A Moda como Organização Social da Aparência em Walter Benjamin

Para o filósofo, a moda está tanto a serviço da classe dominante, pela repetição da história, quanto da revolução, como transfiguração de sentido do passado

“O que diferencia Benjamin é a sua capacidade de elevar a moda, revestindo-a de seriedade crítica” | Imagem do livro “Little folks in Busy-land” (1916), de Ada Van Stone Harris e Lillian Mclean Waldo/Flickr

Durante os anos de exílio em Paris entre 1927 a 1940, Walter Benjamin dedicara-se na Biblioteca Nacional da França a pesquisas e anotações de citações tomadas de empréstimo a autores que constituíram o imaginário cultural do capitalismo durante a modernização da metrópole da Paris do Segundo Império. Dedicado ao tema da moda, o “Arquivo B” desse trabalho, intitulado Passagens (1927-1940), durante muito tempo permaneceu no silêncio das pesquisas acadêmicas, ora aparecendo apenas como comentário sobre as noções de fetichismo da mercadoria ou como estratagema da burguesia em manter sua distinção social para o projeto de dominação política e econômica. À época, Benjamin filiava-se, ainda que de modo indireto, a uma incipiente tradição da teoria da moda, iniciada em 1899 com a publicação de A Teoria da Classe Ociosa, de Thorstein Veblen, e a publicação do ensaio Filosofia da Moda (1905) de Georg Simmel – este último professor de Benjamin durante a sua formação no curso de filosofia na Universidade de Berlim.

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No entanto, o que diferencia Benjamin dos teóricos anteriores e posteriores de moda é a sua extraordinária capacidade em elevar o conceito de moda às ciências humanas, revestindo o objeto de seriedade crítica ao lhe colocar em relação com as categorias de pensamento, as ideias, conceitos e noções da tradição filosófica. Destaca-se também a capacidade benjaminiana em tematizar a moda para além de certa visão herdada de um “marxismo vulgar”, que apenas observou a moda pelo seu caráter negativo, isto é, como capricho da classe dominante para a manutenção de seu poder. Em Benjamin, a moda aparece num duplo estatuto, dialético, positivo e negativo, ou seja, a moda a serviço da classe dominante pela noção de repetição da história, mas também da revolução como transfiguração de sentido do passado que se atualiza no presente.

Entre 2019 e 2022, dediquei-me ao mapeamento do conceito de moda nos ensaios de Benjamin, especificamente nas Passagens e na “Tese XIV” de Sobre o conceito de história (1940). O objetivo desta pesquisa, que resultou em dissertação de mestrado defendida no departamento de pós-graduação em filosofia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), foi o de compreender e expor as dimensões negativas e positivas da moda, sua capacidade em figurar o tempo histórico, tanto o do historicismo criticado por Benjamin como sua reversão dialética na proposta metodológica presente nas teses para se pensar a história como modelo temporal da diferença, crítica às versões mitigadas da história oficial.

Durante a arguição, nada resumiu tão bem a intenção deste trabalho como as palavras da filósofa Olgária Matos, presente na banca avaliadora. Destaco-as:

Este trabalho nos mostra, em ato na moda, a imagem como imagem dialética, imagem onírica, utopia, pela constelação de símbolos, metáforas, alegorias e crenças que constituem o imaginário de uma época, em particular a moda na sociedade da reprodutibilidade técnica, de massa e do espetáculo. É sobretudo na moda indumentária que se revela vestígios do tempo passado que se chocam com o contexto social, político, econômico e cultural inédito. E isso porque, Brunno nos mostra, o passado, para Benjamin, não é só o que passou, mas também o que não adveio, as promessas decepcionadas, os instantes nos quais a vida poderia ter tomado um outro rumo, os sonhos e esperanças soterradas sob a pátina dos hábitos. Na moda, nas aparências encontram-se imagens que esperam ser exumadas.

A moda a serviço da classe dominante e a serviço da revolução

Para Benjamin, a modernidade não é apenas “um palco da aura mercantil do sempre novo”1, mas, como duplicação da “história petrificada” do barroco teatral – o Trauerspiel do século XVII –, converte a história, reino da liberdade e da contingência, em história natural, do mito e do necessário, identificando o progresso com o eterno retorno do mesmo. Neste sentido, a moda, sendo a organização social da aparência, mantém o desejo da classe dominante em paralisar o tempo histórico pela repetição do sempre-igual nos artigos de massa: “Os donos do poder sentem uma imensa aversão a grandes transformações. Desejam que tudo fique como está, por mil anos de preferência”, diz Brecht citado no “Arquivo B” 2. A moda é uma organização social da aparência, pois mascara a intenção do capital, que deseja que tudo permaneça como está, uma vez que as mudanças estilísticas promovidas pelos costureiros a cada estação, e inspiradas no antiquado do passado, causam um sentimento de identidade e ciclicidade (repetição do sempre igual), ou seja, queiramos ou não as coisas pouco mudam.

