O artilheiro da Copa de 1990 nos deixa precocemente
Salvatore “Totò” Schillaci foi um dos heróis improváveis da Copa do Mundo de 1990. Estigmatizada para a posteridade pelo futebol feio, violento e defensivo, e pela pior média de gols de todos os tempos, essa Copa é especial para a geração dos “quase idosos” nascidos na primeira metade dos 1980 – entre os quais me incluo – por ter sido a nossa primeira. Entre as memórias cada vez mais esmaecidas daquele mundial, a sofrida derrota da Seleção Brasileira (então, digna destas maiúsculas) diante da Argentina, os pênaltis defendidos por Goycochea, a epopeia de Camarões – que relembramos neste artigo – e as comemorações explosivas do italiano Schillaci, correndo enlouquecido a cada tento marcado com a camisa da Azzurra.
Para não falar da lindeza desta canção oficial:
Os anos de formação
Schillaci teve uma infância humilde na periferia de Palermo, na empobrecida Sicília, ilha quase colada na ponta da bota que forma o território da Itália continental. Viveu sua juventude no Sul historicamente agrário e marginalizado, em oposição ao Centro e Norte da Itália, mais urbanizados e prósperos, num país que ainda se recuperava dos efeitos da Segunda Guerra Mundial.
Sua primeira camisa, ainda adolescente, foi a do time juvenil da empresa de ônibus da cidade, a Amat. O Palermo, clube profissional da cidade, tentou contratá-lo, mas não chegou a um acordo de valores com os dirigentes da Amat. Com apenas 17 anos, Totó acabou se mudando para Messina, cidade situada na extremidade da ilha e a uma balsa de distância do continente, onde assinaria contrato profissional com o time homônimo para disputar a série C2, equivalente à quarta divisão da Itália, a partir da temporada 1982/83. Ajudou o time a subir para a C1 (terceira divisão) já na primeira tentativa, e em 1985/86 subiram para a série B. Sua primeira temporada na segunda divisão italiana foi prejudicada por contusões que levaram a duas cirurgias no menisco, mas na temporada 1988/89 marcou 23 gols em 35 jogos, sagrando-se artilheiro da série B. Embora o Messina tenha terminado apenas na oitava posição e não conseguido o acesso à elite, Schillaci enfim jogaria a série A na temporada seguinte, pois atraiu o interesse da poderosa Juventus, de Turim, historicamente a principal força do futebol italiano. A “Velha Senhora” pagou ao modesto Messina 6 bilhões de liras (ou 4,6 milhões de dólares, em valores da época) pelo passe do jogador, então com 24 anos.
Na Juventus, Schillaci poderia enfim superar os tempos de operário da bola e o anonimato das divisões inferiores para se tornar um astro na liga mais rica do mundo. A série A dos anos 1980 e 1990 atraía craques das principais seleções europeias e sul-americanas e foi pioneira em transmissões televisivas para o mundo todo, inclusive para o Brasil. Na sua temporada de estreia, foi o principal goleador do time alvinegro, marcando 21 gols em 50 partidas, conquistando os títulos da Copa da UEFA e Copa da Itália, além da 4ª posição na série A. Logo caiu nas graças da torcida, ganhando o apelido de “Totò-gol”.
Schillaci pela Juventus, temporada 1989-1990
Medindo apenas 1,73m – apenas cinco centímetros a mais que o nosso “baixinho” Romário, para efeito de comparação – Schillaci compensava a baixa estatura e porte físico com muita agilidade, técnica, posicionamento e oportunismo. Num futebol italiano no qual prevaleciam a disciplina tática e as defesas intransponíveis, ele encontrava seus espaços e parecia estar sempre no lugar certo na hora certa. Francesco Scoglio, seu treinador no Messina por várias temporadas, disse que “nunca havia visto um jogador com tanta vontade de fazer gols”.
As noites mágicas do verão de 1990
Os gols de Schillaci pela Juventus atraíram a atenção do treinador da seleção, Azeglio Vicini, e garantiram sua primeira convocação em março de 1990, num amistoso contra a Suíça, já na reta final de preparação para a Copa que a Itália sediaria a partir de junho. Schillaci foi titular, jogou os 90 minutos, não fez gols – a Itália venceu por 1 a 0 – mas garantiu ali sua inscrição entre os 22 convocados para a Copa.
