É possível ensinar pensamento crítico?

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“A ideia de uma educação para o pensamento crítico se confunde com a própria origem da filosofia” | imagem: Corey Leopold

Na visão da maioria dos educadores um dos grandes objetivos da educação é ensinar alguma forma de pensamento crítico. Muitos defendem que se contraponha à transmissão passiva de conteúdo um modelo de verdadeira formação, em que o pensamento dos alunos se desenvolva, assim como suas habilidades. Isso é de modo geral ponto pacífico na área. Menos pacífico vai ser definir o que exatamente seria esse pensamento crítico e como ensiná-lo.

Parece que de modo geral as pessoas têm ideias mais ou menos intuitivas sobre isso, e nem sempre se preocupam em explicitá-las. Provavelmente os intelectuais em sua maioria julgam a si próprios como bons detentores de um pensamento crítico, julgam que seu modo de pensar é o mais adequado e que possuem no pensamento algo que pode faltar aos outros (caso alguém não julgasse que pensa bem, se apressaria em mudar suas próprias ideias). Essa situação de todos se considerando bons pensadores críticos talvez ecoe a famosa frase de Descartes, quando diz que o bom senso é a coisa mais bem distribuída no mundo, já que ninguém pensa que precisa ter mais do que já tem. Ainda assim, basta ver o que cada um pensa do bom senso (ou do pensamento crítico) de outros, dos que discordam deles, que notamos que essa percepção própria pode não ser verdadeira para todos ao mesmo tempo. De fato, se olharmos para nosso próprio passado muitos de nós – que mudamos nossas ideias com o passar do tempo – podemos pensar que em outras épocas não tínhamos o grau de crítica que temos hoje. Agora imaginemos um professor de filosofia ou outros ramos de humanas que pretenda ensinar aos seus alunos adolescentes o seu pensamento crítico: ele provavelmente pensa que tem um pensamento do tipo para ensinar, mas estaria ele correto em pensar isso?

História do pensamento crítico e do ensino de virtudes

Seria tão fácil para um professor ensinar o pensamento crítico? Seria mesmo possível? A ideia de uma educação que o faça remete ao pedagogo John Dewey, com quem surge propriamente a ideia de ensino crítico, mas possui antecedentes: com outros termos e perspectivas, uma busca por isso certamente se confunde com a própria origem da filosofia. Já nos gregos antigos esse tipo de questão aparece. 

Platão, em seu diálogo Mênon, apresenta por meio de Sócrates um debate sobre a possibilidade de ensinar a virtude (e o pensamento crítico pode ser colocado como uma virtude, como veremos abaixo) e questionando as visões correntes sobre o assunto. Os opositores de Platão em sua época pretendiam ensinar a virtude, mas para o autor não parecia tão óbvio que eles o conseguissem. Talvez muitos hoje apreciem de alguma forma a solução de Platão, segundo o qual o aluno já traz dentro dele os conhecimentos que precisa aprender (o que é fundamentado na metafísica platônica, segundo a qual a realidade é uma cópia de ideias ou arquétipos que existem por si, conhecidas pelas almas já antes de nascer), bastando apenas que se relembre, que as explicite. Ainda que sem referência a ideias que traríamos desde o nascimento, abordagens contemporâneas em pedagogia também propõem que os alunos podem trazer consigo já seu conhecimento, e por isso defendem respeitar os saberes e autonomia dos alunos, como em Paulo Freire. Pensando desse modo retornamos a nossa pergunta: com o papel mais reduzido do professor e maior do aluno estamos mesmo ensinando o pensamento crítico?

Também entre os antigos temos Aristóteles com sua proposta de ética, baseada em virtudes. Ele defendia virtudes que nos direcionam a uma finalidade, uma boa vida, segundo suas noções. O autor nos apresentava virtudes morais e intelectuais, sendo essas últimas as qualidades da mente que nos levam à verdade. Certamente o que chamamos hoje de pensamento crítico se identificaria como uma virtude intelectual nos termos de Aristóteles. E como ensinar? O filósofo tem toda uma proposta ética sobre isso, mas um ponto relevante é que ele defendia que a virtude resulta do hábito. Seria algo que precisamos aprender na prática.

Mas o que é pensamento crítico?

