Adax

“Não existem mentiras, você não sabia? Você se lembra de que tudo parou dois anos atrás? Foi quando eu descobri”

Fotografia de Vil Sandi

Jazira abriu os grandes olhos de mel. As coisas do mundo deslizaram pela sua pupila como se desfrutassem da doçura de seu olhar repousado sobre a terra. Revirou um pouquinho de terra, guardou punhados nas mãos e os jogou sobre a barriga voltada para o céu. A terra gelada trouxe um suspiro de assombro rápido para sua pele que logo voltou a relaxar. Jazira levantou-se, esfregou os cabelos, esparramando mais terra ao seu redor, e pôs-se a caminhar.

Eu não entendo como você pode ter vindo de tão longe. Kuara a olhava desafiadora. Jazira já estava acostumada. Poucas pessoas conheciam o deserto. Foi o que ela respondeu. Kuara se irritou. Acho que você está mentindo. Jazira afrouxou os lábios marrons, mostrando os dentes meio amarelados: nesse mundo, não existem mentiras, você não sabia? Do que você está falando? Kuara estava confusa. Você se lembra de que tudo parou dois anos atrás? Foi quando eu descobri.

Ela não podia ir à escola e os pais não saíam da mansão. Os empregados foram dispensados e a mãe já não sabia o que fazer para manter a casa limpa sem a ajuda de ninguém. Jazira se enfadou. Olhava lá fora pela janela e seus olhos se umedeciam. Passaram-se muitos dias assim, até que lhe bateram à janela. Ela levou um susto e se ergueu da cama de uma só vez. Ouviu outro baque no vidro. Aproximou-se temerosa e quando estava a ponto de encostar o nariz adunco no vidro gelado, os chifres longos e ondulados deram ali novamente e ela quase caiu para trás.

Primeiro pensou que se tratava do macho deles, muito magro e ferido no dorso. Ela deixava uma cestinha de frutas no parapeito. Tentava espreitá-lo, mas a cestinha era revirada em suas raras distrações. A única coisa que via com frequência eram os cornos que desapareciam rápidos no horizonte, e o dorso avermelhado, provavelmente ferido de bala, empinando nos galopes ligeiros. Um dia, então, resolveu lhe escrever. Deixou a cartinha junto da cesta de frutas e não se surpreendeu quando, ao abaixar para pegar o prendedor de cabelo de ouro, a cesta foi revirada e a cartinha levada. Ainda correu para a janela, mas, dessa vez, só viu as marcas dos cascos no gramado.

Continuou deixando no parapeito a cestinha com frutas que era diariamente revirada, mas a sua carta não recebia resposta. Um dia, enraivecida, e não se orgulhava disso, decidiu não deixar mais frutas na cesta. Largou-a vazia como tinha sido deixada no dia anterior. Notou-a, em um determinado momento, de cabeça para baixo e seus olhos se encheram de lágrimas. Pensou na fome que o assolaria naquela noite.

No dia seguinte, como que pedindo desculpas, colocou o dobro de frutas. Após ouvir o barulho costumeiro no parapeito, no momento em que se baixara para coçar o peito do pé, foi até a janela e notou que ele havia levado apenas a sua porção de sempre. As frutas que tinha posto a mais permaneceram na cesta. Junto a elas, e nisso seu coração estremeceu, encontrou uma carta em um envelope bastante amarrotado, muito sujo de terra. Abriu-a e se emocionou com cada uma das palavras que leu.

Querida Jazira,

Muito obrigada pelo alimento que tem oferecido. Não sabia que você entendia meu dialeto. Confesso que bati à sua janela já meio sem esperanças, mas você prontamente me entendeu e me deu de comer. Suas frutas têm alimentado não apenas a mim, mas também ao meu marido e a meus filhos que estão escondidos no deserto. Você escreve que posso retirá-las todos os dias. Agradeço imensamente por isso. Fomos atacados por caçadores há algum tempo. Não sabíamos mais para onde fugir, até que nos disseram que as cidades estavam abandonadas. Não acreditei quando me contaram. Os homens sempre se amontoaram nas cidades, como era possível que, agora, justamente nas cidades, teríamos mais segurança? Mas não podia esperar por uma resposta e decidi confiar em Alá. E veja que Ele me respondeu com bondade. Então agora vocês não saem mais de suas casas? Será assim para sempre, querida Jazira? Você acha que é seguro trazer meu marido e nossas crianças? Finalmente a cidade parece um lugar acolhedor para nós.

Um abraço,

Adax.

