Situação-limite

Recheados de personagens no limite, nos contos de André Giusti a distância entre sujeito e sociedade, sujeito e objeto de desejo sempre é imensa; a frustração que decorre disso é inevitável

Albert Camus, em O Mito de Sísifo, descreve o que chama de sensação do absurdo. Parte de uma história da mitologia grega: por ter desagradado os deuses, o personagem Sísifo é condenado a carregar uma pedra redonda até o topo de uma montanha. Tendo chegado lá, a pedra naturalmente rola até a base, e ele é forçado a percorrer o caminho novamente. Essa sensação de absurdo, grosso modo, seria o que o personagem sente no momento em que se dá conta de que tudo aquilo é inútil, torturantemente repetitivo, insatisfatório, absurdo. Os personagens de André Giusti, autor de A Liberdade é Amarela e Conversível (7letras, 2009), parecem ser pessoas que, no cotidiano, atingiram esse tipo de percepção. São personagens ordinários, de acordo com Giusti: “me fascina o homem extremamente comum, que passa incógnito, do qual a maioria é até capaz de esquecer que existe”, por um momento levados a algum tipo de extremo.

O livro foi recentemente sorteado para os leitores de Capitu e você pode lê-lo na íntegra no site do autor. São doze textos, cada qual com um personagem com a sua crise particular, de um jornalista que chora a ausência da mulher que ama por meio de seu trabalho a Zedias, o homem sensato e cordial que perde o controle e a paciência com o mundo. É na estrutura da vivência de cada um que vemos as semelhanças entre eles e a matéria subjetiva com a qual podemos nos identificar. O estilo ajuda a construir o efeito. Em cada conto, a descrição traz os elementos principais para caracterizar toda a imagem, às vezes usando a sinestesia e nos dando a sensação de gosto, toque ou cheiro.Só que de uma forma individualizada:

E como houvesse estacionado há poucos minutos, suspenso no ar ainda pairava o cheiro da gasolina queimando no velho motor de 1600 cilindradas. Respirou fundo, como quem cheira eucaliptos numa floresta

Claro que sabemos o que é o cheiro da gasolina queimada. Mas não sabemos como aquele homem em particular frui a sensação — isso indica um dos aspectos dos contos: sempre há o sujeito e o seu entorno social, e entre eles existe o vácuo: na mesma situação, acessando o mesmo conjunto de elementos, os personagens tem percepções diferentes do que ocorre — a distância e a frustração que decorre disso são inevitáveis. Solitários. “E o que somos, na verdade, na vida atual? Isolados em nossos mundos, nos comunicando por e-mail com o sujeito que está na mesa ao lado. A tecnologia da comunicação fez foi socializar a nossa solidão”, afirma Giusti.

Na entrevista abaixo, o autor discute alguns de seus contos, fala sobre como A Liberdade… se relaciona com seus livros anteriores e sobre suas influências — além de Mário Quintana, John Fante e Fernando Sabino, a música: “nasci em 68, o que escrevo tem ecos de Lennon, Renato Russo, Bono… O Álbum Branco, dos Beatles, e o Acthung Baby, do U2 são mais importantes em minha vida do que muitos livros que li”.

Um conto representativo do livro é Fotografia de Carmem Lúcia. Depois de uma série de personagens em que a frustração tem um papel determinante — seja na forma do sonho castrado, ou do tédio cotidiano, ou da sensação de vida perdida — você narra nesse conto em particular a história de um rapaz que encontra a sua realização (amorosa?) possível em um foto envelhecida, em um personagem do passado que de modo fantástico ele acaba por encontrar. Me parece ser um denso resumo do livro: e se a nossa felicidade está enclausarada bem distante de nós, em outro plano, em outra rotina, em outro tempo? É isso? Somos órfãos de uma possível alegria?

Fotografia de Carmem Lúcia foi escrito a partir do fascínio que tenho pelo passado. Frequentemente imagino como determinado trecho da cidade por onde passo deveria ser 30, 40 anos atrás. É também uma espécie de homenagem ao Grajaú, no Rio, bairro em que vivi boa parte de minha vida. De uma certa forma ele pode mesmo resumir o livro e ter esse elemento da felicidade que só existe de modo intocável. Afinal, é um dos únicos textos do livro em que há um final feliz, e o final dele, na prática, é impossível. Mas a vida tem mesmo esse gosto do “antes era mais legal”, “eu era feliz e não sabia”, algo que precisamos combater, pois só teremos lembranças boas do que vivemos decentemente agora. Mas o ponto de partida dele foi mesmo aquele: o fascínio pela loucura de voltar no tempo, através de uma foto, uma música, um quadro.

