A Imaginação Brasileira

No Brasil, o traço característico coletivo é a imaginação, a ilusão, o estado de magia em que a realidade se esvai e se transforma em imagem

“O brasileiro imagina que tão maravilhosa terra não pode deixar de ter um esplêndido destino, e vai para adiante impelido pela fatalidade, na barca da fantasia, certo de representar no mundo o papel que crê estar-lhe reservado” | imagem: Lucas Baisch

texto extraído do livro A Esthetica da Vida (1921), de Graça Aranha
ortografia atualizada por Duanne Ribeiro

Nota do Editor:

Em 2021, comemora-se o centenário de morte de Graça Aranha (1868-1931), escritor e diplomata conhecido por sua participação da Semana da Arte Moderna de 1922 — sendo, sua obra, considerada pré-modernista — e pela publicação do romance Canaã (1902). Úrsula traz aqui uma produção de Graça fora da arte literária — “A Imaginação Brasileira”, ensaio do livro de filosofia e crítica da cultura A Esthetica da Vida, busca interpretar o caráter nacional. Pesados seu colonialismo — sua idealização das nações europeias — e seu racismo — a depreciação do negro e do índio, o texto contém algumas noções que nos servem para pensar o presente do país: nossa visão de mundo seria marcada por uma entrega ao escape imaginário, por um nacionalismo na origem infantil, pela crença de que o destino nos entregará tudo.

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Ninguém pode explicar a alma das raças, pois tudo é misterioso e incerto na psicologia das coletividades.

Mas, ainda assim, pode-se perceber que em cada povo há um traço característico que, embora enigmático, é persistente, vem do passado e será o mesmo no futuro, através das peregrinações do sangue e do espírito. O povo romano, apesar de tudo que absorveu e assimilou, apesar da sua avassaladora expansão no mundo, não perdeu jamais aquela expressão primitiva do egoísmo, que permanece como o segredo da sua civilização. No povo inglês o traço característico é a energia, que de individual se tornou coletiva, a energia de Robinson Crusoé que, pertinaz, indomável, fez a conquista da terra.

O traço definitivo a civilização francesa é a inteligência, que determina a razão, a ordem, a clareza e o gosto. Na Itália seria o sensualismo, do qual nasceu a exaltação artística, a política realista, a Renascença e o Estado. A Alemanha é possuída desse entranhado espírito metafísico que se manifesta no pensamento, na abstração e até na disciplina. As almas estáticas de Santa Teresa e de Dom Quixote, a ingenuidade de Sancho Pancha são expressões da fé transfigurada e mortal em que se consumiu a Espanha.

No Brasil, o traço característico coletivo é a imaginação. Não é a faculdade de idealizar, nem a criação da vida pela expressão estética, nem o predomínio do pensamento; é antes a ilusão que vem da representação do Universo, o estado de magia, em que a realidade se esvai e se transforma em imagem.

As raízes longínquas dessa imaginação acham-se na alma das raças diferentes que se encontraram no prodígio da natureza tropical. Cada povo aí trouxe a sua melancolia. Cada homem carregou no seu espírito o terror de vários deuses, a angústia das lembranças do passado perdido para sempre, e se encheu da indefinível inquietação na terra estranha. Assim desabrochou essa sensibilidade implacável, que engrandece e deforma as coisas, que exalta e deprime o espírito, que traduz as ânsias e os desejos, fonte turva de poesia e religião, por onde aspiramos a posse do Infinito, para logo nos perdermos no nirvana da inação e do sonho.

Os nossos antepassados europeus foram os portugueses, e, de todas as nações latinas, Portugal é a mais indefinível. Não há um conceito capaz de exprimir o singular contraste de toda a alma portuguesa, que oscila incertamente entre o sentimento realista e a miragem. Os lusos foram talvez os mais bisonhos dos bárbaros latinos. Jamais atingiram a claridade do gaulês, nem o misticismo agudo do ibero, nem aquela explosão de animalidade sobrenatural, que é o fundo da sensibilidade estética italiana. A origem espessura os prendeu à terra e formou-lhes o espírito realista. A alma lhes foi humilde; ligaram-se estreitamente às coisas, trabalharam e amaram o solo; e quando lhes chegou o instante da arte, não tiveram a força de criar, de dar ao mundo uma sensibilidade nova, deram forma, e tornaram-se os executores perfeitos das ideias de outros.

