A Odisseia do Espírito, Schelling e o espírito da tradução

Comentários do tradutor ao português de “um tipo peculiar de texto escrito por Schelling, no ano de 1800: a história da consciência”

Busto de Schelling | imagem: Jay

O ano de 2022 foi um ano de grande importância para os estudos do Primeiro Romantismo Alemão (Frühromantik): comemoramos os 250 anos do nascimento de Friedrich von Hardenberg, mais conhecido por seu pseudônimo, Novalis (1772-1801) e os 201 anos das Lições de Erlangen, cursos de filosofia dados por Friedrich Wilhelm Joseph Schelling (1775-1854), que nos legam a inauguração madura de novas maneiras de pensar, da parte desse filósofo alemão, introduzindo novos conceitos – como o êxtase da razão e a co-ciência (Mitwissenschaft) – que conduzirão a sua filosofia tardia, a filosofia positiva (Puente, 1997, p. 59-80).

Esses dois filósofos românticos buscaram novas maneiras de se fazer filosofia: fragmentos filosóficos, romances e poemas com imagens e temas filosóficos, no caso de Novalis; cartas fictícias, diálogos filosóficos, tratados e aforismos, a filosofia positiva, no caso de Schelling. Além disso, encontramos um tipo peculiar de texto escrito por Schelling, no ano de 1800: a história da consciência.

Esse gênero filosófico, relativamente raro, tem como expressão mais famosa a Fenomenologia do espírito (1807), de Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831). No caso de Schelling, a ideia foi desenvolvida antes de Hegel (como foi o caso com muitas intuições filosóficas de Schelling, embora a fama tenha ficado com Hegel) na obra System des transzendentalen Idealismus (Sistema do idealismo transcendental), disponível na íntegra e em português pela primeira vez, a partir de outubro de 2024, publicada pela editora Vozes.

O nome da obra pode remeter a algo de conotações místicas e religiosas e, embora certamente o aspecto místico e religioso esteja presente no pensamento de Schelling desde sua juventude, o sentido de “transcendental” nessa obra é uma filiação parcial ao pensamento de Immanuel Kant (1724-1804), que era “a” referência filosófica do pensamento alemão do final do século XVIII. O termo, em Kant, diz respeito a como a mente humana se relaciona com os objetos do conhecimento, e Schelling associará essa terminologia ao conceito de consciência de si, ou seja, do ato de pensar sobre si próprio, de pensar sobre o próprio pensamento.

O tema da consciência de si, de certo modo já presente em Kant, embora não com esse termo, estará mais intenso na obra filosófica de Johann Gottlieb Fichte (1762-1814), importante interlocutor de Schelling nos primeiros dez a quinze anos de sua atividade filosófica. O sistema é uma tentativa de expor a filosofia como uma totalidade a partir de um só princípio: enquanto (a) o sistema do idealismo transcendental é a busca de uma exposição da filosofia como um todo a partir da consciência de si; (b) o sistema de filosofia da natureza o faz a partir da ideia de natureza como produtividade. Nessa época, os dois caminhos pareciam igualmente plausíveis para Schelling, porém o foco da obra traduzida é o primeiro caso. Sobre o segundo, indico os trabalhos de Kussumi (2023), Rincon (2023) e Assumpção (2022, p. 29-58).

O Sistema do idealismo transcendental é a trajetória da consciência de si, conhecendo a si própria e, posteriormente, suas atividades que usa para conhecer: sensação, percepção, intuição produtiva, juízo, intuição intelectual. Em seguida, a consciência de si, ou seja, a mente humana pensando em si mesma, “pula” de si própria para conhecer o mundo objetivo, externo, contemplando a natureza inorgânica (espaço, tempo, matéria, luz) e a natureza orgânica (vegetais, animais), chegando finalmente a reconhecer outros organismos conscientes de si: outros seres humanos, dotados de mentes conscientes de si.

Com isso, sai-se da epistemologia (ou seja, da teoria do conhecimento) para a ética, para o campo da interação entre mentes humanas, com suas vontades, desejos e limitações. Para regular essas interações, existe a ética e o direito (regulação moral e institucional), além das religiões e das mitologias (regulação simbólica). Por último, o filósofo discute a arte como capaz de integrar o interior e o exterior, a natureza e as consciências de si.

Um ponto muito instigante na obra é a interrelação entre acaso, destino e providência na história, na quarta seção principal, sobre filosofia prática (Schelling, 2024, p. 247-282). Trata-se de um tema pouco explorado nos estudos sobre o jovem Schelling que merece mais destaque, inclusive em termos comparativos com as filosofias da história “rivais” da época: as de Kant, Herder, Fichte, Novalis e, posteriormente, Hegel.

Uma passagem igualmente bela, porém mais explorada e famosa, é no final da sexta seção principal, quando Schelling fala sobre a “Odisseia do Espírito” que, tentando buscar a si mesmo na natureza, foge de si mesmo, da interioridade, apenas para se reencontrar mediante a criação das obras de arte, capaz de integrar natureza e espírito, exterior e interior. A arte, para Schelling, resolve a dualidade do indivíduo moderno e mostra que subjetivo e objetivo são aspectos diferentes da mesma realidade, permitindo uma reconciliação entre ser humano e natureza (Schelling, 2024, p. 302-309).

No que diz respeito ao processo de tradução, foi um grande desafio, por se tratar de uma obra pouco comum de Schelling, precisamente pelo método empregado pelo filósofo, de uma jornada da consciência de si. A obra mescla elementos poéticos, retóricos e lógicos, além de incluir perguntas que, em muitos casos, estão implícitas, e não explícitas ao leitor. Como, em meu processo de tradução, eu zelo muito pela clareza, eventualmente fiz intervenções editoriais explicitando as perguntas.

