Transpoesia: um Exercício de Liberdade

Um pouco da história

A Antologia Trans (Ed. Invisíveis Produções, 2017), que reúne 30 poetas trans, travestis e não-binárias, nasceu a partir da proposta do Cursinho Popular Transformação. O cursinho visava complementar a formação educacional desse público, que, como se sabe, encontra-se em elevada situação de vulnerabilidade, a fim de assim facilitar seu acesso à universidade como uma forma empoderamento. A formação incluía desde o início a ampliação da formação cultural com aulas de literatura e poesia, e mais tarde, com o auxílio do programa VAI, passou também a oferecer oficinas de criação poética, o que deu origem ainda ao TRANSarau, evento cultural que dá visibilidade a criação literária da população T.

A antologia

O resultado disso está nas 110 páginas da antologia, que traz diversos poemas de autoria coletiva e individual, algumas prosas de situações absurdas e ilustrações excepcionais de Augusto Silva e Lune Carvalho, que põem em movimento o corpo-poesia, desde corpos selvagens-míticos, pedaços multiformes que não se encaixam e não querem se encaixar, até a delicadeza onírica dos mangás.

É uma antologia trans, mas não se deduza disso que esses poemas falam apenas de um universo particular, voltados exclusivamente ao público específico. Claro, as especificidades se manifestam, mas jamais em sentido limitante: são poetas que assumem o risco de ser, o risco de dizer e fazer a si mesmas, apesar de todo cerceamento social. É dessa especificidade que brota a força de impacto dos versos e o olhar voraz sobre a própria condição e contra a sociedade que insiste negá-los. “Mas se tudo no ser é incerto / eu só não posso ser liberto?”, questiona o poema de Luq Souto Ferreira.

É poesia: que atinge e transforma aqueles que ousam experimentá-la. É, mais que tudo, um exercício de liberdade. Nos deixa nus diante da real, com nosso vício em conceituar, que a todo custo quer aprisionar a multiplicidade inesgotável do que há. Entre tudo e nada, entre homem e mulher, existem muito mais coisas do que se pode imaginar, e é isso que se transborda nessa antologia. Dois caminhos não bastam, diz Ika Eloah:

Pactos

Fazer pactos com o nada
ou aprender a lidar com tudo?
Autoconhecimento não funciona
para fazer do vazio do nada
a suficiência do tudo.
Tudo ou nada?
Só dois caminhos não bastam.

É um processo de desconstrução das definições arbitrárias e, sobretudo, inúteis. Os poemas trazem uma profunda reflexão poética sobre a identidade e o que é ser e se fazer a si mesmo. Afirmam a unicidade do múltiplo: nenhuma forma é fixa, e é bom que não que seja. Isso se expressa no poema Eu não, de Bernardo Enoch Mota:

Eu sou eterno rascunho da vida.
Nunca vou ser terminado.
Apaga.
Refaz.
Tira.
Acrescenta.
Só não deixa igual,
porque aí ninguém aguenta.
(…)
Rabisco
Rascunho
Desenho
Obra prima
Transbordando
Transcendendo
Transgredindo
Apenas sendo mais eu
Mais meu a cada dia.

Revelam ainda a hipocrisia e a violência de uma sociedade doente, obcecada em enquadrar tudo e todos na normatividade cisgênera, que expulsa, agride, violenta, mas, às escuras, vai à procura do que nega constantemente: “Sou desejada, / mas só quando ninguém vê”, escreve Lucifer Ekant.

Põem a claro o eminente risco de simplesmente ser quem se é e a dor que esse fato pode causar: “O ônibus para, eu desço; na noite sozinha escondo minhas mãos; volto a ter corpo, e assim volto a ser corpo em risco”, diz Rená Zoé.

Ou ainda os versos de Dannyele Cavalcante:

Troveja em mim
uma tempestade de sensações
temperadas no dissabor
do medo, cheias de rancor.

Há uma urgência, que já pode esperar pela aceitação e aprovação do outro, pois isso significa perder a si mesmo: “Esperar do outro nos causa dor, / mas a espera de si mesmo / é a mais dolorosa de todas”, escreve Christian Lorenzzo Karavla. Mas há também esperança: “Anos, gerações, sistemas e esquemas inteiros para fuzilar a gente. E ó nóis aqui!”, diz a prosa de Teodoro Albuquerque.

E um último recado, de autoria coletiva:

Ouça, saiba, você não é o que é.
E sim o que não é.
Você é um,
nenhum:
cem mil!
Sem nenhum.
Só mais um.
Um a menos quando nasce.
Um a mais quando morre.

A edição atual já está esgotada, mas já preparem seus cofrinhos, pois há previsão de uma nova tiragem para o final de outubro!

Autor

  • Poeta e formada em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Estuda filosofia contemporânea. Tem poemas publicados em revistas literárias. Escreve em instanteinacabado.wordpress.com e facebook.com/instanteinacabado.

    Ver todos os posts

Compartilhe esta postagem:

Participe da conversa