu, Leuze.
Notas