Pela ciclicidade da moda, a classe dominante mantém a falsa aparência de mobilidade repetindo o passado: “A Revolução Francesa compreendia-se como uma Roma retornada. Ela citava a antiga Roma exatamente como a moda cita um traje do passado”, diz Benjamin na “Tese XIV”. No entanto, apesar de manter a ideia de que a moda está a serviço dessa mesma classe, Benjamin opera pela dialética negativo/ positivo, isto é, reside na crítica ao historicismo da “Tese XIV” uma reversão dialética, pois, na leitura proposta por Olgária Matos, a relação com o passado pode ser lida em uma dupla possibilidade: “Uma, que se efetiva imediatamente – relação de identificação -, e outra, que extrai o excedente de significado no interior desse mesmo passado, o que permaneceu virtual” 3.O que Benjamin compreende como esse “caráter excedente?”. Para ele, “(…) escrever a história significa, portanto, citar a história. Ora, no conceito de citação está implícito que o objeto histórico em questão seja arrancado de seu contexto” 4.

Nessa reversão dialética, a moda aparece como temporalidade que busca “interromper o curso natural” do historicismo, do falso progresso, da pretensa linearidade da história oficial, ao realizar, pela citação, uma transfiguração de sentido da moda antiquada do passado que se atualiza como o moderno no presente. Pelo salto de tigre (Tigersprung) em direção ao passado atualizado no presente, esse mesmo passado retorna, não como identidade, mas como modelo temporal da diferença, uma “repetição transfigurada pelo choque do que já foi com o atual” 5.

O passado adquire o caráter de uma atualidade superior graças à imagem com a qual e através da qual é compreendido. Esta perscrutação dialética e a presentificação das circunstâncias do passado são a prova da verdade da ação presente. Ou seja, ela acende o pavio do material explosivo que se situa no ocorrido (cuja figura autêntica é a moda). Abordar desta maneira o ocorrido significa estudá-lo não como se fez até agora, de maneira histórica, mas de maneira política, com categorias políticas. Moda.6

Para se libertar do “Era uma vez…”, a repetição do sempre-igual7, a relação dialética entre passado e presente expõe um dos objetivos metodológicos da historiografia benjaminiana, isto é, a substituição da categoria de progresso pela de atualização8. Importante categoria do léxico benjaminiano, a atualidade, como destaca Márcio Seligmann-Silva, significa a capacidade que uma ideia tem de ir ao encontro de seu presente possibilitando uma mudança. De acordo com Benjamin, a figuração da moda e a sua aparição pelas formas da vestimenta que atualizam o objeto do passado, ressaltando uma intimidade entre o “ocorrido” e o “agora”, serve como método crítico-epistemológico para o filósofo e para o historiador do materialismo. Pela apreensão das imagens de moda no presente, “cada estação (…) traz em suas novas criações alguns sinais secretos das coisas vindouras”:

Para o filósofo, o aspecto mais interessante da moda é sua extraordinária capacidade de antecipação. É consenso que a arte, muitas vezes, geralmente por meio de imagens, antecipa em anos a realidade perceptível (…) Da mesma forma, a sensibilidade individual de um artista em relação ao futuro ultrapassa em muito aquela da dama da sociedade. E, entretanto, a moda está em contato muito mais constante, muito mais preciso, com as coisas vindouras graças ao faro incomparável que o coletivo feminino possui para o que nos reserva o futuro. Cada estação da moda traz em suas novas criações alguns sinais secretos das coisas vindouras, e quem os soubesse ler, saberia antecipadamente não só quais seriam as novas tendências da arte, mas também a respeito das novas legislações, guerras e revoluções. Aqui, sem dúvida reside o maior encanto da moda, mas também a dificuldade de torná-lo frutífero 9.

