Variações sobre um tema de Tolstói: Guilherme Gontijo Flores e História de Joia

História de Joia, livro de Guilherme Gontijo Flores

O escritor Liév Tolstói teria dito, numa fórmula que cito livremente (porque a li em diversos ensaios e artigos de crítica literária, mas não no próprio bardo russo): quem descreve um vilarejo, descreve o mundo. Onde o velho Liév falou eu não sei ainda, e aqui não importa muito.

A questão é: essa técnica é extremamente eficiente para a construção de uma narrativa, porque o, no primeiro contato entre as pessoas, o que marca é a percepção de algum traço peculiar e sobressalente na personalidade alheia. Depois a gente se aprofunda em conhecer o outro (ou o escritor aprofunda as revelações da personagem) e ele se torna “humano”, com contradições, sonhos, desejos e afins. Ou não: a gente continua afastado e o outro continua um tipo, reduzido a um elemento – e nem sempre isso é um problema.

De maneira geral, enfim, o que acontece é isso: um narrador, personagem ou não, caminha por sua cidade, bairro, vizinhança ou até por sua casa, vê quem está à sua volta e vai definindo essas pessoas de alguma forma. Umas trezentas páginas das mil de Guerra e Paz são basicamente isso; quase tudo que o Jorge Amado, o William Faulkner e o Autran Dourado escreveram também.

Esse recurso pode, ainda, ser muito eficiente no que se refere a obras que reforcem sentimentos como orgulho, pertencimento ou resistência de um grupo sob outro. Em Cidade de Deus, de Paulo Lins, e Becos da Memória, da Conceição Evaristo, a técnica é essencial para a quebra de padrões racistas brancos e elitistas sobre as individualidades de pessoas de periferias e favelas. É, inclusive, uma técnica usada pelo Spike Lee no filme Faça a coisa certa. Quase sempre, as telenovelas brasileiras se estruturam nesse formato.

Mas vejam: citei aqui alguns exemplos em que o que nós temos é uma relação eu-mundo. A essência das narrativas acima referidas vem da ideia do Baudelaire, do flaneur, o homem endinheirado, que dá um giro pelas suas quebradas, vê o povo e os descreve, às vezes interage com eles, e, nisso, revela aspectos da alma humana, da sociedade, da política e de outras tantas esferas possíveis nessa técnica “vila = mundo”.

No romance História de Joia (Todavia, 2019), do Guilherme Gontijo Flores, esse instrumental é empregado, mas diferentemente desse modelo tradicional citado aí em cima, por uma questão principal: a gente não tem a flaneuse (o feminino de flaneur, como indica a Camila Assad), e esse é o ponto que destaca esse livro.

A personagem presentemente ausente

No livro do Guilherme a gente acompanha um dia na vida de Joia, uma mulher negra de periferia: seu dia de trabalho, suas interações com vizinhos, suas opiniões sobre o mundo, suas ideologias e afins. Porém, a gente acompanha, não por ela, por sua voz ativa. É por sua ausência, por aquilo que alguém está, a todo momento, falando dela.

Através de 22 capítulos que podem ser lidos como contos – dos quais, 21 com nomes de cartas do Tarô1 – assistimos à interação de Joia com as demais personagens, interação que, por vezes, é uma simples menção de sua figura, do outro lado da rua, ou, ainda menos, a sugestão de sua presença (como no capítulo 18, A Casa de Deus) no qual o que lemos é um trecho da Bíblia.

Dada essa estrutura, o que é interessante é a pergunta: o que faz uma personagem? O que faz Joia? Quem é ela? Para essa resposta, vamos seguindo as diversas esferas narrativas em que ela se insere.

Mas, antes, um aviso: não sei interpretar cartas de Tarô, não me preocupei em pesquisar e analisar os capítulos a partir desse olhar. Provavelmente seria um trabalho bem interessante, mas deixo isso às pessoas como a poeta Julia Carvalho Hansen, que dedicam sua vida a estudar as cartas e a literatura (por detrás) delas. Se a Julia escrever um artigo traçando essa relação, me avisem, vou adorar ler.

Assim, voltando, quem é Joia? Notem um primeiro ponto, que eu só notei agora que cheguei a esse parágrafo e já subi pra corrigir. O livro não é “A História de Joia” – é “História de Joia”, ou seja, não é a totalidade da vida dela (o artigo que limita tudo à personagem, sua vida, sua biografia), mas uma história dela. É, afinal, um dia da vida dela.

