O que subjaz a A Flor da Inglaterra é a preservação da essência humana
O culto a George Orwell, motivado por A revolução dos bichos e por 1984, suas obras máximas, tem relegado ao esquecimento a outra parte da sua produção ficcional. Portanto, não me refiro aqui ao Orwell repórter ou ativista: o cara que viveu na pior em Paris e em Londres; que lutou na guerra civil espanhola movido pela ideologia; que conheceu de perto como vivem e como morrem os pobres. O Orwell de que trato a seguir é o autor de A flor da Inglaterra, publicado pela Companhia das Letras.
Na obra, Gordon Comstock é um poeta que se revolta contra “o código do dinheiro”. Pede demissão do emprego bem remunerado em uma agência publicitária e a partir daí passa a sobreviver do jeito que dá, trabalhando numa livraria pequena e ganhando mal. Ele despreza tudo o que o dinheiro representa. Proveniente da classe média baixa, na sua visão essa camada odiosa da população londrina é o exemplo perfeito do fracasso do capitalismo, a começar pela flor absurda que enfeita os seus lares simplórios, em vasos expostos como se fossem obras de arte nos parapeitos de janelas medíocres: a aspidistra. Para o personagem orwelliano, esse vegetal ordinário é o símbolo do conformismo, é a flor da Inglaterra.
Como todo o sujeito inteligente e ressentido, Gordon observa as pessoas com objetividade cruel. O Avô Samuel, o Comstock primevo, “foi um velho patife desalmado”. A própria Família Comstock é “inexpressiva, deselegante, enfadonha e apagada”; e Tio Walter, um de seus onze tios, não passa de “gordo e metido”. Duas clientes entram na livraria. Uma delas parece “uma pata enlameada que fuçou o lixo”. A outra lembra uma “andorinha rechonchuda”. No entanto, tudo isso não passa de implicância e de talento para a caracterização. Afinal, Gordon Comstock é o autor do obscuro Ratos, obra elogiada levemente pela crítica, mas que hoje jaz nas prateleiras de lojas empoeiradas, atrás de todos os outros livros.
O impasse metafísico de Gordon Comstock é mesmo o dinheiro. Contei: nas duzentas e noventa e nove páginas do romance, incluindo a epígrafe, a palavra “dinheiro” aparece trezentas e cinquenta e sete vezes. Em uma página, chega a ser usada dezenove vezes. Sem falar dos vocábulos correlatos que também animam o enredo: dólar, libra, shilling, penny e joey, a moedinha — “aquela coisinha absurda e solitária, que se apresenta colada à ponta do seu dedo, como uma lantejoula”.
Escritor, jornalista e poeta, George Orwell, pseudônimo de Eric Arthur Blair, morreu prematuro, aos quarenta e sete anos, em 1950. Ao verificarmos a sua postura, a de um outsider autêntico, não há como não ligá-lo, pelo menos em parte, a Gordon Comstock. No livro de ensaios Dentro da baleia, o escritor diz: “É impossível escrever algo legível sem lutar constantemente para apagar a própria personalidade.” Em Na pior em Paris e em Londres — uma das principais fontes do jornalismo literário, em que Orwell narra a sua experiência de pobreza extrema — se encontram as pegadas de Gordon Comstock. Em A flor da Inglaterra, o estilo cativa. Deriva do humor negro e das coisas ditas sem rodeios, na lata, segundo a fórmula de Orwell — para quem a escrita deve ser transparente como a vidraça.
Aos vinte e nove anos, o maluco e pobre Gordon Comstock mora em pensões baratas, afundando mais e mais na decisão amarga que tomou de desafiar o dinheiro: “O que ele percebeu, e com uma clareza que só aumentou com a passagem do tempo, foi que o culto ao dinheiro tinha sido elevado à categoria de verdadeira religião. E talvez a única religião autêntica — a única religião autenticamente sentida — que nos resta. O dinheiro é o Deus que já foi. O bem e o mal não significam mais nada, a não ser sucesso e fracasso.”
Gordon não acredita no socialismo (“é algo parecido com o Admirável mundo novo de Huxley, só que menos divertido”) e tampouco no capitalismo (“a vida no capitalismo é morta e sem sentido”). O leitor então se pergunta: esta é a mensagem de Orwell? O homem contemporâneo não tem mesmo saída? Calma. Antes de tudo, Gordon Comstock é um personagem contraditório. Ao longo da jornada infeliz a que se propôs, a de afrontar o dinheiro, ficamos tentados a lhe dizer meia dúzia de verdades, ou mandá-lo simplesmente à merda. Não vou denunciar aqui o expediente canalha a que ele sempre recorre para não sucumbir completamente.
Na ficção, incluindo 1984, Orwell é um autor de fábulas, e estas sempre trazem uma lição. A flor da Inglaterra é uma fábula. O contexto são as dificuldades econômicas e sociais da Inglaterra/Europa vinda da Primeira Guerra e prestes a embarcar na Segunda. É uma parte do mundo moderno já esgotada pelo capitalismo. Mas por trás de tudo isso, desse enredo que pode parecer pastoso, mas não é, brilham a inteligência e a ironia de Orwell. Quando menos se espera começamos a torcer ardorosamente por Gordon e a sua doce e graciosa Rosemary. Afinal, o que está subjacente na trama é a preservação da essência humana, essa flor obsessiva.