Jazira soluçava quando terminou de ler a carta e suas lágrimas abriram buracos no papel já muito maltratado. Escreveu a resposta assim que conseguiu se conter. Não queria entregar uma carta encharcada de lágrimas. Ainda pensou que talvez ela levasse a carta deserto a dentro e, por isso, precisava encontrá-la em boas condições para resistir à viagem. Depois de que depositou a carta no cesto com as frutas, não aguentava mais seu coração que pulava acelerado.

Acreditou que dessa vez seria impossível que não a visse retirar as frutas da cesta, pois não desviava o olhar da janela, nem quando seu prendedor de cabelos tornou a cair no chão, nem quando seus pés coçaram pedindo pelas unhas afiadas das mãos, tanto que chegou a ter vontade de chorar. Mas, ainda que se esforçasse por não perder a janela de vista, a mãe veio até ela e disse que agora ia ter aulas on-line. Tentou argumentar que era imprescindível que ficasse de prontidão em seu quarto. Seu coração dizia que não podia contar o que de verdade acontecia ali. A mãe, pensando o que tinha feito para merecer uma filha tão preguiçosa, puxou-a pelo braço e a levou ao escritório onde estava o grande computador.

Adax agora vinha sempre quando ela estava nas enfadonhas aulas on-line. Ela não conseguia prestar atenção em uma só palavra que a professora digitalizada dizia, tão ansiosa que estava por conferir a cestinha e a carta sempre deixada depois de que as frutas eram levadas. Adax contou que no deserto perseguiam sua família por anos e anos. Que uma de suas filhas tinha sido levada e que não se aguentava da tristeza de seguir peregrinando pela vida sem ela. Que sua filha era como a luz do sol no amanhecer, tinha a pele vermelha e os olhos quentes de amor. A terra daquele deserto era a filha perdida, leve a terra sempre com você, Jazira, banhe-se na terra todos os dias, assim você faz a minha filha reviver.

Jazira lhe contou que havia um vírus que estava matando as pessoas nas cidades e por isso todos estavam em lockdown, o que quer dizer trancados em casa até último aviso. Disse que no início parecia que ia durar poucos dias, mas que já estavam assim há meses. Tinha ouvido falar que os animais estavam passeando tranquilamente pelas cidades, que enfim estavam em paz. Por isso, Adax e sua família estariam a salvo na cidade. Esse vírus não deve afetar a sua espécie, não é? Jazira não recebeu resposta a essa pergunta e deduziu que Adax não sabia dizer.

Foi muito tempo assim, trocando cartas com Adax e dando-lhe frutas. Até que, um dia, ouviu falar em flexibilização. As aulas iam voltar a ser na escola. Os pais iam sair de seus escritórios e voltar a vender suas pedras nas feiras presenciais. Jazira se assustou com a notícia e não se demorou em escrever a carta para Adax. Contou, inclusive, que talvez a família se mudasse para o Brasil, pois havia muitas pedras em uma grande floresta por lá. Parece que já estamos voltando ao normal, querida Adax, ela escreveu e sentiu um golpe de tristeza lhe abater.

Essa foi sua penúltima troca de cartas com Adax. No dia seguinte, quando olhava pela janela, viu que as pessoas voltavam a caminhar pela rua arrastando suas saias com pressa. Ouviu os gritos da feira ganhando novamente os ecos dos arredores da casa. A mãe veio ao quarto para chamá-la para a escola. Preferia antes, quando os homens não nos deixavam estudar. A mãe ergueu a palma acima da cabeça e Jazira virou o rosto esperando o golpe. Quando olhou para a mãe novamente, a mulher chorava como uma fonte cujas águas enfim aprendiam por onde podiam desabar.

Pouco depois, os pais compraram as passagens para o Brasil e vieram todos para a Amazônia. Ouviram as histórias dos corpos jogados pelas ruas com terror. Jazira tampava os ouvidos para não escutá-las, mas, quando caminhava pelas ruas quentes e úmidas, não deixava de ver fantasmas de indígenas pedindo socorro. Você não sabe de nada, Jazira. Os indígenas morreram foi há muito tempo, agora não morrem mais. Quem morreu desse vírus é quem mora na cidade. Jazira chorou muito. Sentia falta da sua casa de bonecas de cabelo de ouro, de suas empregadas que lhe serviam de balanço.