Assim, a gente pode pensar a personagem por algumas vias, e a perspectiva do Bakhtin me interessa. É um pouco antiga, de fato, mas acho que é difícil de ser superada. Vejam só: se não temos Joia de forma ativa e presente, temos tudo que não é Joia; não sabemos quem é Joia, mas sabemos algo, porque alguém está falando no raio de existência dela. O ponto central do romance, a protagonista, não existe enquanto alguém que olha o mundo e o interpreta para, depois, nos contar o que viu. Assim, a gente não sabe quem é Joia a partir da sua leitura sobre o todo. Antes, a gente sabe sobre ela a partir do todo.

Ao mesmo tempo, vamos voltar ali pro artigo sumido: não é A História e sim “História” e o que “História” significa? Numa perspectiva imediata: um causo, uma narrativa, uma descrição sequencial de coisas. Uma pessoa contando sobre o seu dia, por exemplo. Essa constatação, por seu lado, transforma totalmente a perspectiva sobre Joia, porque dá uma nova luz pra outro elemento de que o Bakhtin fala, o autor implícito.

O autor implícito é uma abstração do autor real. A gente sabe que quem organizou o livro  como ele foi impresso e colocado à venda foi o Guilherme; que ele, em algum momento de sua vida, talvez tomando café, optou por deixar o primeiro capítulo sem numeral e o último capítulo com o número romano “XXI” e o nome “O Louco”. Esse é o autor real.

Esse conceito serve a uma tentativa de entender os porquês de o livro estar organizado daquele jeito. Com ele, temos algo que pode ajudar a gente a entender quem é Joia: por que o primeiro capítulo não tem número e se chama “Força” e por que o último se chama “XXI. O Louco”? Numa medida, o que essa pergunta sugere é outra: quem é o autor implícito do livro? Qual a relação dele com Joia? Qual a ideia dele ao contar a “História de Joia” desse jeito?

E, assim, num enorme plot twist, dá até pra nós pensarmos que o autor implícito do romance é a própria Joia. Ou seja, ela não fala dela mesma, mas ela fala, no momento em que ela organiza sua história pela narrativa de pessoas falando sobre várias coisas (e também sobre ela).

Afinal, o título (que muita gente esquece, mas é um elemento importante pra nós entendermos o enredo de um livro) não tem o artigo “A”. Então, o autor implícito do romance pode ser:

  • Um autor implícito lendo o que Joia está falando;
  • Joia se tornando autora implícita da sua história;
  • Um autor implícito que acompanha Joia à distância;
  • Outra possibilidade que eu não falei aqui.

Quando a gente abre o livro, a primeira coisa que nós lemos é “A vida pode ser entendida exatamente como aquilo que excede qualquer relato que dela possamos dar./ Judith Butler” e então “Eu já não tenho mais voz (…)/ Stela do Patrocínio, via Viviane Mosé”. O que Guilherme faz é uma intrincada construção narrativa, que é brilhante, justamente por colocar as personagens como autoras de suas próprias histórias ao mesmo tempo em que são autoras da História de Joia.

Quando lemos a frase de Judith Butler e somamos o pensamento da filósofa ao de Stela do Patrocínio, escritora negra com todo um histórico de passagens por instituições de saúde mental, falarmos em “Historia de Joia” se torna, ao mesmo tempo, uma história coletiva e individual, na qual todas as personagens têm importância enquanto narradores e personagens — inclusive Joia no seu jogo de aparição/desaparição. Somando isso à terceira epígrafe – a música Strange Fruits, sobre linchamentos e enforcamentos de pessoas negras nos Estados Unidos — minha hipótese se fortalece.

Por que? Primeiro, porque temos essa noção de falta de voz de pessoas de favelas e periferias. Os indivíduos que compõe o cotidiano de Joia não têm voz, não têm espaço para falarem sobre si, sobre sua vida seu contexto. Então, o que temos deles são seus monólogos interiores, que só existem porque eles ficam pensando e interpretando seu mundo. Por outro lado, essa é a “Historia de Joia”, então, só conseguimos ouvir essas vozes quando Joia está perto deles de alguma forma.

Dessa maneira, Joia não fala sobre si, mas falam sobre ela, mas só quando ela está perto, e uma vez que as coisas só acontecem porque ela está se movendo, o que acontece é essa via de mão dupla entre protagonistas e autores. Joia é autora da sua história, na medida em que a história dela é o dia a dia dela, e não é autora da sua história, pois não é ela que constrói o que é dito sobre sua história.

E o Tolstói, como é que fica?

