Tão Contrário a Si é o Mesmo Amor

“Não tem nenhum amor, não, nada de Montecchios ou Capuletos; apenas pistas de dança imundas e sonhos de indecência”

O amor morreu. Ou não. O colunista crê que esse é um começo de texto impactante. Se não for, ateste-se a verdade da morte do amor. Os indícios do fato estão na música pop.

Foi um longo declínio. Até a crueza.

O pop fez uma das declarações definitivas a respeito do amor: all you need is love, tal como cantado pelos Beatles. É uma música de esperança, na qual se diz que nada é impossível, e a chave para toda realização, a pedra ângular, a essência da vida — é o próprio amor. Muito depois, Eddie Vedder, do Pearl Jam, se inspirou para tratar do mesmo e não pode encontrar termos superiores; teve de dizer: “I know it’s already been sung, but it can’t be said enough — all you need is love“. Isso em Love Boat Captain, outra música a postular que o amor é o guia e a âncora e o único imutável.

Me abrace, e faça disto a verdade
Porque quando tudo estiver perdido, lá estará você
Porque para o universo eu não significo nada, e só há
uma palavra na qual ainda acredito, e ela é: …

No encarte de Riot Act, as reticências estão escritas no espaço da palavra óbvia. O contrário do pedido acima é a oferta ampla. Há um toque de servilidade em Simple Things, do Belle and Sebastian: “se você me quiser, serei o garoto para lidar com todos os seus problemas”. Com maior beleza de imagens, I’ll Be Yours, do Placebo, segue pelo mesmo caminho.

Eu serei a água que te banha até que fique limpa
Eu serei seu éter, você irá me respirar e não deixar que saía
Eu serei seu pai, sua mãe, seu amante. Eu serei seu.

Ao mesmo tempo em que há a entrega total, parece que o poeta quer criar uma dependência — ele oferece tudo aquilo, e tudo aquilo tem o poder de mimar, alimentar e aprisionar. Não chegou a passar perto de Bob Dylan uma ideia como essa. Os amores de Dylan vem e vão, acontecem e acabam, são atos de acaso e liberdade e vontade provisória. Assim é que pede, em Queen Jane Approximately, que a garota venha até ele quando se cansar de tudo, do pai, da mãe, dela mesma, de todas as suas criações e obrigações. Como uma escapatória e algo que necessariamente não poderia ser repetitivo e eterno como as chatices anteriores. Noutra história, na canção Isis, ele canta:

Eu me casei com Isis no quinto dia de maio,
mas não pude me manter ligado a ela por muito tempo.
Então, cortei meu cabelo e segui em frente,
em busca do país selvagem e desconhecido onde eu não poderia errar.

Depois de passar por tumbas e mistérios, atrás de jóias e fortuna, até a morte do parceiro de viagem e a desilusão, ele decide voltar para Isis, apenas para “dizer que a ama”.

O diálogo que os dois travam então é sintomático.

Ela disse: “onde você esteve?”
Eu disse: “nenhum lugar especial”
Ela disse: “você parece diferente”
Eu disse: “bem, acho que sim”
Ela disse: “você esteve ausente…”
Eu disse: “bem, isso é só natural”
Ela disse: “Você vai ficar?”
Eu disse: “se você quiser que eu fique, sim”

Enquanto isso, distante de quem ama, Robert Smith, do The Cure, dialoga com memórias e canta para fotografias. “Eu tenho olhado por tanto tempo para fotos suas que quase chego a crer que elas são reais; tenho olhado por tanto tempo para fotos suas que quase acredito que as fotos são tudo o que posso sentir”. Resta aqui apenas uma ideia do amor, mas não parece que ele se extinguiu definitivamente. Diferente de Acrilic on Canvas, da Legião Urbana, em que há o fim, há idealização obsessiva, de maneira que nem temos certeza se a relação de fato aconteceu.

Preparei a minha tela com pedaços de lençóis que não chegamos a sujar.
A armação, fiz com madeira da janela do seu quarto.
Do portão da sua casa, fiz paleta e cavalete,
e com lágrimas que não brincaram com você, destilei óleo de linhaça.
Da sua cama arranquei pedaços que talhei em estiletes de tamanhos diferentes
E fiz, então, pincéis com seus cabelos. Fiz carvão do batom que roubei de você
E com ele marquei dois pontos de fuga e rabisquei meu horizonte.

Evidente que haverá outras tendências, outros conceitos. Mas voltemos ao propósito inicial. Aquela história de que o amor morreu. Impactante? Alguns indícios que agora se encara a coisa toda como algo que se usa. Como adiantado pela linha fina deste texto, os versos de I Bet You Look Good At the Dancefloor, do Arctic Monkeys, cantam: “there ain’t no love no, no Montagues or Capulets. Just banging tunes in DJ sets and dirty dancefloors and dreams of naughtiness“. Outra banda que estourou na mesma época, o Panic! At The Disco, coloca nos nomes das músicas que mentir é o que de mais divertido uma garota pode fazer sem ter de tirar as roupas, roubando a frase do filme Closer, e afirma que escrevem sobre pecados, não tragédias. Mais outra banda, o Bloc Party, em Mercury, profetiza:

Esse não é o tempo, o tempo de arranjar um novo amor
Esse não é o tempo, o tempo de assinar um contrato
Tente não se preocupar com o que foi esquecido
Tente não se preocupar com o que foi perdido

E assim como na mesma música vai se dizer que durmo com pessoas de quem nem mesmo gosto, Kate Perry mente em I kissed a girl (porque ela não beijou): eu beijei uma garota, só pra provar como era. Isso parece tão errado, isso parece tão certo — não quer dizer que eu esteja apaixonada”. Paixão? Amor? Tsc. Estamos falando de sensualidade. Lascívia.

Nada muito revolucionário, porém, já que Jim Morrison cantava há muito:

Hello, I love you, won’t you tell me your name?

Mas mesmo assim muito, muito distante do amor insuperável das outras canções.

Portanto, o amor morreu. É o pop que nos informa.

Ou talvez não. Talvez seja a ideia única de amor cheio de entusiasmo feito quando deus te desenhou ele tava namorando com a qual temos de nos acostumar e perseguir. Só suponha que Camões (é uma bizarrice citar Camões em texto de música pop?) esteja certo e que tão contrário a si seja o mesmo amor. Então convicção, entrega, controle, fuga, obsessão, sonho de indecência, sensualidade, sexo; tudo que há de frívolo e tudo que há de essencial, tudo é o mesmo amor, multifacetado e incoerente.

Fico com Camões. Não só porque seja uma conclusão interessante. O amor vive.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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