Um “Elogio de Helena” para nossos tempos

imagem: Matheus Melo

Górgias entrou para a história como uma relevante obra de Platão. Em seus diálogos, Platão confrontava seu personagem (e mestre) Sócrates com outras figuras, e os livros na maioria acabaram sendo nomeados pelo nome do opositor contra quem ele debatia. Nessa obra sobre a argumentação, o opositor é Górgias, um dos mais importantes sofistas da Grécia antiga, um mestre da retórica. Platão se opôs aos sofistas, criticava o exercício da retórica, pois ela seria uma distorção, um vício da argumentação e da filosofia. Seria se importar mais com a forma – ter mais em vista agradar a plateia – e menos com o conteúdo.

Veja também:
>> podcast Sobre os ombros de gigantes: o Górgias, de Platão
>> “Vamos falar de pedofilia, de verdade?“, coletânea de referências

Mas e o outro lado? Como era o ponto de vista de Górgias? O grande sofista também nos deixou obras. Sua visão era diferente, ele defendia o poder da retórica. Essa ferramenta incrível poderia, se usada por um líder competente, conduzir um povo. Poderia mudar o que se pensa de um assunto, salvar um condenado de seus crimes em um julgamento.

Talvez o trabalho mais lembrado de Górgias seja Elogio de Helena. A proposta dessa obra é intrigante. Em uma das histórias mais famosas da cultura grega, contada por Homero na Ilíada, há a figura de uma mulher que teria sido responsável pela guerra de Troia. Muitos gregos morreram nessa guerra, houve muitos prejuízos, e tudo por culpa de Helena, que tinha sido a causa do conflito, pois fora roubada do rei espartano com quem era casada, fugindo com um troiano, o que levou a declaração de guerra e à morte de grandes heróis nas batalhas. É bastante óbvio um componente machista no ódio dos gregos a Helena. Mas o fato é que naquela cultura sua culpa era consenso e ninguém podia defendê-la. Mas Górgias o fez.

Para mostrar a sua habilidade com a retórica, Górgias se propôs ao impensável: e se eu fizesse uma defesa do pior vilão de uma cultura? Aquele que cometeu o mais vil, o mais errado. Aquele que com seus atos ofende todas as sensibilidades, que não pode ser perdoado. E se eu o defendesse? Esse desafio rendeu a Górgias a sua obra e exibiu à história o poder da retórica.

O caso PC Siqueira

E se nós fizéssemos isso agora? E se nos propuséssemos a defender o que tem de pior em nossa cultura? Seria um desafio. Mas por que se faria isso? Veja, na Grécia antiga era importante acentuar o poder da retórica. Os sofistas, oradores habilidosos, tinham também as graças dos governantes, dos poderosos, pois era com a oratória que se conquistava o povo no seu modelo de democracia. No entanto, hoje, provar o poder da retórica não tem tanto apelo. Pelo contrário, todos já conhecem bem o que pode a propaganda sobre as populações, nada precisa ser mostrado.

Temos em nossos tempos outros motivos para o exercício. Por exemplo, vivemos em um Estado de Direito. Isso significa que todos devem estar dentro do alcance da lei, todo poder exercido será feito dentro do que permite a lei, e ninguém está acima da lei, mesmo os líderes, os ricos etc. Isso em termos ideais, claro. Em um estado de direito, toda pessoa que comete um crime tem que ser julgada nos termos da lei, e o réu tem direito a um advogado que o defenda. É exigido pela nossa estrutura jurídica alguém disposto a defender o indefensável. Além disso, a nossa constituição carrega o princípio de presunção de inocência. Isso significa que aquele acusado de crime deve ser considerado inocente enquanto um julgamento não mostrar sua culpa. Pela presunção de inocência, nós não poderíamos em nossa sociedade condenar alguém que ainda não teve um julgamento justo. Isso é importante porque erros acontecem, e alguém condenado pelas multidões – que poderia morrer espancado se entregue ao povo – pode ser inocente, pode ser tudo um terrível engano. De fato, sabemos que na história muitos inocentes já foram condenados a penas severas. Todos esses motivos que eu coloco também fazem parte dos direitos humanos básicos que uma pessoa deve ter. É preciso que alguém defenda o lado odiado, assim como Górgias fez com Helena, e assim como nós fizemos no começo do texto, mostrando o outro lado, a visão de Górgias, que era condenado como adversário de Platão.