Estamos nos alongando aqui falando de pensamento crítico, virtudes, e se é possível ensinar essas coisas, mas, afinal, o que é isso que chamamos de pensamento crítico? O termo é usado de modo vago e ao gosto do freguês (embora seja possível um tratamento adequado do tema, como podemos ver nesse texto introdutório da Enciclopédia de Filosofia Stanford, em inglês). Talvez um ateu pense que rejeitar os dogmas religiosos seja o essencial do pensamento crítico. Já um colega dele, engajado em pautas políticas e preocupações sociais, vai entender o pensamento crítico como perceber certas pautas políticas que lhe são caras. Através da história, a postura de questionamento do filósofo foi, talvez, o que mais se aproximou de uma ideia de pensamento crítico, tal como já vemos em Sócrates (retratado por Platão). Essa postura era muito bem representada pelo ceticismo, e todos os filósofos que se influenciavam por essa vertente. O ceticismo através da história já apareceu de diversas formas, mas de modo geral busca duvidar de conhecimentos estabelecidos e rejeitar teorias (como fizeram os pirrônicos), ou duvidar de conhecimento que não seja bem estabelecido com critérios definidos por alguma teoria (é o caso de Descartes). Ainda assim, muitas vezes quem defende um ensino de pensamento crítico não segue critérios como os dos céticos, principalmente com suas próprias ideias, que raramente questiona.

Algo que parece bastante perigoso nas pretensões de ensinar a crítica é a crença de isso consistindo nas ideias preconcebidas de quem ensina ou em um determinado corpo de conhecimento que se pretende crítico. Obras, correntes de pensamento e programas de pesquisa se apresentam como “críticos”.

A aplicação do termo no sentido que usamos hoje talvez tenha nascido com Kant, que escreveu três obras intituladas com essa palavra (a crítica, no filósofo, se refere à análise das condições do uso da razão e da atividade prática). Em especial existe também uma confusão frequente em associar a ideia de um pensamento crítico (mais amplo e bem anterior) ao ramo da filosofia chamado Teoria Crítica – mais conhecido talvez como Escola de Frankfurt, nome que se refere a primeira geração de pensadores dessa tendência (voltaremos a isso abaixo). Veja bem, não se trata de renegar essa vertente de pesquisa ou de dizer que ele não possa ser também pensamento crítico; contudo, talvez por conta do nome, talvez por conta das pretensões dessa escola de pensamento, muitas vezes associamos essas duas coisas como se fossem a mesma. E isso não é verdade. Se não for bastante para provar isso apontar outros desenvolvimentos do pensamento crítico na história ou na atualidade, resta dizer que uma corrente que se feche em si mesma assim, que se considere o único pensamento crítico, por isso mesmo não o pode ser. Entretanto, essa conclusão pede mais explicações.

Qual o problema de considerar que só um tipo de pensamento específico seja crítico? Primeiramente, a dificuldade é que para isso é preciso partir do pressuposto que ele seja necessariamente um conhecimento verdadeiro. Sendo assim, o que o aluno precisa fazer para ser crítico é apenas repetir aquele pensamento verdadeiro apresentado como conhecimento. Ou seja, não é uma habilidade, mas um conteúdo que pode ser imposto hierarquicamente por um professor.

Em segundo lugar, cada um vai pretender que o seu conhecimento seja o pensamento crítico. Sim, aquele ateu de antes vai pretender que sua crítica à religião seja o pensamento crítico, mas de outro lado um religioso erudito e com conhecimentos filosóficos vai acreditar que a sua posição é mais crítica, capaz de perceber os enganos do opositor. Independente de qual dos dois esteja certo, não se pode escolher um ou outro lado de antemão, isso deveria ser decidido por debate, argumentos, e ainda assim haveria a dificuldade de escolher quais argumentos são os melhores. O risco aqui é que assumir a sua versão do debate como verdadeira é assumir uma postura dogmática, ter muita certeza de já possuir uma resposta pronta. E isso certamente não combina com o pensamento crítico e sua história.

Por fim, ao fechar o pensamento crítico em um determinado corpo de conhecimento, se exclui do pensamento crítico todos os outros saberes que poderiam ser importantes para a formação daquela mente, talvez conhecimentos que ainda nem temos hoje. É fechar o pensamento crítico de antemão, quando ele pode ser sempre mais.