Isso nos leva de volta à noção de “vila = mundo” na narrativa. Quando pensamos que Joia anda pelo seu bairro, a gente não tem só a voz dos excluídos, mas a voz de toda a humanidade, condensada em uma única perspectiva. Isso fica um pouco mais claro, eu imagino, quando a gente procura interpretar a relação entre coletivo e individual pelo que o enredo traz. Uma luz sobre isso aparece se pensamos, outra vez, na semântica dos títulos dos capítulos.

Alguns deles têm referências bastante evidentes. É o caso do primeiro, sem número, “Força”, em que ocorre uma operação policial e Joia volta pra sua casa indiferente à ação armada. Além desse, o citado “XVIII. A Casa de Deus”, no qual a gente lê um trecho da Bíblia, sem nenhuma explicação maior — ou seja, Joia está lendo o livro ou está no culto.

São capítulos que descrevem a “vila” de Joia, a favela (as palavras “morro” e “barraco” aparecem em alguns momentos) onde ela vive; por conseguinte, descrevem o mundo, em algum nível. A periferia, o mundo dos excluídos sociais, elementos da moral de pessoas da favela, que são elementos morais da humanidade em geral.

Outros capítulos exigem um pouco mais de criatividade nossa — uma qualidade do livro, eu acho, porque quem não entende bulhufas de Tarô, consegue captar mensagens e imagens também.

Pensemos no capítulo “VII. O Namorado”, que traz uma rapper pensando sobre sua condição (mulher lésbica, periférica, com uma mão amputada, alcoólatra, mas com sonhos de ter sucesso como rapper) e em rimas que falem sobre essa condição — incluindo aí, seu desejo por Joia, de quem ela tenta chamar a atenção. É a redução de uma pessoa a um elemento bem específico daquele contexto? Sem dúvida. É um elemento comum a existência humana em geral (planos, rejeição, vícios, frustração)? Também. Ao mesmo tempo em que Guilherme escreve sobre uma particularidade do bairro, escreve sobre questões inerentes à humanidade.

Questões essas, que a gente não acessa porque – como lemos nas epígrafes – elas concernem a vidas que ultrapassam a narrativa, vidas de pessoas que não têm voz — ao contrário, são perseguidas e mortas. Então, retomo aqui o que eu falei no começo: nesse interessante ato de falar sobre a personagem sem falar sobre ela, em História de Joia a gente é colocado em uma relação individual/coletivo que oscila entre dois pólos: são indivíduos falando sobre si e sobre uma personagem; e é um coletivo porque, como indivíduos (os narradores-personagens e Joia) fazem parte de um mesmo grupo. Ao mesmo tempo, trata-se de uma ausência individual (Joia praticamente não fala de si) e coletiva (a gente só sabe sobre certa pessoa quando Joia está perto). Em outra medida, História de Joia pode ser lida como uma pessoa sem voz (Joia, mulher negra e periférica) ganhando voz, mas apenas porque ela, em si, não consegue ter voz — e é ela, participando do seu grupo, mas sem voz, que dá voz pra todos os outros.

Em um jogo de silêncios e falas, Guilherme Gontijo Flores escreveu um fantástico romance que é político e existencial. Fazendo um grupo falar sobre sua vila — sem falar sobre sua vila, e, por isso mesmo, falando — ele fala sobre todo o mundo, sobre o mundo para além do Brasil, sobre o mundo enquanto contemporaneidade cosmopolita que tenta se adequar, sem perder sua identidade local.

Com isso, chegamos ao fim. Trouxe alguns pontos, nessa área que eu sei improvisar um pouco mais, sobre narrador e personagem. Mas o romance é amplo, e prevejo que muito ainda mais pode ser dito sobre ele, que condensa tantos discursos, ideologias e estilos narrativos. Como eu falei lá em cima, a estrutura até lembra os filmes do Spike Lee, e nem cheguei a falar da capa de Rafael Sica, que de longe parece uma areia arroxeada, mas que de perto são milhares de desenhos em azul, vermelho, laranja e preto sob uma tela branca — uma metonímia do livro?

Não sei, deixo pra vocês. Talvez o velho Liév Tolstói olhasse a capa e dissesse em russo (depois a gente pode pedir pro pesquisador Bruno Gomide escrever como seria): “Quem descreve uma capa de livro, descreve o mundo”. Enfim, fica como proposta de interpretação desse grande livro de 88 páginas chamado História de Joia.

Autor

  • Autor dos livros de poesia Nada (Patuá, 2019) e Hinário Ateu (Urutau, 2020). Já publicou em revistas como Mallarmargens, 7Faces, Zunái e publica com regularidade nas revistas Úrsula e Subversa.

Notas[+]

Compartilhe esta postagem:

Participe da conversa