Por respeito ao fim do mundo

O novo normal foi receber três ligações, sempre com a frase que, mesmo em uma pandemia, mesmo sendo a única certeza da vida, toda vez nos parece mentira

imagem: Babak Fakhamzadeh

É verdade que, antes de março de 2020, já achava o apartamento de 56 metros quadrados na Bela Vista, em São Paulo, seu pequeno reino. Saía, trabalhava, ia ao cinema e shows, encontrava esporadicamente alguns amigos, mas estar em casa não era problema nenhum. Pelo contrário.

Daí que o novo normal, há dois anos, passou a ser ficar em casa, trancada. E de fato ficou: de março a final de maio, não pisou na calçada. Viveu o privilégio do home office e sentiu que a casa, antes um refúgio aos finais de semana, tinha um potencial enorme para casulo. Achou mais estranho sair de casa, naquela manhã fria de maio de 2020, do que ter ficado tanto tempo dentro dela. E só saiu por recomendação médica: tomar a vacina da gripe. Caminhou uns três quilômetros com uma roupa que parecia um disfarce. Óculos, gorro, máscara, daquelas ainda de pano, hoje vistas como tão ineficazes, na época verdadeiros escudos com estampas de flores e poás. A avenida Paulista parecia um deserto. O braço exposto para a picada da agulha a lembrava do óbvio: não era a vacina para covid. Ainda não era.

Daí que o novo normal, em 2021, foi receber três ligações, no intervalo de 33 dias, sempre com um familiar chocado do outro lado da linha, e a frase que, de uma forma inexplicável, mesmo em meio a uma pandemia, mesmo sendo a única certeza da vida, toda vez nos parece uma mentira:

14 de março: MORREU.

6 de abril: MORREU.

17 de abril: MORREU.

O tio, a tia, a prima. Um núcleo familiar de cinco pessoas, a família da irmã da mãe, em 33 dias viu três pessoas morrerem de covid. Pouco antes da vacina. Bem pouco antes. Três doses da vacina no braço depois e ainda parece mentira.

MORREU. MORREU. MORREU.

Daí que o novo normal, em 2022, é ter certeza que prefere bichos a gente, assim como ser uma das últimas pessoas nas ruas de São Paulo a usar máscara. Não mais as de pano, elas não são mais o novo normal, mas as poderosas PFF2, as N95, letras misturadas a números que, na verdade, até hoje ela nem entende as siglas, mas finge entender, por respeito ao fim do mundo. O fim do mundo, aliás, exige disciplina e o fingimento de sempre no traquejo social. A cachorra adotada a obriga a uma interação social durante os passeios. E a ensina que sua falta de fé na humanidade, de vez em quando até tem fundamento.

Daí que o novo normal, em 2022, é conviver com gente que jura que a pandemia já acabou e que acredita não ter que enfrentar as sequelas deste vírus também de forma invisível. Nas cabeças, nos sentimentos, nas memórias de quem passou por isso.

Toda vez que alguém minimiza os cuidados que ainda tem em relação à pandemia, tem vontade de estampar ~ talvez em uma camiseta ~ a seguinte frase: “Quantas pessoas da sua família morreram de covid? Da minha, foram cinco”. Cinco. Além do tio, da tia e da prima, uma tia-avó e um tio-avô. Toda vez que alguém ignora que a pandemia ainda existe, apesar da calmaria pós-vacina, pensa em gritar:

MORREU.

MORRERAM.

665 mil brasileiros morreram.

O novo normal é ser pessimista. Isso aqui não vai dar certo.

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