Teoria Crítica e o pensamento crítico como engajamento

Para reforçar um ponto esboçado antes: identificar o pensamento crítico com a Teoria Crítica muitas vezes já é algo internalizado, e algumas pessoas o fazem mesmo sem perceber. Já entendem essa tradição como o que se espera de um pensamento crítico, mesmo quando não estabelecem isso de forma evidente – muitas vezes, isso é feito com textos e autores da Teoria Crítica, porém em outras não: aparece menos na referência a conteúdos específicos e mais como postura, abordagem, programa de pesquisa.

A proposta da Teoria Crítica é de um comprometimento explícito com uma pauta de emancipação, de melhoria social. Essa vertente defende que é preciso assumir no estudo uma postura política, pois todo estudo já faria isso ainda que se suponha neutro. Desse modo, quem seria “crítico” no sentido de aderir à Teoria Crítica é quem teria um pensamento engajado. Isso se pode ver entre inclusive em muitos que não se filiam explicitamente à Teoria Crítica, mas que também defendem que o pensamento crítico é engajamento político. Desse modo, ensinar o pensamento crítico seria antes de tudo ensinar uma postura política.

Outro problema com essa perspectiva é que ele retira da possibilidade do debate a postura política e muitas vezes mesmo a posição política específica. Se a própria capacidade de pensamento crítico já é adotar aquela posição, então aquela posição não está em debate, pois como pensamento crítico se torna anterior ao diálogo e é, aliás, usada para debater. Nessas condições, como fazemos para saber se aquela postura ou posição política é a correta? Habermas, um grande nome da Teoria Crítica, se opõe a essa forma de pensar a política. Ele insiste que é necessário fazer o debate normativo (ético/político), que usar esse tipo de subterfúgio seria fugir dessa disputa e que isso não seria fazer corretamente a Teoria Crítica1.

Uma abordagem para o ensino do pensamento crítico: virtudes epistêmicas

Nós apresentamos acima várias críticas sobre o que não seria um pensamento crítico adequado, mas desenvolvemos pouco de como realmente ensiná-lo. O que eu defendo neste texto é uma abordagem de entender o pensamento crítico não como um conteúdo, mas como uma habilidade ou capacidade mental. Habilidade que estaria associada por exemplo com as dos céticos, e que poderia ser desenvolvida se praticada (como as virtudes para Aristóteles).

Sendo habilidades a serem praticadas, um professor poderia, independente de uma variedade maior de conteúdos que fossem apresentados, incentivar essas abordagens nos alunos, os levar a praticá-las. Seria o oposto do ensino como transmissão passiva de conhecimento, seria um treinamento de capacidades que poderiam ser aplicadas a diversos conteúdos, uma formação baseada no desenvolvimento intelectual mesmo, e não na repetição de ideias. Assim, um professor pode instigar e exercitar a mente de seus alunos, propondo atividades que treinem sua criatividade, sua capacidade de questionamento, sua abertura a ideias diferentes da sua, entre tantas outras. Alguém com habilidades resultantes desse tipo de educação formadora poderia ser reconhecido como tendo um pensamento crítico independente de se concordar ou não com suas ideias. O debate sobre como fazer isso pode ser longo e abranger muitas visões diferentes.

É importante encerrar lembrando que essa abordagem é uma proposta de pensamento crítico, e que, como tal, ela é aberta, não uma conclusão fechada. O debate sobre virtudes epistêmicas ainda está ocorrendo na filosofia, e é sujeito a críticas. A exemplo do que feito no passado, o essencial do pensamento crítico é que ele permaneça aberto. E, claro, nada impede que a postura crítica, mesmo contestando certas abordagens fechadas, leve algumas mentes a trabalhar com elas. É esperado que o faça, que oriente a conhecer essas ideias e também outras. Pois o pensamento crítico é – por ser crítico – diverso, sempre criticando e não se prendendo a uma só ideia.

Autor

  • Bacharel em filosofia, largou um mestrado em filosofia da ciência. Teve formação bem tradicional, mas fugiu para a filosofia analítica. Possui interesse em diversas áreas filosóficas, questões políticas, sociais. Entusiasta da ciência no geral, da economia, e do bom diálogo aberto e democrático com o diferente. Atualmente, está mudando de área de atuação, estudando programação e tentando escrever romances no tempo livre.

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