E quem eu me proponho a defender nesse exercício? Aqui é a parte polêmica. A pessoa de quem eu tenho sentido vontade de fazer um “elogio de Helena”, é alguém de quem eu mesmo não gosto, e já não gostava mesmo antes de seus supostos crimes. Falar em seu favor já evoca acusações de que seria alguém terrível como ele: o youtuber e influenciador recentemente acusado de pedofilia, PC Siqueira. Por que defender alguém que cometeu algo tão terrível? Primeiramente, porque ainda não sabemos. Temos acusações, denúncias. Sim, pelo que se sabe até agora, tudo indica que seria o caso, os áudios vazados parecem muito reais, o silêncio dele após a exposição, seus amigos abandonando o barco. Mas, ainda assim, nada foi julgado, a polícia ainda não investigou, existe espaço para a dúvida. Áudios vazados, sozinhos, não são prova definitiva (de fato pode haver dificuldade mesmo de usá-los como evidência em tribunais se quem vazou não entregar o celular para a perícia), vamos pensar que, além da possibilidade de serem forjados, sempre existe a possibilidade de terem sido feitos sem plena consciência (pelo uso de drogas) ou mesmo sob algum tipo de coação, por isso materiais desse tipo, sozinhos, não são conclusivos. Pelos princípios dos direitos humanos, ainda não podemos condená-lo apressadamente, ele merece o direito à defesa, a ter sua versão ouvida. Sabemos que PC tem histórico de depressão e que corre grande risco de se suicidar em breve. Imaginem como seria terrível, depois do suicídio, com tudo acabado, descobrirmos que estávamos errados e que ele era inocente. Os policiais investigassem os aparelhos, os vídeos, e concluíssem que se tratava de uma difamação. Apesar disso, como defender o indefensável?

Qual o crime?

Antes de tudo é preciso lembrar do que o estamos acusando. Geralmente falamos de forma geral “pedofilia”. Mas isso é pouco preciso. Não se trata de relativizar ou minimizar o abuso de crianças, que é sim o que tem de mais terrível numa sociedade. Porém o abuso de crianças não é “pedofilia”, embora as coisas estejam próximas.  Na nossa lei o abuso de crianças é o chamado “estupro de vulnerável”. Frequentemente os que cometem estupro de vulnerável são pedófilos, mas nem sempre. Existem por exemplo os que abusam de crianças como exercício de poder apenas, sem sentir desejo, assim como existem os que não tem interesse em geral por crianças mas cometem o crime quando surge uma ocasião que facilite. Os que fazem essas coisas são abomináveis e eu não pensaria em fazer sua defesa.

De modo algum quero, à maneira de Górgias, absolver o denunciado, dizer que foi persuadido e então não teria culpa. Ele tem culpa por tudo aquilo de que participou, por aquilo a que escolheu aderir. Não obstante, analisar o que pode ter acontecido pode nos ajudar a entender o que leva uma pessoa a fazer isso

É preciso acentuar que o “pedófilo” é alguém com uma condição psicológica, definida pelo desejo sexual por crianças. Isso não é um crime. É terrível, é triste, mas não é crime enquanto a pessoa não exerce aquele desejo. Claro, muitos pedófilos vão tentar colocar isso em prática e, aí sim, eles cometem o delito horrível que eu não pretendo defender.

Onde PC se encaixa? Numa área cinza? Sendo verdade as acusações, ele não praticou diretamente um abuso, um estupro de vulnerável. Recebeu fotos de uma mãe (que expôs e possivelmente abusou da criança mais diretamente) e o seu crime, propriamente (de acordo com o Código Penal), foi o de armazenar e repassar pornografia infantil. Não me entendam mal, isso ainda é um crime gravíssimo. Eu gostaria que quem o cometeu fosse punido, e isso se aplica ao PC caso se confirme a denúncia. Porém, punido como? Penso que é o sentimento geral da maioria que, se houver praticado de fato um estupro de vulnerável, seria desejável até que ele morresse (embora nossa lei não permita). Contudo, e quanto ao caso do crime de armazenar e repassar pornografia infantil? Será proporcional desejar a sua morte? Incitar suicídio? Certamente é um envolvimento indireto com o abuso da criança, mas tem uma gravidade um tanto menor que o abuso direto. Ao igualar ambos nos arriscamos a, de certo modo, banalizar o crime muito maior do estupro. Claro, eu ainda quero que PC perca todos seus seguidores por armazenar e repassar as fotos, que perca o dinheiro (e essas coisas já vão acontecer de todo modo mesmo que ele seja inocentado). Penso que uns aninhos na cadeia talvez lhe ensinassem a lição. Mas eu não quero que ele morra.

Como pensar nas motivações de um tal crime?

Um dos modos pelos quais Górgias mostra, no Elogio de Helena, o poder da retórica, é usar em seu argumento a ideia de persuasão. O autor quer mostrar que a mulher deve ter sido persuadida a fazer seu ato terrível (abandonar o marido). E de certo modo a absolve mostrando a força do ato persuasivo, ao qual Helena não poderia resistir. O que leva alguém a cometer um crime terrível?

De modo algum quero, à maneira de Górgias, absolver o denunciado, dizer que foi persuadido e então não teria culpa. Ele tem culpa por tudo aquilo de que participou, por aquilo a que escolheu aderir. Não obstante, analisar o que pode ter acontecido pode nos ajudar a entender o que leva uma pessoa a fazer isso, a ver PC mais como um humano, ainda que falho e sujeito a cometer um crime inaceitável. Um humano que deve ser julgado e preso pelo que fez, não um monstro que deve ser abatido e morto como uma fera perigosa.

