Uma instalação artística pode ser atualizada? Quais possibilidades traz incluir um componente do hoje a uma proposta feita ontem?

Montagem realizada na Pinacoteca do Estado de São Paulo em 2011
Para além dos aspectos técnicos, metodológicos e conceituais que permeiam a museologia voltada à arte contemporânea, existem questões subjetivas que, apesar de intrincadas e fadadas à múltiplas leituras e opiniões, precisam ser enfrentadas. Uma delas é: em que tempo vivem as obras? Essa pergunta, especificamente no contexto que pretendo desenvolver aqui, se coloca quando pensamos em trabalhos instalativos que, por alguma razão, são sujeitos a adaptações que alteram algum componente da sua apresentação original. “Administrar mudanças” em uma obra de arte, como colocado pelo professor e conservador norte-americano Glenn Warthon, pode se mostrar necessário em diversos momentos; uma certa tecnologia pode torna-se obsoleta (como projetores 8mm de complexa manutenção), o contexto local pode exigir adaptações materiais (já vi performances que utilizam o nosso tradicional pãozinho francês no Brasil enfrentando problemas para achar soluções nos EUA) ou quando simplesmente certo material não está mais disponível no mercado. Esse é o caso da instalação Sem título (1989) da artista Marcia Pastore.
Veja também:
>> “O grifo como inscrição poética: Curadoria em seu próprio tempo“, por Roberta Roque
>> “Performance: o não-lugar“, por Daniela Blanco

pedra, borracha e cimento
150 x 180 x 30 cm
Composta basicamente por uma pilha de pedras que se mantém estável através da pressão exercida por uma cinta de borracha, a artista originalmente executou o trabalho escolhendo elementos disponíveis em lojas de construção na Rua Florêncio de Abreu, em São Paulo. Em entrevista concedida ao curador Yuri Quevedo por ocasião da exposição contracorpo (Pinacoteca do Estado, São Paulo, 2020) há um fragmento que expõe claramente a pertinência desta obra para as ideias tratadas aqui:
“Yuri Quevedo: Quando falamos sobre remontar esse trabalho, você dizia que a borracha não existia mais, não vendia mais no mercado, mas que você havia encontrado na Florêncio de Abreu uma faixa de contenção de obra, que era uma tecnologia que não existia na época. Quando questionei sobre remontar um trabalho com outro material, você afirmou que é o procedimento que importa.
Marcia Pastore: Sim, existe a força do procedimento, e eu crio um campo para que os materiais consigam ter um diálogo entre si, dou as condições para isso. Quanto aos elementos, eles são escolhidos pela função e não pela aparência. De fato, a rua Florêncio de Abreu se transformou loucamente desde que eu comecei a trabalhar, antigamente era uma rua com várias lojas de borracha, e hoje restam uma ou duas. Logo, a borracha é um material que eu mal consigo pesquisar, pois não está mais tão acessível. Na época em que fiz o trabalho, aquele tipo de borracha foi escolhido por suas características físicas específicas, trazia alguma elasticidade, mas nem tanto, e me permitia colocar as pedras dentro para empilhar e dilatar, atingindo essa força externa, mas oferecia também uma resistência suficiente para manter as pedras empilhadas. Eu estabeleço sempre essas relações de material e força, mas sobretudo com o tempo presente: se existe uma tecnologia que é mais interessante hoje em dia para remontar o trabalho, eu irei lançar mão dela.”

