Sem diferença entre ser humano e artista

Na Santos da metade do século XX, convivência cultural intensa e a imensa paixão pela arte. Os personagens da época são o meio para que o leitor descubra: qual o mistério do artista?

Entre 1950 e 1960, Santos (SP) efervescia culturalmente. Surgiam lá artistas como Plínio Marcos, no teatro; Mário Gruber e Nelson Penteado de Andrade, nas artes visuais; Maurice Legeard, no cinema; Roldão Mendes Rosa e Narciso de Andrade, na literatura — e, no trabalho crítico, Geraldo Ferraz e Patrícia Galvão, a Pagu, ex-mulher do antropofágico Oswald de Andrade, ideólogo do movimento modernista de 1920. No bairro do Gonzaga, exposições de arte; no Clube de Cinema, debates e desentendimentos, espetáculos de alto nível no teatro Coliseu. Que é que havia de extraordinário na cidade paulista naqueles tempos? “Fazia-se arte com amor e por amor”, afirma o comerciante Júlio Bittencourt, “tudo era levado a sério”.

Bittencourt, na época, trabalhava com ópera e teatro. “Quem fazia teatro, por exemplo, gostava de teatro, não tinha a pretensão de ser ator na TV Globo, como acontece hoje. A gente estudava palavra por palavra das peças que fazíamos”, diz ele, “O ser humano era diferente. Com a mudança da sociedade, as pessoas vão se adaptando. A vida te empurra para outro tipo de vida e você muda”.

A Santos sessentista é a imagem de um mundo que já não pode ser? Tratando do específico desse momento, Capitu conta a história de um modo apaixonado de fazer arte, tendo como personagens duas das personalidades da época: os pintores Nelson Penteado de Andrade, com destaque no período, e Luiz Hamen, que naquele tempo era um aprendiz, vindo a se destacar depois. É também o registro de um período de convivência cultural intensa, que pode parecer mesmo idílico ou irreal para quem vê de hoje, e que certamente tem semelhantes na imensidão do Brasil, ou de São Paulo. É falar de Santos para falar da expressão artística.

Que universo é esse aqui?

O crítico cultural Roberto Peres fala do fascínio causado pelas artes. “Eu tinha uns 16 anos, por aí. Veio uma exposição monumental, no que era o Clube Sírio Libanês e hoje é a loja da C&A (na avenida Ana Costa, bairro do Gonzaga). Quando subi, eu falei: que universo é esse aqui, no Gonzaga?”. Eram quadros de Diego Rivera, Frida Kahlo, entre outros pintores mexicanos. A cultura na cidade se concentrava em dois pólos, o centro e o Gonzaga. De acordo com Júlio Bittencourt, “todo mundo que gostava de arte e pintura se encontrava ou estava em um dos dois pólos. Como ocorre nas pracinhas do interior. A população era menor e todo mundo se conhecia”, diz.

O escritor, professor universitário e doutor em Literatura Portuguesa Adelto Gonçalves, colunista de Capitu, também tem boas lembranças. “O Festival de Cinema, no Cine Glória; a peça Hair, exibida no Coliseu; a vinda da atriz Dercy Gonçalves; o Festival de Música Estudantil; a visita do então presidente da República João Goulart”. Outra referência era a página dedicada à literatura do jornal A Tribuna, coordenada por Geraldo Ferraz. “A página era publicada aos sábados, e tratava também de arte. O Geraldo tinha muitos contatos e publicou autores que ficariam famosos depois. O filho dele Geraldo Galvão Ferraz traduzia do francês e do inglês, nomes como Albert Camus e André Malraux”, conta Gonçalves.

Para a jornalista Márcia Costa, que estudou o comportamento artístico nos anos 1950 e 1960 para uma tese de pós-graduação, a união entre mobilização política e arte foi a base dessa Santos de efervescência cultural: “No período de pós-guerra havia um desejo de transformação social, uma crença muito grande de que o movimento esquerdista, por meio das teorias socialistas, poderia mudar radicalmente o mundo. Creio que esta ilusão se perdeu, mas não a crença de transformar o mundo”, afirma ela, “O que muda é a forma de realizar isso”.