É singular que tão intenso realismo floresça ao lado de uma grande tristeza. Roma transmitiu ao espírito latino uma melancolia, que os gregos não conheceram. Ou fosse pela sua dilatação no mundo, pelo próprio frêmito da subjugação dos outros povos, ou fosse pela confluência de tantas raças, de tantos deuses estranhos, ou fosse pela consciência do formidável peso de um destino ainda não igualado, é certo que no sólido e imenso edifício de egoísmo romano argamassa foi umedecida pelas misteriosas lágrimas das coisas, e a infinita solidão dos espíritos se encheu o pavor da noite eterna… Eterna Nox!

A essa melancolia juntou-se na alma dos portugueses a que lhes deu o oceano. O mar lhes foi uma terrível tentação. Por ele atingiram o máximo da energia nacional e por ele se perderam para sempre… Espalharam-se pelo mundo, tiveram fama e glória, e soldados broncos e marinheiros um dia se partiram das suas praias, não mais tornaram, desapareceram no infinito dos mares… e nos olhos, doces e tristes, das mulheres portuguesas vê-se ainda a saudade das caravelas.

Os outros primitivos povoadores do solo brasileiro foram os africanos, que os portugueses aí trouxeram para com eles vencer a natureza áspera e inquietadora. O espírito do negro, rudimentar e informe, como que permanece em perpétua infantilidade. A bruma de uma eterna ilusão o envolve, e o prodigioso dom de mentir é a manifestação dessa falsa representação das coisas, da alucinação, que vêm do espetáculo do mundo, do eterno espanto diante do mistério. A mentira engana o medo, e inventar, imaginar é uma voluptuosidade para esses espíritos grosseiros, fracos e apavorados.

A outra raça selvagem, a raça indígena da terra americana, que é um dos elementos brasileiros bárbaros dessa civilização, transmitiu aos descendentes aquele pavor que está no início das relações do homem e do universo. É a metafísica do terror, que gera na consciência a ilusão representativa das coisas e enche de fantasmas, de imagens, o espaço entre o espírito humano e a natureza.

A natureza é uma prodigiosa magia. E no Brasil ela mantém nas almas um perpétuo estado de deslumbramento e de êxtase. É a eterna feiticeira. Tudo é um infinito e esmagador espetáculo, e os personagens do drama do sortilégio são a luz que dá o outro aos semblantes das coisas, as formas extravagantes, as cores que assombram, o mar imenso, os rios volumosos, as planícies cheias da melancolia do deserto, a floresta invasora, tenaz, as árvores sussurrantes, castigadas pelos ventos alucinados…

E o espírito do homem desvaira… Ele não se sente em comunhão com a natureza. A imaginação faz surgir uma mitologia selvagem, que floresce em seres fantásticos, deuses e lendas. Há um grande enigma no prestígio da natureza sobre o homem, e quase sempre esse é a imagem espiritual do meio físico em que se formou e viveu despercebido. Se ele é um homem do mar, é como um rochedo meditabundo, calado. Se é camponês, a sua íntima representação é a da árvore, imóvel, silente, fecundo. Se é um mineiro, participa da essência misteriosa da terra. No Brasil, o espírito do homem rude, que é o mais significativo, é a passagem moral, o reflexo da esplêndida e desordenada mata tropical. Há nele uma floresta de mitos. São lendas de todas as partes que aí se encontram, lendas do Mediterrâneo harmonioso, da incerta Islândia, dos estepes, das humildes noruegas, do Oriente inverossímil, deformadas em longas peregrinações e entrelaçadas às lendas toscas, grosseiras, vindas na invasão negra, e aquelas que nascem nas selvas americanas, mitos físicos da natureza, formando um só e intrincado todo, misterioso e extravagante, que é a alma do homem brasileiro. E para esta os personagens fabulosos têm uma vida real, são tangíveis e ativos, sejam as belas e enigmáticas mães d’água ou os errantes e tenebrosos curupiras. E o objetivismo mitológico é tão intenso nos espíritos ainda primitivos que não se pode precisar onde começa para eles a realidade objetiva e onde acaba o sonho na floresta dos mitos.