pedra, borracha e cimento
150 x 180 x 30 cm
Pensar se uma proposta artística pode ou não ser atualizada com um novo material é também perguntar com que tempo essa obra se relaciona. Apenas um, ou muitos? Desde que alinhada às intenções originais do projeto, quais possibilidades se abrem com a inclusão de um componente do hoje a uma proposta feita ontem? De certa forma, propor uma atualização temporal é também nos forçar a refletir sobre o que queremos de certas concepções artísticas. Desejamos que elas sejam apresentadas como relíquias de um passado, representações de dado momento na história? Ou, ao abrir espaço para certas substituições, poderíamos renovar e reconectar estas propostas aos tempos atuais e vindouros?
É importante esclarecer que o objetivo aqui não é afirmar que obras de arte concebidas no passado necessariamente precisam de atualização para se conectar ao presente. Para além da museologia, é fato notório em diversas áreas do conhecimento a capacidade que objetos e documentos do passado têm de inspirar interpretações e ressignificações no presente. O professor e historiador Ulpiano T. Bezerra de Meneses afirma inclusive que cabe ao intérprete, e não aos documentos, criar as devidas conjecturas e relações:
“O que faz de um objeto documento não é, pois, uma carga latente, definida, de informação que ele encerre, pronta para ser extraída, como o sumo de um limão. O documento não tem em si sua própria identidade, provisoriamente indisponível, até que o ósculo metodológico do historiador resgate a Bela Adormecida de seu sono programático. É, pois, a questão de conhecimento que cria o sistema documental. O historiador não faz o documento falar: é o historiador quem fala e a explicitação de seus critérios e procedimentos é fundamental para definir o alcance de sua fala. Toda operação com documentos, portanto, é de natureza retórica. Não há por que o museu deva escapar destas trilhas, que caracterizam qualquer pesquisa histórica.”
Um documento histórico, seja ele um registro em papel ou objeto produzido por alguém, é reconhecido como tal exatamente por sua ligação com determinado momento no tempo. A intenção aqui é contemplar este trabalho específico de Marcia Pastore como uma situação física, planejada e construída, mas cujo significado independe de um tempo histórico pré-determinado. Se o cerne da obra está em uma ideia (no caso, empilhar pedras e envolvê-las com um material que, apesar de dar conta do peso, opera em tensionamento limite), por que a sua execução deveria se resguardar às soluções e recursos encontrados em um certo momento no tempo? Como dito pela própria artista, “eu estabeleço sempre essas relações de material e força, mas sobretudo com o tempo presente: se existe uma tecnologia que é mais interessante hoje em dia para remontar o trabalho, eu irei lançar mão dela.” Este fragmento evidencia como, para a artista, não há porque se prender a recursos anteriores se hoje existem outros que podem executar o trabalho tão bem quanto. Ideias não deveriam depender de especificidades temporais. Prender hoje a instalação de Pastore aos materiais utilizados na primeira montagem de 1989 seria congelá-lo no tempo, tornando “histórica” uma construção conceitual dotada de potências atemporais.
Para melhor ilustrar a situação de obras de arte divididas entre tempos, cabe citar outro artista que tinha nessa conflito a matéria prima para sua prática. Rafael França (1957-1991), artista pioneiro da video-instalação no Brasil, desenvolveu ao longo da década de 1980 uma sequencia de trabalhos que operavam sempre da mesma maneira: um quadrado negro, desenhado na parede, era filmado e transmitido em tempo real para televisores espalhados pela sala, gerando um sistema de transmissão em circuito fechado. Polígonos Regulares (1981) talvez seja o mais complexo exemplo desta série.

18 televisores, câmera
e pintura sobre parede
dimensões variáveis
Pinacoteca do Estado de São Paulo
A instalação, apresentada pela primeira vez no subsolo da Pinacoteca do Estado de São Paulo em 1981, utiliza 18 televisores organizados no formato de quatro polígonos: triângulo, quadrado, pentágono e hexágono. O quadrado negro, ao ser filmado e transmitido a todas as telas, assumia o papel de face para cada um dos polígonos. Além de artista visual, Rafael França era um dedicado professor e estudioso de mídias e cultura visual, tendo deixado para posteridade diversos textos e transcrições de seminários. O trecho abaixo, retirado de uma fala no Art Institute of Chicago em 1983, indica algumas das ideias trabalhadas por França em Polígonos Regulares.
“[…] os artistas que trabalhavam com filme reconheceram o potencial do vídeo como um elemento a ser utilizado em instalações. Há algumas razões para isso, entre as quais devemos apontar a característica de o vídeo ser um aparelho em tempo real, sendo capaz de gerar e mostrar imagens em tempo real, dentro de um sistema de circuito fechado (…) devemos olhar para aquilo que algumas vezes é considerada a ideia mais importante em vídeo e também muito importante nas instalações: Tempo. (…) O que está ocorrendo agora torna-se questão de para qual monitor se está olhando, causando desordem
na sequência de fatos. […] Assim, as vídeo-instalações dão aos artistas a capacidade de criar um ambiente que apresenta ao espectador um mundo artificial, onde as questões básicas de tempo, espaço e fluxo de informação são determinadas pelo artista e seu trabalho […] Esse processo revela mais uma vez as características inerentes da televisão. A maneira como percebemos o mundo hoje, quando os eventos estão sendo retratados por organizações desconhecidas à maioria dos espectadores, torna-se a questão do momento. Quem decide que tipo de informação deve ser apresentada, onde e a que tempo?”

18 televisores, câmera
e pintura sobre parede
dimensões variáveis
Pinacoteca do Estado de São Paulo
O fragmento parece indicar como o interesse de Rafael França no uso de televisores e câmeras em circuito fechado repousava principalmente na ideia de “criar um ambiente”, assim como na lógica operacional destes equipamentos: captura, transmissão e exibição simultânea de imagens. Através deste fundamento, o artista via o potencial de gerar experiências críticas a respeito dos meios de comunicação em massa e a influência que eles exercem no indivíduo na sociedade pós-moderna. França, assim como faria mais tarde em seus experimentos com filmes em vídeo-arte, cria fricções nos elementos constitutivos do próprio meio — sincronia, fidelidade, resolução — como estratégia para estabelecer uma experiência metafórica que gera no observador questionamentos sobre sua própria realidade e os meios de comunicação que o cerca.
No início da década de 1980, momento em que Polígonos Regulares foi desenvolvida, a televisão doméstica era reconhecida pelo público como o principal meio de comunicação global, disseminando não apenas notícias mas, também, todo tipo de cultura visual. Se a presença – e influência – deste dispositivo no cotidiano do público é um dos eixos estruturantes do trabalho, quais seriam as implicações de reexibir esta instalação 30 ou 40 anos depois, quando a ideia de televisão foi dramaticamente alterada? A remontagem proposta em 2011 pela Pinacoteca do Estado de São Paulo nos traz algumas pistas.

