Pelo resgate de narrativas, uma “compreensão mais completa e inclusiva da diversidade cultural do país”
Da Pesquisa Brasileira é uma série que apresenta depoimentos de pesquisadores em nível de pós-graduação sobre seus temas, suas métodos, suas perspectivas. Acesse todas as entrevistas.
A dissertação de mestrado “A história que a história não conta: a abordagem decolonial presente no samba-enredo da Estação Primeira de Mangueira” é o resultado de uma história de resistência. Hoje com 53 anos, a professora e pesquisadora Ana Cláudia de Oliveira, compôs “a primeira turma do mestrado professional em Ensino de História da Arte”, pós-graduação realizada pela Universidade Federal do Acre. O que seria o primeiro dia de aula deixou de ser pelo impacto da covid-19: foi iniciado o isolamento social na capital acreana, Rio Branco. Além dos ajustes, dela e dos professores, ao “novo normal” de então, tinha um filho para criar e foi acometida por uma síndrome do pânico. “Consegui avançar graças ao apoio de minha orientadora, minha mãe, amigos e a motivação de não querer desistir de um sonho muito antigo. Acredito que também recebi apoio do plano espiritual”. Hoje, após a defesa (em março) e com planos para o doutorado, ela comenta à Úrsula esse trabalho que procura “entender as estruturas e práticas neocoloniais que afetam as comunidades afro-brasileiras, indígenas e mulheres” e “promover uma educação antirracista”. Além disso, trata da relação entre o trabalho na sala de aula e a pesquisa universitária – que, no seu caso, se retroalimentam – e propõe caminhos de investigação e rotinas de trabalho.
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Como você descreve a sua área de interesse enquanto pesquisadora? Que tipo de questões te pegam, que problemas te incomodam, o que move sua investigação?
Minha área de interesse enquanto pesquisadora está voltada para as culturas afro-brasileira e indígena e para a contribuição das mulheres na história do Brasil. Enquanto professora, minha preocupação é proporcionar aos alunos uma compreensão das tradições culturais que compõem a identidade brasileira, especialmente aquelas que são constantemente marginalizadas.
A motivação está na necessidade de uma justiça social e na valorização da diversidade cultural em sala de aula e na sociedade em geral. É necessário conhecer e analisar os legados do colonialismo e da escravidão, que continuam a afetar negativamente as comunidades afrodescendentes, indígenas e mulheres, gerando desigualdades e injustiças.
Por isso a preocupação com a neocolonialidade, que é uma maneira de opressão que mantém relações desiguais de poder, exploração e marginalização. E o objetivo é entender as estruturas e práticas neocoloniais que afetam as comunidades afro-brasileiras, indígenas e mulheres, ao mesmo tempo que busco desenvolver estratégias para promover uma educação antirracista.
A pesquisa e minha prática pedagógica estão ligadas, pois as duas buscam contribuir para a construção de uma sociedade mais justa e equitativa, onde todas as culturas sejam valorizadas e respeitadas.
Fale sobre o seu trabalho de pesquisa atual: como surgiu e se desenvolveu “A História que a História Não Conta”?
O título tem suas raízes em minha jornada acadêmica e profissional, assim como em meu entusiasmo por resgatar e valorizar as histórias muitas vezes negligenciadas das comunidades afro-brasileiras, indígenas e mulheres.
Inicialmente, minha intenção era estudar a transição religiosa nas religiões de origem africana no estado do Acre. No entanto, quando iniciei o mestrado profissional em Ensino de História, percebi a necessidade de produzir um produto didático. Nesse momento, minha orientadora, a professora doutora Teresa Almeida Cruz, professora associada da Universidade Federal do Acre, propôs que eu trabalhasse com o samba-enredo da escola de samba Mangueira intitulado “Histórias Para Ninar Gente Grande”, de 2019.
Essa sugestão foi muito significativa, pois, em 2005, durante minha graduação, defendi uma monografia que tratava da lei 10.639/2003, que institui a obrigatoriedade do ensino da história e cultura afro-brasileira e africana nas escolas. O samba-enredo de 2019, com sua crítica à invisibilidade das minorias nos livros didáticos, veio ao encontro de minha pesquisa anterior e com minha preocupação sobre a representação e o reconhecimento das comunidades afro-brasileiras, indígenas e mulheres na narrativa da historiografia oficial.
