Você acha que vamos encontrar?

A peça DentroFora consiste em dois personagens, um homem e uma mulher, cada um em um compartimento fechado, como uma caixa. Não se vêem, não se tocam, é duvidoso dizer que se comunicam; mas conversam, e nos encontros e desencontros desse diálogo o enredo prossegue inadvertido. Adaptada do texto Hide and Seek, de Paul Auster e influenciada por obras de Samuel Beckett como Dias Felizes e Esperando GodotDentroFora foi encenada pelo grupo In.Co.Mo.De-Te, em São Paulo, no início de setembro de 2010. O significado, o sentido das palavras, das coisas e do cotidiano é o que parece estar em jogo. E é, talvez, no existencialismo de Jean Paul Sartre que encontramos a interpretação mais ampla da obra.

A primeira frase que ouvimos já aponta o cerne da montagem, nela já se inicia uma espécie de desconstrução. Depois de dois momentos com alguma tensão — as cortinas fechadas e a música-tema no primeiro instante; a imobilidade do homem e da mulher no segundo, presos ou fixados a uma ação como manequins — ele pergunta: ‘o que foi que você disse?’. O que o público sabe? Que algo foi dito. A frase aponta para um conteúdo ao qual não temos nem teremos acesso. O que ela responde não é exatamente a resposta; e essa pergunta será feita nas mesmas condições no ato seguinte, e a conversa se desenrolará de outra forma. Existe a pergunta; existe a resposta; e existe esse abismo entre os dois pólos.

O recurso é usado também em outros momentos da peça. Ele diz: ‘Você se lembra da vez, em que dançamos a música?’. A entonação não é evidente na frase escrita. Esteja claro que não é da vez em que dançamos a música — há aqui referências à vez (um instante no tempo que, de novo, não podemos precisar) e à música. Essa pergunta também será feita outra vez, e, novamente, haverá outro desenvolvimento. Só sabemos do sentimento que eles possuem, da lembrança e do jeito como expressam isso tudo. Só sabemos, de forma vaga, daquilo dos fatos que restou neles. Aqui o efeito é duplo: reforça o que eu referi no segundo parágrafo e nos aproxima das personagens. Muito além de conteúdos, são as sensações que tem o poder de estender a ponte possível entre aqueles extremos.

Reconheço o orgulho que esse personagem expressa: é o mesmo que eu já senti. A alegria, a tristeza, a angústia e a confusão que há nele são fenômenos que já vivi. Além de conhecer a sua história ou me informar sobre sua sorte ou azar — o sentimento permite uma tradução íntima. Cada qual preso em sua subjetividade, mas, dentro dessas subjetividades, a empatia. Dois trechos da montagem dão consistência a essa interpretação: a que ironiza a pergunta: ‘o que significa eles estarem presos em caixas?’ e a que traz a discussão sobre o azul.

No primeiro, os personagens discutem porque estão ali, presos em caixas. A resposta: ‘Para ajudar’. Ajudar o que ou ajudar quem são informações que não teremos. A mulher desafia o homem, diz que ele não consegue dizer um motivo de fato. Ele, então, sugere uma série de interpretações que poderiam ter estado nessa crítica: representam o isolamento humano, são o símbolo disto ou daquilo. Essas respostas continuam sendo possibilidades, porém, a partir daí, são questionáveis: se poderíamos ter certeza que tudo se baseava em certa concepção filosófica de mundo, agora isso é mais complicado. Aqui há o mesmo movimento anterior: cremos que a peça se refere a um conteúdo delimitado, e essa referência é desconstruída. O que sobra como certo é apenas a identificação possível com os sentimentos.

O segundo trecho parece sem propósito. As personagens falam sobre palavras, o significado de cada uma. Chegam ao azul. A ideia é que só sabemos o significado dessa palavra porque experimentamos a cor de fato. O sentido desse termo (por extensão, de qualquer termo, o que pode demonstrar o intuito dessa cena) só é possível após o contato. Daí surge a cena de maior beleza plástica, creio, da peça. No ápice de uma especulação sobre os azuis possíveis (como seria um azul diferente? O mais bonito dos azuis!), os personagens se congelam num gesto, ao mesmo tempo em que as luzes cobrem a plateia de azul. O espectador pode então perceber que nada da verborragia anterior poderia descrever o colorido. Então se torna clara a distância entre significante e significado.

Toda essa problematização da comunicação e do sentido — vista aqui nas frases soltas, na sensação como ponte e nos dois últimos exemplos — ganha corpo nas cenas finais, quando é potencializada para tratar da vida. Estamos separados constantemente do que é viver, e é nesse ponto que o existencialismo será útil.

Recuo

Talvez seja exato dizer que nessas últimas cenas se evidencia outra distância: a que há entre nós e nosso passado, e também entre nós e nosso futuro. Quando fala da viagem, enquanto o homem imita o andar de um trem em gesto e som, a mulher diz que conforme o veículo se apressava ela tentava guardar o máximo possível de tudo o que via e, naquele momento, só tinha lhe sobrado como lembrança um borrão. A conexão com o passado é a memória — porém, a memória não nos entrega todo o passado, apenas frações dele. Sentimento similar parece ter sido descrito pela banda Death Cab For Cutie, em What Sarah Said:

It stung like a violent wind
that our memories depend
On a faulty camera in our minds

Quanto ao futuro, é de novo em uma só frase que encontramos o núcleo da discussão. Em vários momentos, se pergunta: ‘Você acha que vamos encontrar?’, e em cada vez, por uma variação quase imperceptível de tom ou pelo contexto o significado é outro, e nunca se diz o que é que se quer encontrar. Talvez porque o objetivo seja sempre mutável.

Em dado momento, como resposta à pergunta, o homem fala de portas. Que as encontramos perdidas na estrada ampla. Que podem levar a outro lugar ou não, que podemos atravessar o batente apenas para ver a mesmíssima estrada no lado oposto. Enquanto ele fala, a mulher destranca sua caixa e consegue alcançar o exterior. Avança um passo na nossa direção. É como se tivesse afinal encontrado. Ao fundo, o discurso do homem sobre a incerteza. Ela volta. Tranca-se novamente. Ele não percebe nada disso. Ela pergunta, então: ‘Você acha que vamos encontrar?’.

Em O Existencialismo é um Humanismo, Jean Paul Sartre expõe alguns conceitos próximos ao tipo de experiência da peça. A angústia — a condenação à liberdade, a necessidade de escolher constante e com consequências além do controle. O desamparo — a absoluta falta de um referencial que nos ajude a escolher (já na sujeição a uma moral, por exemplo, existe a escolha de sujeição a essa moral, por exemplo). E a transcendência: o fato de sempre nos recriarmos em direção a um futuro, de sermos sempre projeto. Não é meu propósito discutir Sartre; mas vê-se só por isso que a dificuldade de escolher, de se refazer, de comunicar e de receber que vimos são elementos compatíveis com essa filosofia que se propõe descrever a vivência humana na sua completude.

É considerando tudo que se pode dizer que DentroFora é universal de maneira particular. A experiência narrada é comum a todos nós de uma forma muito delicada, além do específico, do caso pontual. Talvez seja exato dizer que a caixa em que cada um está é nossa esfera de ação, nosso campo de escolha atual, nossa subjetividade. Mas, como dito, as referências são duvidosas e dispensáveis. É pelo sentimento que se frui a história sem palavras da peça.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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