Montagem realizada na Pinacoteca do Estado de São Paulo em 2011
Construída após meses de intensa pesquisa e pré-produção, a remontagem de Polígonos Regulares foi inaugurada pelo curador Ivo Mesquita em 19 de março de 2011, ocupando desta vez o nobre octógono da Pinacoteca do Estado de São Paulo. No entanto, para a infelicidade da equipe que garimpou antigos televisores de tubo nas ruas do centro de São Paulo, a inauguração teve diversas falhas técnicas, resultando em curto-circuitos e telas queimadas. A decepção foi geral, tanto para a direção do museu quanto para o público e a família do artista, que havia voado de Porto Alegre especialmente para o reencontro com a obra do artista. O sentimento no ar era de que as intenções conceituais de Rafael França não poderiam sobreviver às limitações impostas pelo tempo de seus materiais. Foi neste momento que Regina Silveira, artista, professora e amiga próxima de França, lançou a pergunta que levou Ivo Mesquita a finalmente entender tudo: “Mas por que você usou essas televisões velhas?”
Com o eco desta provocação de Silveira, cabe lermos outro fragmento de texto produzido por França durante a década de 1980, desta vez escrito em terceira pessoa como um release de imprensa. O trecho joga intensa luz sobre a relação entre conceito e suportes na obra do artista: “O artista Rafael França diz que a natureza de suas preocupações é principalmente formal. Ele não acredita que a proposta da video-arte seja baseada apenas no aparato tecnológico empregado em projetos como estes. ‘Eu uso tecnologia para materializar conceitos na forma de obras de arte’ diz o artista”.
Por fim, cabe incluir aqui uma citação da professora e curadora do Museu de Arte Contemporânea da USP, Helouise Costa, uma das primeiras a pesquisar intensamente as videoinstalações de Rafael França após a morte do artista em 1991. O trecho reforça o aspecto “não material” das instalações e o uso dos televisores como fontes de luz, ou seja, como superfícies técnicas cuja função é exibir a imagem que circula em circuito fechado. Mas, principalmente, Helouise conclui o trecho argumentando que, se Rafael utilizava equipamentos tecnológicos, não era por qualquer fascínio ou apego estético, mas sim porque estes eram os instrumentos disponíveis naquele momento.
“O encerramento de suas pesquisas com técnicas gráficas e o seu envolvimento cada vez maior com o vídeo, levaram-no a considerar a videoinstalação como meio mais adequado aos seus experimentos por suas características de não-materialidade e por sua estreita relação com a arte do presente, onde o televisor é pensado como fonte de luz para a representação de imagens (…) O que se depreende do conjunto de videoinstalações de Rafael França é que ele jamais cedeu aos encantos fáceis da tecnologia. Cada uma delas esteve fortemente ancorada numa proposta conceitual. Se havia um fascínio com a tecnologia, ele residia na necessidade de o artista sentir-se agente de sua época.”
Este fragmento, somado aos outros textos autorais do artista apresentados até aqui, parecem deixar claro como Rafael selecionou televisores como meio para dar forma às situações espaciais e à experiência construída para o espectador, mas que não tinha qualquer interesse estético específico por eles. As televisões e câmeras utilizadas por França na década de 1980 eram simplesmente os materiais que, naquele momento, estavam disponíveis para materializar as experiências conceituais que tinha em mente.

Montagem realizada na Pinacoteca do Estado de São Paulo em 2011
Dito tudo isso, em que tempo vive então a obra Polígonos Regulares? Novas montagens deveriam deixá-la eternamente presa ao contexto da década de 1980, ou haveriam outras possibilidades? Amparado por todos os elementos elencados até aqui, este texto defende a ideia de “administrar mudanças” e apresentar a instalação não mais com televisores antigos, mas com telas planas modernas. Essa abordagem poderia manter intacta a integridade conceitual da obra (utilizando equipamentos que operem a transmissão em circuito fechado proposta pelo artista), ao mesmo tempo em que respeitaria a experiência espacial original (selecionando telas que sigam a escala e implantação propostas pelo artista). O que está em jogo aqui não é simplesmente resolver o problema técnico de obsolescência dos equipamentos, mas sim lançar sobre a obra um olhar que procure identificar a o que exatamente a ideia do artista se refere.
Se no momento de sua concepção Polígonos Regulares se utilizava de televisores domésticos convencionais para abordar temas de mídia e comunicação de massa que interessavam à Rafael, optar por utilizar hoje exemplares das onipresentes telas planas que nos cercam é uma escolha que, além de resolver um problema técnico, mantém a relevância da ideia original do artista ao conectá-la com os dispositivos que hoje podem de fato a sustentar. O argumento que busco defender aqui é o de que, ao adentrar Polígonos Regulares e olhar antigos televisores da década de 1980, o público veria o passado: uma ideia desenvolvida por determinado artista em outro momento do tempo. Ao experienciar a instalação equipada com as telas que hoje moldam nossa comunicação, trabalho e interação social, o público verá a si mesmo.