Ao historiador do materialismo cabe a percepção que, ao contrário do historicismo, os objetos não são fatos consumados, mas “tensão” entre o “ocorrido” e o “agora”, que provoca a “paralisação, em imagens que relampejam no instante, do que se viveu de mais intenso e, por isso, inesquecível”10. Para Benjamin, a relação entre a moda e a revolução é possível pela capacidade do criador de moda em “interpretar os sonhos” de sua época. Ao deslocar o sentido originário pela citação, a moda também figura a noção de “imagem dialética” como aparência, colocando-se a serviço da revolução como propedêutica ao método crítico-epistemológico do materialismo benjaminiano. Contrapondo-se à concepção de dialética da tradição ao fazer uso da imagem – para alargamento da razão – Benjamin visa apresentar no esboço das Passagens e nas Teses a história materialista como imagética (Bildhaft), “num sentido superior que a representação tradicional”11.

Essa justaposição das imagens extremas, a intimidade entre o “ocorrido” e o “agora” (na revolução, as imagens dialéticas) promove o modelo temporal da diferença, uma “repetição transfigurada pelo choque do que já foi com o atual”, pelas modas antiquadas do passado que se atualizam em uma imagem de moda que lampeja no presente. Colocando a moda contra ela mesma, reside na “Tese XIV” uma reviravolta dialética que desmascara o desejo da classe dominante em manter a história oficial como repetição pela identidade, como linearidade e ciclicidade infernal. Trata-se, pela experiência da imagem dialética na revolução, em dissipar a aparência (Schein) da repetição do sempre-igual na história, e, desta maneira, aproximá-la da experiência política, isto é, a história enquanto falsa aparência do passado consumado, da linearidade e do progresso, pois, como ressalta Benjamin, “a experiência política autêntica está absolutamente livre desta aparência”12.

Ao se propor como “fenômeno natural”, uma necessidade e destino históricos, o capitalismo reitera, pelas “imagens oníricas, de desejos e utopia”, um “novo sonho”, a “reativação das forças míticas”13. Assim, em seu aspecto negativo, pela ciclicidade e repetição do sempre-igual como no tempo mítico, a moda figura através das suas incessantes produções da novidade (nouveauté) o caráter onírico do capital. Nesse aspecto, há um novo reverso dialético, pois a própria noção de “imagens oníricas, de desejos e utopia”, remete a um procedimento metodológico para o despertar: “As imagens do século XIX, um espaço de tempo (Zeitraum), um sonho de tempo (Zeit-traum)”, diz Benjamin, “no qual a consciência individual se mantém cada vez mais na reflexão, enquanto a consciência coletiva mergulha em um sono”14; é a propedêutica para a interpretação do próprio século XIX, seja “na moda e no reclame, na arquitetura e na política, como consequência de suas visões oníricas”.

Dispensando a oposição cartesiana entre o sono e a vigília (despertar revolucionário), a psicanálise revertera essa dicotomia, pois, na leitura de Benjamin da tradição freudiana, a oposição das categorias de sono e vigília, “(…) não tem valor algum para determinar a forma de consciência empírica do ser humano, mas cede o lugar a uma infinita variedade de estados de consciência concretos”. Tanto a arquitetura como a moda, e até mesmo o tempo atmosférico, são os reversos no coletivo dos processos naturais orgânicos individuais, “o sentimento de estar doente ou saudável”, e “enquanto mantêm sua forma onírica, inconsciente e indistinta, são processos tão naturais quanto a digestão, a respiração, etc”. Os objetos da história cultural, incluindo a moda, “permanecem no ciclo da eterna repetição até que o coletivo se apodere deles na política e quando se transformam, então, em história”.

Referências Bibliográficas

BENJAMIN, Walter. Passagens. Trad. Irene Aron e Cleonice Paes Barreto Mourão. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2018.

MATOS, Olgária. “Aufklärung na Metrópole: Paris e a Via Láctea” In: Benjaminianas: cultura capitalista e fetichismo. São Paulo: Editora UNESP, 2010

MATOS, Olgária. Os arcanos do inteiramente outro – A escola de Frankfurt, a melancolia e a revolução. São Paulo: Editora Brasiliense, 1989.

SCHLENESER, Anita Helena. Os tempos da história: leituras de Walter Benjamin. Brasília: Liber Livro, 2011.

Autor

  • Pesquisador em filosofia, ciências humanas e teoria de moda pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Foi curador e pesquisador da exposição Ema e a Moda no século XX – as roupas e a caligrafia dos gestos, na Casa Museu Ema Klabin. Atua também como professor e coordenador pedagógico. É autor do livro O Teatro de Brunno Almeida Maia (2014) e trabalha em Tempos de exceção: ensaios sobre o contemporâneo. Acesse seu Lattes.

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