Precisamos lembrar que o desejo sexual por crianças (ou “algum traço” dele, como PC teria admitido em seu áudio) não é em si uma ação deliberada ou uma escolha, mas uma condição psicológica. Possivelmente a pessoa nasceu assim. É ruim que seja dessa forma, ela precisa se tratar para corrigir isso (e aparentemente PC já estava passando isso ao psiquiatra), mas, ainda que ruim, não é crime. PC parecia ter consciência de que era algo a ser reprimido e, mesmo assim, procurou por isso?

Se não incentivarmos as pessoas com tendência à pedofilia a se tratarem e curarem, podemos estar gerando um número maior de casos inclinados a se tornar abusadores. É preciso lidar com essas pessoas como doentes. Isso não significa gostar deles, mas pensar o melhor resultado para todos

A serem as divulgadas mensagens de texto com seu amigo verdadeiras, ele teria de algum modo sido conduzido a isso. No meio do sexo virtual a mulher mandou a foto da filha, e ele foi exposto àquilo sem a intenção. Por sua tendência psicológica, acabou gostando. E aí deu continuidade a uma relação terrível com a mãe, recebendo mais fotos. Claro que ele é culpado por continuar essa relação, por não denunciar, mas é importante lembrar que foi, inicialmente, passivo frente a um crime maior cometido pela mãe.

A parte mais pesada e muito mais reprovável de sua participação (porque menos passiva) foi ter passado a imagem adiante para um amigo. Isso é muito grave e não pode ser diminuído. Mas o que o levou a cometer algo assim? Vamos refletir: PC não é nenhum idiota. Ele sabe que isso é grave e as possíveis consequências. Sabendo tudo isso, por que assumiu esse risco e fez algo possivelmente sem benefício para si (talvez só ao outro, caso fosse também pedófilo)? Tentemos entrar na cabeça do PC. Ele acabou em numa situação estranha e reprovável, uma mãe que lhe manda fotos nuas da filha pequena. Ele percebe que está gostando e se sente terrível com isso. Nós o achamos um monstro por gostar e ele também deve achar o mesmo. Leva o caso a seu psiquiatra (que não sabemos como lidou com isso, se tentou ajudar). Mas aquilo lhe consome. Ele pensaria: “Serei eu um monstro? Só eu sinto essas coisas, sou horrível, devo morrer? Ou outros podem ser parecidos comigo?” – e talvez com isso em mente estivesse em desespero procurando algum amigo que o entendesse, que dissesse que não é um monstro. Sendo assim teria mandado a foto esperando que o outro sentisse o mesmo, que fosse surpreendido pelo desejo proibido. Sim, isso é tudo especulação e nada disso desculparia o crime, que precisa ser pago. Mas isso talvez ajude a entender que, se ele fez aquilo de que é acusado, pode tê-lo feito não pelo puro prazer do mal, mas segundo motivações, inclinações, circunstâncias que o levaram até isso.

Como salvar Helena?

Talvez Helena não merecesse o ódio que recebeu. E talvez PC mereça ao menos boa parte do que é lançado contra ele. Mas, deixando o sentimento de lado, como remediar a situação? A morte do youtuber não resolveria muita coisa; na realidade pioraria: morto, ele não consegue entregar a mãe e salvar a criança, que é o principal. Morto, não seria adequadamente punido, teria tido como que uma fuga.

Veja também:
>> “A sombra do passado nas redes“, por Rafael do Nascimento
>> “Só existem direitos humanos para bandidos?“, por Gilberto Miranda Jr.

Sendo punido nos termos da lei, seria ainda doente, com uma condição psicológica. Isso deve ser corrigido. O ideal seria buscar tratamento nesse sentido. Geralmente esse tipo de atendimento é difícil de ser conseguido, pela aversão forte da sociedade ao pedófilo, mesmo que não tenha cometido crime ainda e queira se tratar (existem mesmo muitos psicólogos que não aceitam tratar pedófilos). Esse tipo de reação da sociedade é algo que precisa ser pensado, pois é possível fazer a reflexão de que, se não incentivarmos as pessoas a se tratarem e curarem, nós podemos estar gerando um número maior de casos de pedófilos mais inclinados a se tornar abusadores (sobre isso, este texto é interessante). E esse é o pior cenário. É preciso de algum modo lidar com essas pessoas como doentes e tentar reverter sua situação de algum modo. Isso não significa gostar deles, mas pensar o melhor resultado para todos.

A quem agora devemos defender?

Tendo levado a cabo esse “elogio de Helena”, o que disso resulta? Certamente não estamos prontos para perdoar o PC, ele tem que ser investigado e, se culpado, punido. Então a quem defendemos? O que nós defendemos aqui foi uma perspectiva mais alinhada à justiça, a garantir aos cidadãos os seus direitos, sejam direitos de acordo com as leis de nosso país, seja mesmo os direitos humanos. Defendemos a dúvida, a cautela, que é fundamental em casos de polêmicas e de “tribunais” de internet. A opinião pública pode ser frequentemente cegada pela raiva, precipitada. O exercício de tomar um tempo, respirar, pensar nos dois lados, pode ser mais saudável do que nos posicionar apressadamente sobre todos os assuntos do momento. O que nós defendemos aqui é que o cuidado e prudência ao lidar com a vida de uma pessoa é a forma de alcançar uma sociedade mais justa e evitar erros.

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