O ensino como problema filosófico: Claudio Dalbosco e a pedagogia kantiana hoje

Duzentos anos após sua morte, como Kant nos ensina a ensinar?

“Precisamos mais do que nunca da pedagogia da pergunta, pois é ela que ativa a formação do espírito crítico das novas gerações”, afirma o professor e pesquisador Claudio Almir Dalbosco. Autor, entre outros, de Kant e a Educação, Claudio falou à Úrsula – neste ano em que se comemora o bicentenário do pensador alemão abordado no seu livro – sobre o que caracteriza o pensamento kantiano sobre a educação. A conversa apresenta uma pedagogia que entrelaça ética e política e em que vigoram as apostas no debate público, na abertura ao outro e no ideal de uma formação humana plural. O professor também sugere como as ideias do filósofo podem contribuir com as práticas de ensino atuais e como podem combater o conhecido fechamento de cada um em bolhas de opinião. Além disso, aproxima Kant e Paulo Freire, não só porque Freire seria um leitor assíduo do alemão, mas na medida em que ambos representam “revoluções na maneira de educar”.

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Você comenta que pouca atenção foi dada à pedagogia de Kant, mesmo se acreditou que ele não teria se preocupado com educação, o que seria devido a uma “resistência em admitir que a educação possa ser tomada como um problema filosófico”. Pode falar mais sobre essa resistência? É uma postura ainda presente no campo da filosofia, quais têm sido seus efeitos, como ela transparece?

Preciso contextualizar essa minha afirmação. Ela referia-se a um período no qual a filosofia estava mais fechada em si mesma e preocupada quase só com seus problemas internos. A partir das últimas décadas do século XX a situação começou a se alterar, quando a filosofia intensifica seu diálogo interdisciplinar com outras áreas, inclusive com a própria educação. Em sua origem grega, ela já era paideia, ou seja, um projeto educacional, voltado à reflexão sobre a formação humana.

Selo de carta com a imagem do filósofo Immanuel Kant | imagem: Mike Steele

O próprio Immanuel Kant foi professor não só de lógica e metafísica, disciplina na qual exercia oficialmente sua cátedra na Universidade Albertina de Königsberg, no antigo Império prussiano oriental, mas também ministrava aulas de geografia, antropologia e, propriamente, de pedagogia.

Sobre esta temática do sentido e papel da filosofia, aprecio a metáfora de Jürgen Habermas de que filosofia não mais é a indicadora de lugar (prima ciência), mas sim guardadora de lugar. Com esta posição mais humilde, ela consegue dialogar mais com outras áreas do conhecimento humano, incluída aí a educação. Não se coloca mais como dona do saber, mas como parceira que pela pergunta conduz outros saberes ao seu próprio autoquestionamento.

Você aponta que em Kant há uma imbricação entre o pedagogo e o filósofo. O que podemos aprender com isso? Isto é, tendo em vista o modo como isso se dá em Kant, acredita que isso deve nos orientar a fundir essas práticas também – serem, os pedagogos, mais filósofos, e serem os filósofos mais pedagogos? Há algo a ser conquistado nesse sentido?

Sim, pensar a dimensão formativa da filosofia é indispensável, pois ela também é ensino e, mais importante, uma forma de vida. Sobre este aspecto, Kant fez uma distinção que ainda é muito atual entre filosofia como conceito escolar (Shulbegriff) e como conceito de mundo (Weltbegriff). Enquanto o primeiro refere-se ao sentido sistemático (metafísico) de filosofia, que investiga os princípios primeiros e que procura a unidade a partir de um último princípio, a filosofia como conceito de mundo abre-lhe a possibilidade de tratar de problemas mais “existenciais”, como o sentido da vida e a finalidade do cosmos. Esta segunda compreensão de filosofia alinha-a com a tradição grega da busca pela vida bem sucedida, inserindo-a no âmbito dos “exercícios espirituais” como forma de fortalecer a “cidadela interior” (Pierre Hadot).

No que se refere à pedagogia, ao negar seu diálogo com a filosofia, ela acentua, na verdade, seu “praticismo”, tornando-se apenas “utilitária” para interesses externos, como os interesses mercadológicos. A pedagogia precisa ser capaz de elaborar de maneira autônoma seus próprios conceitos e, por isso, seu diálogo com a filosofia enquanto atividade racional por conceitos (Kant) eleva-a para outro patamar. Johann Friedrich Herbart, que sucedeu Kant na cátedra de filosofia em Königsberg, defendia que o ensino precisa ser formativo e buscava na própria filosofia este ideal da Bildung (formação). O que significa pensar o ensino, a didática e a própria educação em sua dimensão formativa nos dias atuais? Significa, certamente, ir além do discurso das competências e habilidades e pensar na formação de todas as capacidades na perspectiva de sua própria finalidade interna.