A história social do Brasil é a história dessa imaginação. Durante dois séculos a grande fascinação foi a do ouro. Desenrolou-se em plena natureza o drama de uma ardente e esfalfada cobiça. O país foi todo varado, as matas devastadas, as montanhas desvendadas e estripadas, os campos fendidos, e as feridas da terra, retalhada e escavada para dar a pepita de ouro, se encheram de sangue humano, e o homem cresceu em energia, e o seu poder diabólico de destruir foi uma alucinação… Mas dessa fúria foi nascendo a civilização, amassada no sangue e na alma sobre a Terra maravilhosa. O ouro foi a miragem, depois o poder, a força, a primeira revelação brasileira ao mundo cúpido e deslumbrado. Foi o ponto de partida de outras miragens, e tudo daí em diante é uma ilusão dourada para o mesmo homem, que antes era subjugado e agora se torna destemido, se coloca em desafio diante da natureza bruta e vai por arrancos devastando e criando. A grande adversária pode opor-lhe a tenacidade e a astúcia de uma defesa sem igual em toda a história da civilização. Ele a combate encarniçadamente, conhece-lhe os segredos, defende-se das suas insídias, e pelo ferro e pelo fogo doma-a, faz dela a sua serva, ordena-lhe que o alimente, enriqueça e encante. Foi uma submissão, mas não o apaziguamento: a luta se mantém sempre iminente, o homem está em desafio e a natureza em ameaça. A vida é uma perpétua luta, uma ânsia insaciável de descobrimentos contínuos, um infatigável movimento de conquista, a marcha para o interior do país, uma vaga inquietação, uma instabilidade perturbadora, nessas imigrações incessantes das próprias gentes da terra, que errantes vão para além à busca da riqueza, numa corrida acelerada para a morte, que as espreita nas florestas traiçoeiras e nas pérfidas águas dos rios sinistros. Que importa? Outros homens virão para o triunfo, fascinados, ardentes e ávidos — perpétuos escravos da imaginação…

Mas por um capricho comum do sentimento, essa própria Terra, que o brasileiro combate e martiriza, se lhe torna objeto de veneração e amor. Há uma fatalidade no temperamento da raça para a exaltação. O prestígio da grandeza do território enleva e envaidece o brasileiro. Ele sente-se o homem de uma grande terra e sabe que essa terra é bela. E nessa sedução, nessa dominação da natureza, está a fonte do providencialismo, que exerce no espírito brasileiro a faculdade motora da sua atividade e também de um doce descuido. O brasileiro imagina que tão maravilhosa terra não pode deixar de ter um esplêndido destino, e vai para adiante impelido pela fatalidade, na barca da fantasia, certo de representar no mundo o papel que crê estar-lhe reservado.

E também nesse misticismo físico da grandeza da terra estão as raízes do exaltado patriotismo, que se vai transmitindo às gerações e dá logo à aurora da infância essa ilusão nacional, que enche a criança brasileira do orgulho da luz, do céu, das estrelas e das outras expressões da natureza pátria. As menores coisas se engrandecem nessa miragem infantil. Para uma criança brasileira tudo da sua terra é superior a tudo das outras terras. O Brasil é o país dos maiores rios do mundo, da mais bela baía, e o Pão de Açúcar a mais elevada montanha do globo. E quando a criança percebe o seu erro, chora amargamente essa decepção infligida ao seu patriotismo. Mas a ilusão da grandeza nacional lhe persistirá fecunda no espírito. E, mais tarde, fiel à miragem, a criança se tornará o homem ávido de alargar ainda mais a imensidade da terra brasileira.

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