Um Deus Plausível

Na série Supernatural, nem mesmo os anjos conhecem Deus. Nunca foram guiados por sua ciência; ou receberam conselhos; ou viram a face da divindade, nem sequer ouviram sua voz. É claro que isso os leva a sentimentos mais agudos que os nossos: a uma fé metódica ou a um desespero destrutivo. Avançando nos patamares da mitologia da série, encontramos abaixo os humanos, nas contradições do que seja erro; ainda mais abaixo, os demônios mantém um senso de missão, um objetivo, uma frieza. Não se questionam. Satélites deste sistema, todas as outras espécies de criatura sobrenatural, focadas na sua própria subsistência, o que no mais das vezes implica no assassinato de alguns humanos. Apesar de alguns defeitos, o que os episódios conseguem propor é interessante: o que de urgente se necessita é de uma moral que prescinda de deus — e isso, por implicação da história — na opinião do próprio deus.

Supernatural foi criada em 2005 e atualmente está na sua quinta temporada. Traz a história de dois irmãos que investigam acontecimentos misteriosos, caçam e destroem criaturas tais como vampiros, fantasmas, lobisomens, demônios. Inicialmente, essa busca se dá porque os dois desejam vingança; conforme novos acontecimentos se dão, vê-se que ambos tem muito mais importância do que poderiam prever: são peças centrais no conflito final entre o Diabo e os exércitos do Céu. A série sabe rir de si. Brinca com o fato de ser um seriado por meio de diálogos cheios de referências a outras produções da cultura pop; faz paródia de filmes antigos de terror, horror, suspense; e os episódios que seguem por esse caminho, mesmo que não adiantem a narrativa principal, dão um gosto diferente a todo o resto. É uma quebra da ilusão cênica que também funciona para aprofundar essa ilusão: quando alguém disse ao protagonista se eles caçavam o misterioso como em Arquivo X, ele respondeu:

‘Não. Aquilo é uma série. Isso aqui é real’.

Nosso foco aqui são as duas últimas temporadas: na primeira, tenta-se impedir que Lúcifer seja libertado e que o Apocalipse comece; não se consegue. Depois, na atual, as perspectivas são péssimas, o que fazer não é claro, a luta parece perdida. Talvez eu precise revelar alguns fatos da história, talvez eu incorra em spoilers, portanto, só leia se sabe o que ocorreu, se quiser assistir já com outro ponto de vista ou se não se importa. No artigo, deus se refere à principal divindade cristã assim como o senso comum a desenha.

Primeiro e último selo do Apocalipse

Os dois irmãos mencionados acima chamam-se Sam e Dean Winchester, de personalidades bem placas, marcadas, algo próximo do clichê. O primeiro é mais ingênuo, mais correto, de boas intenções e alguma fragilidade. O segundo é valentão, mulherengo, entende de carros e de armas e de bandas de rock e as datas em que lançaram seus álbuns com exatidão. Essas características ganham alguma complexidade, mas não fogem muito do que se disse. Porém entre ambos existe um grande afeto, usado por todos os inimigos para prejudicá-los, o que é um problema, o que implica em um dilema conhecido dos heróis americanos: sua condição é de responsabilidade e tem aparência de maldição. A série satisfaz em várias instâncias — as citadas doses de susto e de humor; identificação emocional com os valores familiares, tradicionais; e um pouco de dúvida intelectual que se dá pela complicação do maniqueísmo e pelos anjos sem deus.

As duas últimas temporadas, como dito, trazem a tentativa de impedir que Lúcifer volte e, depois que isso dá errado, o esforço para matá-lo de uma vez. Para libertar o diabo, precisa-se quebrar 66 selos. O primeiro e o último têm um caráter relevante. No fim da terceira temporada, Dean morre e vai para o inferno, por um acordo que fizera e comprometera sua alma. Lá, naturalmente, é torturado de todas as formas imagináveis, ano a ano, e, ao fim de cada dia, um dos demônios mais poderosos lhe dizia: ‘tome um desses instrumentos de tortura para si e estará livre’. Eventualmente, após de décadas sofrendo de forma intensa, ele cede, e passa a torturar almas recém-chegadas. Enquanto isso, um grupo de anjos lutava nas fronteiras do inferno para invadir o local e resgatar Dean. Por que? Pelo fato de que se ‘o homem justo derramar sangue no inferno’, o primeiro selo dos muitos que aprisionam Lúcifer é quebrado, e assim se pode passar a quebrar os demais. É certo que Dean não foi ‘bom’, agiu cruelmente e sentiu prazer com isso, mas, como é que ele poderia ser o contrário na condição em que estava? O que seria ‘correto’ que fizesse?