A metodologia bem delimitada auxilia na busca de clareza e, também, no compromisso de uniformidade com a proposta para o leitor e para a leitora. Houve cotejamento com uma tradução antiga para a língua inglesa, de Heath (Schelling, 2001). Essa tradução auxiliou na busca de alternativas e na elucidação de trechos mais obscuros. As opções de tradução, em trechos mais polêmicos, foram sempre discutidas em notas de rodapé, tendo em mente a honestidade e a explicação de alternativas. Algo comum em traduções brasileiras de textos filosóficos em língua alemã é a hifenização de substantivos mais longos. Pessoalmente, não adoto essa opção por achar demasiado artificial no português. Respeito essa escolha e entendo a busca de traduções mais literais e fieis. Todavia, a meu ver, se o próprio alemão atual já é bem diferente do alemão de Schelling, ainda mais o português de hoje, de modo que não busco fidelidade extrema na forma, mas no sentido e no conteúdo.

Sou grato ao amigo e colega prof. dr. Georg Otte (UFMG) pelas ajudas e sugestões no trato com o alemão, durante o processo de tradução. Também sou grato à ma. Rafaela Esch Nóbrega da Andrade pela revisão minuciosa e discussões sobre o texto do filósofo alemão. Aprendi com traduções recentes, especialmente com essa, que traduzir não é um ato individual. Além de estar em contato com o pensamento de outra língua e de outra cultura, existe todo um trâmite editorial e o trabalho de muitas pessoas, sem as quais o produto final ficaria muito aquém do possível.

A tradução conta com uma introdução minha (Assumpção, 2024, p. 9-26) e com notas também feitas por mim. Para isso, consultei intérpretes nacionais e internacionais, além do aparato crítico da Edição histórico-crítica (Schelling, 2005). Foi uma oportunidade única revisitar essa obra, que foi crucial na minha pesquisa de doutorado, que resultou na obra Criação das artes plásticas e produtividade da natureza em Friedrich Schelling, especialmente no segundo capítulo, no qual discuti o conceito de gênio na obra de Kant e em Schelling (Assumpção, 2022, p. 61-74). O texto dialoga com outra obra do filósofo alemão, publicada no mesmo ano de 1800, que também traduzi na íntegra para o português brasileiro: a Dedução geral do processo dinâmico, especialmente os §§ 60-63 (Schelling, 2018, p.85-88).

Referências:

ASSUMPÇÃO, G. A. Consciência de si e idealismo objetivo no jovem Schelling. In: SCHELLING, F. W. J. Sistema do idealismo transcendental. Trad. Gabriel Almeida Assumpção. Petrópolis: Vozes, 2024, p. 9-26.

ASSUMPÇÃO, G. A. Criação das artes plásticas e produtividade da natureza em Friedrich Schelling. São Paulo: Edições Loyola, 2022.

KUSSUMI, M. M. Natureza e Finitude: sobre a noção de individuação em F. W. J. Schelling. In. GUIMARÃES, B. A.; ASSUMPÇÃO, G. A.; OTTE, G. (orgs.). O Romantismo Alemão e seu legado. São Paulo: LiberArs, p. 65-80, 2023.

PUENTE, F. R. As concepções antropológicas de Schelling. São Paulo: Loyola, 1997.

RINCON, M. A. Espinosismo da Física de Schelling. Cadernos Espinosanos, n. 48, p. 181-207, 2023. Disponível em: <https://doi.org/10.11606/issn.2447-9012.espinosa.2023.203719>. Acesso em: 16 set. 2024.

SCHELLING, F. J. W. Dedução geral do processo dinâmico. Trad. G. A. Assumpção. São Paulo: Liber Ars, 2018.

SCHELLING, F. W. J. Sistema do idealismo transcendental. Trad. Gabriel Almeida Assumpção. Petrópolis: Vozes, 2024.

SCHELLING, F. W. J. System des transscendentalen Idealismus. In: SCHELLING, F. W. J. Friedrich Wilhelm Joseph Schellings sämmtliche Werke. Primeira divisão, terceiro volume. Stuttgart/Augsburg: Editora J. G. Cotta, 1858, p. 327-634. Disponível em: <https://archive.org/details/ab1smtlichewe03sche/page/n7/mode/2up>. Acesso em: 16 set. 2024.

SCHELLING, F. W. J. System des transscendentalen Idealismus (1800). In: SCHELLING, F. W. J.  Friedrich Wilhelm Joseph Schelling Historisch-Kritische Ausgabe. Reihe I: Werke 9, Teilband 2. Harald Korten e Paul Ziche (Eds.). Stuttgart: Frommann-Holzboog, 2005.

SCHELLING, F. W. J. System of Transcendental Idealism. Trad. P. Heath. 5. ed. Charlottesville: University Press of Virginia, 2001.

Autor

  • Professor convidado na PUC-Minas Virtual, onde leciona Psicologia Positiva. Também é tutor à distância do Curso de Licenciatura em Filosofia, modalidade à distância, da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ) (Bolsista CAPES-UAB) e tradutor freelance para a Editora Vozes. É doutor e mestre em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), licenciado em Filosofia pelo Centro Universitário Internacional Uninter e bacharel em Psicologia pela UFMG. Traduziu as seguintes obras filosóficas do alemão para o português: Sistema do idealismo transcendental (1800) e Dedução geral do processo dinâmico (1800), de Friedrich W. J. Schelling; O esboço geral: notas para uma enciclopédia românticaFilosofia da crise ecológica: conferências moscovitas (1991) e Forças centrífugas globais (2019), de Vittorio Hösle. Também traduziu, do inglês para o português, Estética: uma breve introdução (2019), de Bence Nanay.

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