Um dia, quando foi dar o beijo de boa noite em seu pai, leu na tela sempre acesa a sua frente que o caçador do deserto havia sido morto. Soltou um gritinho que fez o pai desviar os olhos da tela, o que raramente fazia, e isso a ajudou a ver a imagem que acompanhava a notícia. O homem alvejado no meio da duna estava virado de barriga para baixo. Jazira sentiu o corpo endurecer quando percebeu, num canto esquerdo e já saindo do enquadramento da imagem, uns cornos jogados no chão em meio a uma poça de sangue. O pai segurou-a pelos dois ombros, a chacoalhou, mas ela permaneceu petrificada. Adax morreu, foi o que conseguiu murmurar quando já estava de cama há vários dias.

A mãe pensou que ela tinha pegado o tal do vírus que ainda assolava muito o Brasil, apesar de que ali ninguém ficasse preso dentro de casa. Mas, um dia, chegou uma carta em um envelope amarrotado e sujo e a mãe logo reconheceu a terra do deserto de onde haviam vindo. Num canto da carta, estava o nome de Jazira. Levou a carta à filha que mal se mexia na cama e quando ela viu o envelope como que se recuperou de uma vez, saltou para agarrá-lo e prendê-lo junto ao coração. Você não vai ler, Jazira? É claro que sim!

Querida Jazira,

Como estão as coisas no Brasil? Ouvi dizer que aí há praias bonitas e que o povo gosta de dançar. Espero que você esteja aprendendo muitas coisas em sua escola nova e esteja fazendo muitos amigos. É verdade que aí são todos indígenas? Eles tratam você bem? Eu e minha família agora somos refugiados na França. Aqui as coisas são diferentes, as crianças não gostam da escola e dizem que os meninos são malvados com elas. Elas não podem vestir nossas roupas por lá. Estou triste por deixar a terra em que desapareceu minha filha, mas entendi que apenas assim poderia ver os demais crescer. Jazira, nunca se esqueça da terra, ainda que viajemos por esse mundo, ela há de ser nosso retorno.

Um abraço,

Adax

Junto à carta, Jazira encontrou uma fotografia de Adax com sua família ao lado do velho e último antílope de sua espécie que fora morto na troca de tiros no deserto. Chorou tanto que a carta se desintegrou em suas mãos encharcadas. E o que isso tem a ver com verdade e mentira, Jazira? Essa família era refugiada de terroristas, não era uma família-cavalo. Jazira a escutava com serenidade, como se não estivesse realmente ali.

Kuara saíra das margens daquele rio tão escuro quanto as noites do deserto. As águas misteriosas corriam em suas pupilas negras que atraíam as coisas mais profundas que se conhece. Acordou e sacudiu os cabelos lisos que se assentaram em suas costas com perfeição. Os cabelos, os mais escuros do mundo, como a noite da floresta. Passou as mãos sujas de tinta vermelha em cada uma das faces e aguardou o amanhecer que refletiu o rubor de sua pele. Quando as primeiras árvores se fizeram visíveis, Kuara respirou fundo, inalando a vida que voltava da escuridão e se pôs a caminhar.

Alguma coisa irreversível acontecia entre as duas meninas. Você acha que eu vim mesmo para o Brasil? Kuara a olhou ainda mais enlevada. Como assim? Jazira, você não fala coisa com coisa! Jazira afrouxou novamente os lábios em um dócil sorriso. Sinta o meu coração. A menina ainda hesitou, mas estendeu a mão, mais para dar um empurrão do que para repousá-la no coração quente de Jazira. Então arregalou os olhos ao perceber que sua mão atravessava o holograma à sua frente. O que está acontecendo, Jazira? Eu te disse, eu não estou aqui.

Jazira contou que seu pai agora vende criptomoedas e que, com o dinheiro, comprou uma máquina de teletransporte com que viajavam para todos os lugares, sem sair de casa. Nosso corpo material não pode viajar, apenas nosso plasma. Estamos morando em uma ilha que papai comprou há pouco tempo, Kuara, protegidos dos novos vírus que ainda vão aparecer. Kuara coçou os olhos, teimava em não acreditar. Você está muito errada, Jazira. Os indígenas não morrem mais, você também não pode morrer. Deixe de falar dessas coisas, Kuara. É só o que diz desde que… Nem me lembro mais. Olhe, adivinhe o nome que meu papai deu à nossa criptomoeda! Kuara não queria participar de brincadeira nenhuma. Aquele espírito da floresta era traiçoeiro. O que fez foi desaguar em lágrimas negras que eram como uma chuva fina que transpassava seu corpo imaterial, umedecendo a terra preta. Chama-se Adax, Kuara. Vamos, não chore, não.

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