Sam possui alguns poderes psíquicos; quando bebê, um demônio deixou que bebesse algumas gotas de seu sangue — sendo essa atitude parte do plano para libertar Lúcifer. Depois da morte do irmão, Sam passa a acreditar cada vez mais em outro demônio — Ruby, que o ajudou algumas vezes. Neste momento, quem lidere o esforço demoníaco de quebrar os selos é Lilith, criatura muito poderosa. Para destrui-la, Sam é convencido (ou se convence) de que precisa beber sangue de outros demônios, se fortalecendo mais e mais, até chegar ao ponto de destruir Lilith. Seus poderes evoluem; primeiro, ele com dificuldade consegue exorcisar invasores; depois, pode implodi-los com um gesto. Nesse percurso, ele se vicia no sangue maldito, como se fosse uma droga. Se impossibilitado de beber, sofre de reações de abstinências sobrenaturais e fortíssimas. Mas persiste, pelo seu objetivo. Acaba abandonando o irmão, por ele ser contrário à sua atitude. E quando um demônio se esconde bem no fundo da psique de uma humana, ele tem de beber o sangue, a última dose, mesmo se a mulher grita, mesmo se ela é inocente, e ele o faz.

Consegue, de fato, matar Lilith. Problema é que a morte dela é o último selo. O sacrifício e o esforço, a perda de si mesmo pelo ideal acabaram colaborando com o lado oposto. Claro que se pode dizer que ele estava errado, porque aquele era um caminho perigoso, mas como ele poderia saber que justamente o que mais parecia certo era exatamente o mais terrível?

Anjos que dizem: ‘deus está morto’

Nesse contexto, descobrimos também que os anjos não fizeram nada para impedir que tudo isso acontecesse; deixaram que os selos fossem quebrados com facilidade, desejaram que o Apocalipse fosse iniciado, enfim. Queriam a batalha final. Chegaram a tais decisões por um desprezo que sentem pelos humanos e porque não havia sinal de deus — nenhum conselho ou palavra que os guiasse. Novamente, o que seria ‘correto’ que fizessem? Impedir, apenas para que outro demônio, em outra época, tentasse novamente? E para que? Para salvar uma espécie pela qual não sentem fraternidade? E talvez não fosse mesmo melhor até para esses seres humanos se os anjos exterminassem os seres do Inferno de vez? Os anjos exibem as mesmas atitudes de Dean e Sam: um primeiro sinal de crueldade e uma crença de que poder absoluto e violência definitiva podem ser a solução final. Em certo momento, pergunta-se a um arcanjo, o próprio Gabriel, onde está deus. E ele diz: ‘deus está morto’…

Há dois modos de enxergar as ideias contidas nesses acontecimentos narrados. A primeira é perceber que há um grande potencial de identificação por parte de quem assiste — já que a falta de guias morais e de apoios na hora de tomar decisões é frequente para qualquer um. Por outro lado, a série sugere uma resposta para todas essas dúvidas: Sam devia ter mantido sua confiança no irmão, devia ter se mantido próximo da família. Dean devia ter sido como seu pai, que resistiu a 100 anos de tortura sem se entregar. Quer dizer, ir em direção a esse tipo de tradição, de valores que se põem como imutáveis, se coloca como resposta. Isso não é incomum no cinema americano, desde sua origem, a defesa do ideal familiar.

É nesse ponto do texto que eu me lanço a um especulação além da série. Supondo que deus — o deus cristão — seja bom conforme a série deve acabar afirmando mais para frente, que é que ele pode pretender deixando todos por si? Como defender uma bondade desse deus? Parece haver uma única suposição plausível: este deus deseja que o que seja a bondade ou o que seja a moral existam mesmo que ele próprio não exista. Porque o tendo como guia, um farol que pode ser visto de todos os lugares, uma garantia de prêmio ou punição, é simples seguir qualquer diretriz; mas e se deixados sozinhos? Que escolha fariam? Lembra de Jó, o homem que na Bíblia perdeu tudo e foi afetado por morte e doença, só para que sua fé fosse testada. Assim se restitui um deus bom, dentro do conceito cristão popular.

Deus

Não vou me aprofundar nisto por falta do conhecimento necessário, mas a ideia de quanto o deus cristão tem poder de fazer ou está disposto a não é um consenso. As várias vertentes o colocam cada uma com determinadas características. Para algumas, é plausível o que disse a respeito da divindade na série. Para outras, inaceitável. A disputa parece estar na questão do livre-arbítrio: quanta liberdade deus permite que exista. Mesmo que Supernatural seja apenas uma série de fantasia, os conceitos que põe em discussão iluminam aquele debate.

Como este texto é quase uma aposta, não posso afirmar que essa será a versão que a série dará para a posição de deus. Voltaremos a este texto depois, para comparar. Caso queira, faça uma aposta também: que deus é plausível nessas condições de abandono e desilusão?

 

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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