Silvio Santos: Memórias de um Mundo Analógico

Com Silvio, perdemos uma referência compartilhada por um país inteiro, talvez um dos mais antigos elos com nosso passado

“Haverá espaço para um novo Silvio Santos? Ou esse tipo de referência compartilhada e quase universal morrerá com o universo analógico?” | imagem: Igor Leandro

Talvez a Geração Z e seguintes nao possam entender.

Nos anos 1980, todo o audiovisual do mundo chegava até as nossas casas através de quatro canais de TV: Globo, Bandeirantes, Manchete e SBT. Em cidades maiores, havia algumas opções a mais, como Record, TVE e Cultura. Em lugares menores ou mais afastados dos grandes centros, eram ainda menos.

Para ouvir música, havia o rádio. E não era você quem escolhia a música, exceto se pagasse pelo LP ou pela fita cassete. Para escolher um filme pro final de semana, você tinha que comprar um videocassete, ir até a locadora e alugar uma fita, que tinha que ser devolvida rebobinada na segunda-feira. A geração Z sabe o que é rebobinar?

E muitas casas nem sequer tinham TV, ou tinham, mas era em preto-e-branco e com chiado. E nas casas que tinham, quase sempre era uma só, e se você morasse com seus pais, eram eles que escolhiam o canal. Assistir à TV era, quase sempre, um evento coletivo. E lá pelas 2 da manhã, quem ainda estivesse acordado era presenteado com isso aqui:

TV a cabo não existia. Computador, só em ficção científica. Telefone, só fixo e de discar. Era um mundo off-line.

Silvio Santos era um ícone desse tempo. Muito se contará, nos dias seguintes ao seu falecimento, sobre sua trajetória de sucesso, do menino que começou a trabalhar como camelô na rua até virar um empresário de sucesso – o tal clichê do “self-made man” com pitadas de fantasia. Obituários de figuras tão famosas são encomendados com antecedência, especialmente para os que passam dos 90 anos. Não pretendemos competir com isso.

Veja também:
>> “De Alborghetti a Bolsonaro, a Necropolítica de Centrão“, por Primo Deusdeti
>> “Tônia Carrero: “Hoje, Estou Acima do Bem e do Mal“, por Letícia de Freitas

O impacto de sua morte, para nós millenials que atravessamos nos últimos 40 anos esse portal do analógico para o digital, está na memória afetiva. Em contraste com a sisuda Globo e seu padrão de qualidade e liderança de audiência, o SBT daqueles anos 1980 destoava no colorido berrante, voltado à programação infantil. Era mais diversão que informação. Enquanto os donos das outras emissoras eram senhores engravatados que a gente só conhecia pelo nome e quase nunca apareciam na programação, o dono do SBT era a própria estrela. Neste sentido, talvez Silvio Santos tenha encarnado uma espécie de “capitalismo com face humana”, no qual o dono do negócio não se esconde atrás da burocracia dos gabinetes, mas dá as caras diante do cliente – no caso, o telespectador.

E não se pode negar seu talento em fazer com que as pessoas se sentissem próximas a ele – essencial para um bom vendedor. Diferente de outras emissoras que tinham origem no jornalismo, como Globo e a extinta Tupi, o SBT sempre foi visto por Silvio Santos como um veículo de venda de seus carnês do baú e loterias disfarçadas de títulos de capitalização, que eram suas verdadeiras fontes de sua fortuna. Para os mais pobres, porém, prevalecia a imagem do bilionário bonzinho que sorteava casas próprias a pessoas humildes. Sua popularidade era tamanha que rendeu até uma candidatura à presidência da República, em 1989, rapidamente abortada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) por irregularidades no registro da legenda de aluguel escolhida.

As novas gerações provavelmente não carregam essa memória afetiva, pois somente tiveram contato com o Silvio Santos já envelhecido e falido, uma caricatura de si mesmo numa atração televisiva decadente e “cringe”. Em alguns momentos o velho apresentador cometeu atos nada sutis de preconceito e racismo, que acabaram relevados por alguns por conta da avançada idade. Por outro lado, também é lembrado por levar “transformistas” para se apresentar no seu Show de Calouros, nos anos 1980, escandalizando uma sociedade abertamente homofóbica e muito mais conservadora que hoje.

Com Silvio Santos, perdemos uma referência compartilhada por um país inteiro, talvez um dos mais antigos elos com nosso passado. Por coincidência, na mesma semana em que faleceu o também nonagenário Delfim Neto, último signatário sobrevivente do AI-5, da mesma ditadura assassina que presentearia Silvio Santos com sua concessão de TV, em 1980. Quase quarenta anos depois da redemocratização, ainda vivemos num país forjado pela ditadura militar – entre outras coisas, nas concessões das emissoras de TV e rádio, feudos vitalícios e hereditários. Globo, Bandeirantes e Manchete (sucedida pela atual Rede TV!) também nasceram de concessões do período da ditadura, respectivamente para Roberto Marinho, João Saad e Adolpho Bloch. Silvio Santos era o último sobrevivente deste grupo de barões da TV agraciados pelos generais. Abaixo deles em ordem de grandeza, temos ainda centenas de emissoras locais de rádio e TV concedidas pela ditadura a políticos do eterno Centrão, consolidando o domínio da Direita sobre o chamado Quarto Poder.

Para a posteridade, nos resta refletir sobre quem serão as novas referências midiáticas a tomar o lugar de Silvio Santos, Gugu Liberato ou mesmo Faustão, que já andou ensaiando sua despedida. Num mundo de audiências pulverizadas entre milhares ou milhões de youtubers e influencers, onde qualquer um com um celular na mão – ou seja, todo mundo – pode ser um “produtor de conteúdo”, haverá espaço para um novo Silvio Santos? Ou esse tipo de referência compartilhada e quase universal morrerá com o universo analógico?

Autor

Compartilhe esta postagem:

Participe da conversa