Dessa forma, “A História que a História Não Conta…” visa resgatar e valorizar as narrativas alternativas, as resistências e as lutas por justiça e reconhecimento desses grupos.
Um outro ponto muito curioso é que, após ouvir o samba-enredo, e analisando-o com a intenção de transformá-lo em meu objeto de pesquisa, imediatamente identifiquei qual seria o produto da dissertação. Muitos estudantes de mestrado possuem dificuldades em definir o produto, acredito que essa facilidade se deu pelo fato de já ministrar aulas de história e sociologia para o Ensino Médio há mais de 20 anos.
Me apaixonei pelo tema, pois o samba-enredo “História para ninar gente grande”, composto por Deivid Domênico, Tomaz Miranda, Mama, Marcio Bola, Ronie Oliveira e Danilo Firmino, não é apenas um esforço de preencher lacunas na narrativa histórica oficial, mas uma forma de desafiar as estruturas de poder e as hierarquias de conhecimento que mantêm apagadas e marginalizadas as experiências dos afro-brasileiros, indígenas e das mulheres.
Desenvolvemos oito roteiros que têm como tema as várias histórias presentes no samba-enredo, com o objetivo de dividir essas temáticas para serem aplicadas em sala de aula. Os temas que desenvolvemos foram:
1 – História para ninar gente grande: qual a mensagem do samba?;
2 – Brasil: tua cara é de Cariri;
3 – Confederação dos Tamoios;
4 – Os quilombos;
5 – Acotirene, Aqualtune e Dandara;
6 – Salve os caboclos de julho;
7 – A história dos Malês e Luiza Mahin;
8 – Quem foi de aço nos anos de chumbo.
O roteiro era desenvolvido, aplicado em sala de aula, para alunos e alunas do Ensino Médio. Ao final dos estudos eles respondiam um questionário sobre o roteiro. Foram nove meses de trabalho, em que se realizou desenvolvimento de roteiro, aplicação e modificações a partir das observações dos alunos e alunas, com a intenção de melhorar a estrutura. Me lembro que queria fazer um único roteiro com todos os temas, mas quando tentei aplicar, percebi que não daria certo. Pois ficou muito longo e cansativo. Tive que recuar, e dividir os roteiros.
Deu um pouquinho de trabalho, mas valeu a pena.
Qual a contribuição dos seus trabalhos? Como você descreveria a sua importância a) para uma pessoa da sua área e b) para um leigo no tema?
Para uma profissional da área de história, acredito que a contribuição do trabalho desenvolvido vai no sentido de resgatar e valorizar as narrativas históricas marginalizadas das comunidades afro-brasileiras, indígenas e das mulheres. Ao desenvolver produtos didáticos como os roteiros de aprendizagem, o objetivo foi oferecemos recursos para educadores interessados em trabalhar de forma mais abrangente e multicultural em sala de aula.
Ao criar produtos educacionais com base na letra do samba enredo da Mangueira “História para ninar gente grande”, buscamos proporcionar uma maneira acessível e envolvente para estudar alguns aspectos da história e cultura afro-brasileira, indígena e das mulheres. Destacamos as contribuições e experiências muitas vezes esquecidas desses grupos por meio de vídeos, imagens, textos e atividades, permitindo que possam refletir sobre sua própria relação com a história e identidade do Brasil.
Ao resgatar essas narrativas, procuramos promover uma compreensão mais completa e inclusiva da diversidade cultural do país. Dessa forma, as pessoas leigas no tema têm a oportunidade de ampliar seus horizontes e desenvolver uma apreciação mais profunda e respeitosa da riqueza da herança cultural brasileira, indígena e das mulheres.
Como é a sua rotina de pesquisa? Como é conciliar essa atividade com outras do seu cotidiano, quais dificuldades você tem?
Aliar as atividades de pesquisa com a responsabilidade de professora foi desafiador. Porém, no mestrado profissional é possível integrar a pesquisa à prática pedagógica, seja desenvolvendo materiais didáticos baseados nas descobertas ou incluindo os alunos em pesquisa colaborativa.