Na esteira de Rousseau, a pedagogia de Kant tem em vista o “refinamento dos sentidos”, a “habilidade no raciocínio” e a “moralidade das ações”. Pensa, assim, a um tempo o corpo, a inteligência e a ética. Isso parece distanciá-la do nosso presente, em que, se são tratados, esses âmbitos permanecem departamentos estanques. Concorda com isso, como vê esse cenário? Crê que há um caminho de renovação possível se voltássemos a alinhar essa tríade na educação?

O cenário educacional contemporâneo, brasileiro e mundial, é marcado por grandes reformas escolares e universitárias que tendem a empurrar a educação cada vez mais para os braços do gerenciamento empresarial. O risco é que escola e universidade, ao assumirem o discurso do sujeito empreendedor de si mesmo, baseado na concorrência, na eficiência e na lucratividade, abram mão daquilo que é sua “alma mater”, ou seja, de assegurar no seu interior o espaço livre para a cultura e para o exercício do “ócio estudioso”. Tratar vagarosa e dialogicamente da leitura, da escrita e da meditação é nuclear à educação formal. Isso parece ser uma trivialidade, mas, em um mundo cada vez mais dominado pelo aceleramento do tempo provocado pela cultura digital, torna-se difícil assegurar o ócio estudioso no interior das instituições formais de ensino. O que se lê e se escreve na escola hoje e como se faz isso parecem ser questões nucleares. Neste contexto, dialogar com a tradição filosófico-pedagógica clássica é uma das formas de retomar o sentido crítico e aberto de formação cultural e educacional ampla.

Tanto Rousseau como Kant possuíam um conceito integral de educação como formação de todas as capacidades humanas. Isso implica em formar o educando em todas as suas dimensões, cognitiva, ética e estética. Por isso que não se trata de educação só para o conhecimento (para uma determinada especialidade). Claro, formar para uma profissão é muito importante, mas tal formação precisa vir acompanhada pelo questionamento sobre sua finalidade: para que formação profissional? O ideal de uma formação integral já vem dos pensadores gregos. A República de Platão é o exemplo clássico e não é por nada que Rousseau a reconhece, em seu Emílio, como o maior “tratado de teoria educacional” já escrito. Neste sentido, dialogar com os clássicos, com a República e com o Emílio, abre a possibilidade de retomar a questão sobre o sentido e a finalidade da educação como formação humana. Estas obras não são coisas do passado que já estão superadas. Por sinal, o passado só existe enquanto se torna presente e abre horizontes futuros.

Você escreve: “[…] podemos encontrar no pensamento de Kant, ainda na aurora da modernidade, o princípio de uma pedagogia da autonomia que toma a experiência do educando como ponto de partida e visa conduzi-lo a pensar por si  mesmo”. A expressão pedagogia da autonomia nos remete de pronto a Paulo Freire; igualmente a crítica kantiana ao intelectualismo pode ser assimilada à crítica freireana à educação bancária. Como você vê essa comparação entre os dois?

Kant não foi certamente um autor preferido das leituras de Paulo Freire. Sua vertente de pensamento crítico vem da tradição marxiano-hegeliana e do pensamento existencialista. Contudo, sua Pedagogia da Autonomia pode ser compreendida também na perspectiva kantiana. No último capítulo de meu livro Kant e a Educação eu trato da revolução copernicana na maneira de educar, afirmando que tanto Rousseau como Kant a fizeram no domínio da pedagogia moderna. Se olharmos a questão nesta perspectiva, Paulo Freire também provou, em solo brasileiro, uma revolução na maneira de educar. O ponto de partida parece ser comum: levar a sério o universo cultural do educando, sem eximir o educador de seu papel formativo. Trata-se da crítica à pedagogia transmissora, que relega o educando à condição meramente passiva. Contudo, a crítica ao “intelectualismo” não pode ser reverter no “basismo” que em última instância recusa o papel reflexivo da pedagogia, da educação e do próprio educador.

Outro trecho: “A condição de pensar por conta própria é resultado de um longo processo formativo, que deve ter seu início ainda na infância e, para que possa ter êxito, precisa estar baseada em determinados procedimentos metodológicos”. Cito essa passagem pois hoje testemunhamos, muita vez, situações em que o indivíduo se fecha numa bolha, recusa fontes e argumentos, mas afirma o ideal de “pensar por si mesmo” como sua justificativa. Enxerga também isso no presente? Há na filosofia e na pedagogia de Kant um remédio, um pensar por si mais plural?