Outra característica que me parece marcante é o fato de sempre haver uma, digamos, distância comunicacional, entre os personagens. Quer dizer, quase ninguém enxerga de fato o protagonista de cada conto; em A Minha Forma de Chorar a Sua Ausência Esta Noite, atrás do trabalho do jornalista, seu problema emocional; em Vale do Paraíba, as mesmas palavras ganham sentidos diferentes para os dois que conversam, como se falassem línguas diferentes; em Puma GTS, o homem realiza um sonho, se encontra com uma imagem perdida da juventude, mas sua mulher não poder ver a essência daquilo, só vê a crosta, assim como seu genro. As perguntas que me saem do seu livro: o quanto podemos saber uns dos outros? O quanto estamos sozinhos?

Coisa que meus personagens realmente não têm é pretensão de serem algo; me fascina o homem extremamente comum, que passa incógnito, do qual a maioria é até capaz de esquecer que existe. E o que somos, na verdade, na vida atual? Isolados em nossos mundos, nos comunicando por e-mail muitas vezes com o sujeito que está na mesa ao lado. A tecnologia da comunicação fez foi “socializar” a nossa solidão. Por que as pessoas escrevem no Twitter o que fazem? Porque provavelmente não há ninguém para ouvir por perto, ou com saco de ouvir.

Em Boa Índole, e, principalmente, em Zedias, temos um homem em uma situação-limite. O segundo abandona sua educação e se torna violento, impondo a gentileza. Pode-se dizer que é do momento em que essas pessoas quase ou de fato se revoltaram contra o curso dos eventos? Caso sim, que acha? É o que nos resta? Se por em guerra contra o mundo, para salvar algo de nós mesmos?

No Zedias é isso mesmo que você está dizendo. O Zedias sou eu, que não tive coragem de fazer aquilo tudo, porque o escritor não tem coragem de fazer as coisas, então vai escrever pra não ficar doido. Nada daquilo contra o qual ele se rebela eu suporto, mas como não tenho coragem de virar uma panela de feijão na cabeça dos outros, ou seja, viver minha situação-limite, fui lá e escrevi. O Zedias foi meu recado: parem e respeitem o semelhante que está na fila, que quer dormir, que precisa sair do cruzamento. Já o Boa Índole é um conto sobre a intolerância, algo que de uma certa forma se cruza com o universo do Zedias. Quando ele foi publicado no jornal Rascunho, me disseram que eu não poderia falar como um negro, sobre preconceito racial, etc. Ora, eu sei disso! Eu sou branco azedo, neto de italiano, lá vou me meter a falar de algo que não sinto na carne? O que quis falar é da intolerância. Será que todo mundo que pede esmola é safado que não quer trabalhar? Será que essa visão que a classe média endividada no cartão tem de quem está abaixo dela se aplica mesmo em todos os casos?

Quais autores e artistas você definiria como suas influências? E de que modo crê que A Liberdade é Amarela e Conversível se relaciona com seus livros anteriores — em se tratando de “evolução” entre um e outro, quais os temas de que tratam etc?

Como todos de minha geração, sofri influência do Rubem Fonseca, mas hoje não gosto mais de ler seus livros. O outro Rubem, o Braga, certamente despertou meu olhar para o quotidiano, o corriqueiro, o banal fascinante. Essa coisa de voltar no tempo, do mágico, do inverossímil, é Mário Quintana puro. A linguagem mais, digamos música pop (quem nem aparece muito no A Liberdade…, mas é forte nos outros livros), é bem do Chacal. Tento a elegância do texto por que li muito Machado. Meus personagens são um bando de Arturo Bandini [personagem de Pergunte ao Pó, do autor citado a seguir], mesmo que John Fante não seja algo tão antigo assim para mim. Tem também Fernando Sabino, e o rock’n roll. Nasci em ’68, o que escrevo tem ecos de Lennon, Renato Russo, Bono… O Álbum Branco, dos Beatles, e Acthung Baby, do U2, são mais importantes em minha vida do que muitos livros que li.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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