É importante mencionar que as aulas do mestrado em Ensino de História teriam início no dia 17 de março de 2020, dia que iniciou o isolamento social na cidade de Rio Branco (AC). As aulas foram suspensas e só iniciamos de fato no final do mês de setembro do mesmo ano. Foi um momento extremamente complicado para todos os professores, pois além de aprender sobre as novas tecnologias para dar aulas on-line, passavam pelo isolamento social; no meu caso, tive síndrome do pânico, tendo que me submeter a um tratamento.
Nesse momento, consegui avançar graças ao apoio de minha orientadora, minha mãe, amigos e a motivação de não querer desistir de um sonho muito antigo, que tive que adiar porque precisava trabalhar muito para criar e educar meu filho. Foi uma época muito difícil, mas acredito que também recebi apoio do plano espiritual. Também é importante destacar que essa foi a primeira turma do mestrado profissional em Ensino de História no Estado do Acre.
Apesar dos desafios, a pesquisa se tornou uma parte importante da minha prática como professora. Importante ressaltar que as atividades desenvolvidas por um professor ou professora envolvem naturalmente um aspecto de pesquisa, uma vez que se está constantemente buscando novas maneiras de ensinar, adaptando-se às necessidades e interesses dos alunos e procurando aprimorar sua própria prática pedagógica.
Como se relacionam, no seu caso, o mundo do trabalho e o mundo da pesquisa? Há aprendizados trocados entre eles?
Como mencionei na questão anterior, no meu caso, o mundo do trabalho, como professora, e o mundo da pesquisa estão relacionados. Como professora, estou envolvida no processo de ensino e aprendizagem, buscando maneiras de transmitir conhecimento e promover o desenvolvimento dos meus alunos.
As experiências vivenciadas em sala de aula muitas vezes inspiram áreas de interesse e temas de pesquisa. Ao lidar com as dúvidas e curiosidades dos alunos, também busco refletir sobre questões importantes para minha disciplina.
Por outro lado, a pesquisa acadêmica enriquece a prática pedagógica, pois fornece novos conhecimentos, metodologias e recursos que podemos aplicar em sala de aula. De forma que há uma troca de aprendizados entre o mundo do trabalho e o mundo da pesquisa.
A partir da sua experiência, que sugestões você daria a outros pesquisadores que precisam incluir a pesquisa entre as suas outras tarefas no dia a dia?
Estabeleça prioridades e defina metas para seus projetos de pesquisa; utilize técnicas de gestão de tempo; explore ferramentas de organização e produtividade, como aplicativos de gerenciamento de tarefas; esteja preparado para ajustar seu planejamento conforme surgirem imprevistos e contratempos; reserve tempo para descansar e fazer atividades físicas; busque apoio de colegas, orientadores e outros profissionais; acredite em sua capacidade; valorize seus progressos e conquistas ao longo do caminho, por menores que sejam e nunca desista.
Que questionamentos não respondidos você enxerga no seu campo de pesquisa? Isto é, a partir dos debates que conheceu e trouxe, que problemas você entende que devem ser abordados – por você ou por outros pesquisadores?
Como fazer para que as pesquisas produzidas nas universidades alcancem efetivamente as salas de aula, para contribuir e enriquecer os conteúdos pedagógicos e promover uma educação mais inclusiva e antirracista? Quais estratégias podem ser adotadas para facilitar a transferência de conhecimento entre os pesquisadores e os educadores do ensino básico?
Como adaptar as pesquisas e abordagens pedagógicas para refletir as especificidades culturais, históricas e socioeconômicas do estado do Acre? Como integrar os conhecimentos e saberes locais das comunidades afro-brasileiras, indígenas e ribeirinhas nas práticas educacionais, respeitando e valorizando sua identidade cultural?
Conte quais podem ser os seus próximos passos como pesquisadora. O que você quer realizar ainda nessa forma de trabalho?
Pretendo me inscrever no doutorado em Ensino de História na Universidade Federal do Acre este ano. Caso seja aprovada, durante esse programa, tenho a pretensão de aprofundar meus conhecimentos e habilidades em pesquisa e metodologias de ensino. E pretendo dedicar mais tempo à produção de material didático. Planejo desenvolver recursos educacionais inovadores, multidisciplinares e contextualizados, que promovam uma educação mais inclusiva, antirracista e sensível à diversidade cultural. Também tenho planos de abrir um site destinado à história e sociologia. Nele, pretendo compartilhar os materiais didáticos desenvolvidos com discentes e docentes.