Sua pergunta toca em um dos problemas educacionais cruciais da atualidade: como formar para o exercício da razão plural, indispensável à convivência democrática em uma cultura de redes cada vez mais fechada em si mesma? Kant apostou no uso público da razão e seu pequeno ensaio O que é o esclarecimento? é, sob este aspecto, muito atual. Depois de três séculos de seu nascimento, ainda nos encontramos às voltas com a tensão entre menoridade e maioridade e com o predomínio da preguiça e da covardia: é muito mais cômodo deixar que os outros pensem por nós, mesmo que pensem de maneira dogmática, preconceituosa e profundamente excludente.

A hermenêutica contemporânea, sobretudo a hermenêutica filosófica de Hans-Georg Gadamer, nos ensina que não há outra alternativa para romper com o dogmatismo, senão a aposta no diálogo profundo, baseado no silêncio, na escuta e na pergunta. Contudo, conseguimos silenciar e escutar hoje em dia? Mantemos ainda viva nossa capacidade de perguntar? Acreditamos realmente que o outro também pode ter razão? Este questionamento é crucial para a formação de um espírito democrático e que, obviamente, é ignorado pelo procedimento autoritário. O procedimento autoritário não pergunta, impõe; não provoca a participação porque depende da obediência passiva e irrestrita. Em tempos sombrios, de domínio do autoritarismo de extrema-direita, precisamos mais do que nunca da pedagogia da pergunta, pois é ela que ativa a formação do espírito crítico das novas gerações.

Para além da escrita sobre os textos de Kant, as ideias pedagógicas dele marcam a sua atividade como professor de alguma forma? Quais preceitos kantianos você segue na sua prática, de quais se afasta, quais teve de transformar?

A atividade docente e investigativa de Kant figura como um Leitbild (modelo) a ser seguido em muitos aspectos. Seus próprios alunos deram testemunho da seriedade educativa, do preparo das aulas e do amor à reflexão e discussão que marcaram suas aulas (preleções). Dedicar a vida à busca do saber e a ensinar a pensar por conta própria não é, certamente, pouca coisa. Ao lado da figura do filósofo sisudo, completamente absorvido por “questões metafísicas”, há o Kant educador, interessado no ensino e com as preocupações de seus alunos. Claro, a influência pietista e o sentido prussiano de disciplina, supostamente presentes em seu exercício docente, precisam ser criticados. Mas isso não significa abrir mão do sentido formativo de disciplina assumido por ele. Por exemplo, seremos capazes de enfrentar o uso desregrado dos dispositivos digitais, inclusive em sala de aula, sem a noção de disciplina como exercício do autodomínio pessoal? Há condições de retomar o silêncio e a atenção concentrada em sala de aula sem o exercício formativo da disciplina?

Uma frase famosa de Kant diz: “Não se ensina filosofia, ensina-se a filosofar”. Solta por aí, essa citação é entendida a gosto do freguês. Como você a entende? Ou ainda: como o entendimento da pedagogia de Kant pode nos ajudar a ler essa afirmação de forma mais fidedigna e extrair dela orientações?

Podemos ver nesta frase ao menos um duplo sentido. Primeiro, ela é formulada contra o sentido escolar de filosofia, acima aludido, que se baseia apenas no ensino da doutrina. Evidentemente que é importante conhecer a história da filosofia, sua tradição de problemas e seus conceitos principais. Mas isso não é suficiente, pois se aprende o conceito para poder pensar, como exercício de pensamento e não como algo mecânico, apenas como memorização e acúmulo teórico. Isso é um problema de todas as disciplinas, pois não se aprende gramática apenas decorando as regras, mas usando-as como exercício de pensamento. O De Magistro de Agostinho e o exercício que o mestre faz com seu discípulo (Adeodato) é um bom exemplo de como se pode usar a gramática, a retórica e a dialética para pensar por meio do exercício constante da pergunta, da boa pergunta. Do mesmo modo, a filosofia encontra seu sentido formativo por meio da pergunta bem posta que nos leva a pensar adiante e, inclusive, a questionar o saber recebido.

Mas, Kant possui também – e este é o segundo sentido – um propósito ético-político para sua ideia de filosofia e de ensino de filosofia, pois estava convencido de que o pensar por si mesmo, como algo que não é natural, mas sim cultural e educacional, portanto, como um problema de formação (Bildungsproblem), é a força espiritual capaz de provocar a passagem da menoridade para a maioridade, entendida como um processo inesgotável.  Quem não for capaz de julgar por si mesmo, será sempre subserviente a outros, sendo servo de caprichos alheios. Este problema histórico, próprio da época de Kant, continua sendo também nosso problema, manifestando-se na atualidade talvez de maneira ainda mais intensa. Por isso, ainda se faz necessário uma pedagogia da autonomia, que tenha em seu centro, como meta principal, a formação para a maioridade e isso só é possível por meio da pergunta esclarecedora. Por isso, a pedagogia da autonomia depende da pedagogia da pergunta e sua relação tensional (entre autonomia e pergunta) constitui o núcleo de formas críticas do esclarecimento contemporâneo. 

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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