Na estreia, contra a Áustria, começou no banco de reservas – o que era esperado, pois Gianluca Vialli e Andrea Carnevale tinham muito mais rodagem pela “Azzurra” e seriam os titulares no ataque. Porém, com o zero-a-zero insistente no placar, Schillaci foi chamado aos 30 do segundo tempo para o lugar de Carnevale, e demorou apenas três minutos em campo para marcar o único gol da magra vitória italiana, num cabeceio certeiro entre dois grandalhões defensores austríacos.
O primeiro gol de Schillaci na Copa
Na partida seguinte, contra os Estados Unidos – que voltavam à Copa do Mundo após 40 anos de ausência, porém ainda atrasados no desenvolvimento de uma liga profissional – Schillaci voltou ao banco de reservas, sendo acionado no segundo tempo mas sem conseguir marcar desta vez. Nova vitória magra por 1 a 0, com gol de Gianini, contra uma das piores seleções daquela Copa. A paciência de Azeglio Vicini com os medalhões do ataque acabou, e os jovens Schillaci e Roberto Baggio – nome que ficaria bem conhecido entre os brasileiros, mas na Copa seguinte, de 1994 – ganharam a titularidade. Eles marcaram os gols da vitória por 2 a 0 contra a Tchecoslováquia, classificando a Itália para as oitavas de final com 100% de aproveitamento no seu grupo A – campanha igualada apenas pelo Brasil, no grupo C.
Nas oitavas de final contra o Uruguai, Schillaci novamente abriu o marcador, com um belo chute de fora da área, e a Itália passaria confortavelmente com um 2 a 0. Nas quartas, o adversário seria a Irlanda – que chegara até ali empatando todos os jogos – e novamente coube a Totó furar a retranca do adversário, aproveitando um rebote do goleiro para marcar o único gol da partida ainda no primeiro tempo. A Itália chegava com favoritismo às semifinais, com a vantagem de jogar diante da própria torcida, e com o goleiro Walter Zenga ostentando um recorde de cinco partidas (ou 450 minutos de futebol) sem sofrer gols.
A Argentina de Maradona seria o adversário na semifinal, tendo chegado até ali aos trancos e barrancos, perdendo para Camarões na estreia, empatando com Romênia (na fase de grupos) e Iugoslávia (quartas-de-final, vencendo nos pênaltis) e superando apenas a URSS (fase de grupos) e o Brasil nas oitavas – numa das eliminações mais injustas já sofridas pela seleção em uma Copa. Até então, a Itália havia atuado sempre no Estádio Olímpico de Roma, o segundo maior (pouco menor que o San Siro, em Milão) e o mais caro dos estádios-sede daquela Copa. Por um capricho do destino, a tabela pré-definida da Copa definia como local do confronto contra os argentinos a cidade de Nápoles, onde Maradona era venerado como ídolo pelos títulos conquistados no Napoli. O vencedor tomaria o caminho para Roma para a grande final.
Schillaci fez a sua parte e marcou o seu gol logo aos 17 do primeiro tempo, porém a Argentina empataria com Caniggia aos 22 do tempo complementar, arrastando o jogo para uma longa prorrogação e a inevitável disputa de pênaltis. Schillaci alegou estar machucado e não quis figurar na lista dos cinco batedores iniciais. Quem brilhou naquela disputa foi outro herói improvável, o argentino Goycochea – que também começou a Copa na reserva e ganhou a titularidade quando Nery Pumpido quebrou a perna, na segunda partida. O goleiro defendeu as cobranças de Donadoni e Serena, eliminando a Azzurra diante de quase 60 mil presentes no estádio San Paolo – que anos depois seria rebatizado para homenagear o próprio Maradona. Restava a protocolar disputa do terceiro lugar, vencida diante da Inglaterra por 2 a 1, tendo Schillaci novamente marcado o tento decisivo para os italianos.
Apenas um ano após deixar o acanhado estádio Giovanni Celeste, da pequena Messina, Totó Schillaci se sagrava artilheiro da Copa do Mundo, com seis gols em sete partidas, e tinha seu nome ecoado pelos torcedores de todos os cantos do Planeta Bola. A taça do mundo não veio, mas esperava-se que o centroavante de apenas 25 tivesse outras oportunidades pela frente.
Os seis gols de Schillaci pela Copa de 1990
O Declínio
De volta à Juventus após a Copa, Schillaci ganharia a parceria de seu companheiro da seleção Roberto Baggio, adquirido da Fiorentina. Mas a dupla que funcionou bem na Azzurra não rendeu bons frutos na Velha Senhora, e os gols de Totò foram minguando: apenas oito na temporada 1990/91, quando terminaram na sétima posição da série A – uma decepção para as expectativas da torcida. Pela Azzurra, os gols também minguaram: Schillaci foi convocado mais oito vezes após a Copa do Mundo, para amistosos e eliminatórias da Eurocopa de 1992, e marcou apenas um gol, numa derrota contra a Noruega em junho de 1991. A Itália acabou ficando de fora da Eurocopa, perdendo a vaga para a URSS (que no ano seguinte disputaria a Euro sob a sigla CEI), e o ciclo de Schillaci na Azzurra parecia encerrado.
Na temporada seguinte, a Juventus foi vice tanto da série A quanto da copa nacional, com Schillaci indo às redes apenas sete vezes, sendo novamente superado por Baggio e pelo promissor Pierluigi Casiraghi. Quando o clube anunciou a contratação do veterano da seleção Gianluca Vialli para o ataque, no meio de 1992, Schillaci sentiu que era o momento de procurar novos ares e foi transferido para a Inter de Milão.
Não foram muitos gols pela Juventus após a Copa, mas este é certamente um dos mais belos
Pelos “nerazzurri”, Schillaci começou bem, marcando um gol logo na estreia pela Copa da Itália, contra o Reggiana. Porém, nas duas temporadas seguintes acabou marcando apenas 11 gols ao todo, com o atacante sofrendo com problemas físicos principalmente na temporada 1993/94, quando atuou em somente 13 partidas. Em abril de 1994, aos 29 anos, fora da seleção nacional e sem espaço no seu time, Schillaci topou um desafio inédito para um jogador italiano: atravessou meio mundo de avião e assinou pelo Jubilo Iwata, da J-League, a recém-fundada liga japonesa, que oferecia vultuosos contratos para atrair veteranos com renome internacional. Foi recebido com entusiasmo pela torcida local. “Para eles, o Schillaci da Copa do Mundo nunca acabou”, se recordaria anos depois.
O recomeço fez bem ao italiano, que marcaria 56 gols no Japão entre 1994 e 1997. No seu último ano pelo Jubilo Iwata, o time chegou ao título da J-League, mas Schillaci sofreu uma grave contusão que terminaria por abreviar sua carreira no futebol. Ele relutou por dois anos até anunciar oficialmente sua aposentadoria em 1999, aos 34 anos. Ao todo, fez 190 gols pelos clubes em que atuou e mais sete pela Azzurra, conquistando os títulos da série C2 e C1 italianas, uma Copa da Itália e uma Copa da UEFA pela Juventus e a J-League pelo Jubilo Iwata.
Aposentadoria
De volta a Palermo, tentou carreira na política como vereador, foi eleito em dezembro de 1997, mas não se adaptou e renunciou ao mandato após dois anos. Dirigiu uma escolinha de futebol, foi dono de um clube juvenil e participou do projeto Asante, uma ONG que formava um time de jovens refugiados, visando à sua integração pelo esporte – a Sicília está numa das principais rotas de refugiados vindos da África, na travessia do Mediterrâneo. Procurou manter-se em evidência na mídia, participando de reality shows e programas de TV na Itália.
Em 2022, foi diagnosticado com um câncer de intestino. Passou por cirurgia e quimioterapia. Dois anos depois, uma recidiva o levaria de volta ao hospital, falecendo no dia 18 de setembro de 2024, na mesma Palermo onde nasceu. Deixou esposa – a modelo Bárbara Lombardo – e 3 filhos, Jessica, Nicole e Mattia, sendo este nascido durante a Copa de 1990.
Deixa também a saudade para quem aprendeu a amar o futebol assistindo aos jogos daquela Copa do Mundo, apesar de tudo, durante aquelas noites mágicas em que aquele esforçado centroavante, vindo de Palermo, ofuscava craques como Gullit, Van Basten, Romário, Careca, Klinsmann, Lineker e até Maradona, fazendo mais gols que todos eles.