Márcia considera que a arte continua exercendo um lugar de destaque na sociedade, embora tenha passado por mudanças. “Penso que a cultura vem assumindo um lugar muito importante no cenário atual — é por ela que transitam as tensões, os conflitos de uma sociedade, ou seja, é na arte que se mantém a liberdade de se expressar, de forma plena, as nuances do mundo contemporâneo”.

Leonardo da Vinci como Bíblia

Naquela Santos antiga, o artista plástico Nelson Penteado de Andrade seguia pelas ruas da cidade, com seu cavalete, pintando quadros de marcos históricos, como a Casa da Frontaria Azulejada, o Outeiro de Santa Catarina, a Igreja do Carmo e a rua João Pessoa. No local, ele fazia um pequeno esboço a óleo, e como uma fotografia do local, usava o quadro como ponto de partida para outra obra; em seu ateliê, fazia a mesma imagem num quadro maior. Andrade não retratava somente os marcos, ele também pintava armazéns, vagões de trem, trabalhadores no cais, pescadores na praia, os bares e a vida noturna. Outro marca da sua obra são as pinturas dos morros, em que conseguia ressaltar o colorido das montanhas em contraste com as casas incrustadas na paisagem.

O interesse pelas artes visuais começou aos 14 anos. A característica principal de Andrade é que ele vivia para a pintura. Embora trabalhasse para sustentar a família, quando ganhava um dinheiro extra, comprava tintas para novos quadros. José Luís, filho de pintor, diz que ele “estava sempre pintando, não tinha uma relação comercial com a arte. Ele pegava folhas de eucatex das embalagens de lâmpadas e pintava no verso, como forma de se aprimorar”. O amigo e também pintor Juracy Silveira, “ele vendia alumínios. Ele fazia umas vendas, depois voltava para o ateliê; ele vendia o alumínio para sobreviver”. Às vezes fazia quadros por encomenda, mas não era por encomenda que pintava. Algumas obras suas, dava de presentes a amigos e conhecidos.

Julio Bittencourt, amigo do pintor, vê a obra de Andrade como “expressão de amor, calor humano, emoção”. Diz isso e acrescenta não se fazia uma diferença entre o ser humano e o artista. O pintor faleceu em 1° de outubro de 1966, aos 39 anos, vítima de um tumor no cérebro. Antes de ser internado tinha muita dor de cabeça, ficou um ano se tratando antes de ser operado. Por ocasião do falecimento, o jornalista Juarez Bahia escreveu que a cidade mereceu dele o carinho de uma visão que mesclava inspiração poética com constatação dos contrastes sociais. Com a perspectiva local, Andrade expressava sua sensibilidade artística em uma constante busca de aperfeiçoamento.

Bahia ressalta o forte sentido documental da obra, em telas que “retratam pedaços de história, aspectos da paisagem urbana, fachadas e telhados de casas, acidentes geográficos, caminhos de ferro, cais do porto e essa humanidade que se desloca da periferia para os suores cotidianos de fardos na cabeça e sacos de café no ombro”.

“Ele andava sempre com um livro do Leonardo da Vinci; o livro para ele era como se fosse a Bíblia,” afirma a viúva do pintor Letícia Sampaio Cruz de Andrade. Outras influências do pintor, segundo vários críticos com opiniões discordantes, foram o francês Maurice Utrillo, Edward Hopper, Cézanne, Matisse e Edward Munch. Juracy Silveira, que foi aluno de Andrade e dividiu o ateliê com o professor lembra de um dos meios de estudo de Andrade: “Toda semana, nas minhas folgas, nós íamos a São Paulo ver exposições e ele dizia: olha, o Masp vai ficar aqui, nós vamos subir sempre, não queira ver tudo de uma vez, vamos vendo por etapa. A gente via uma ou duas exposições, depois discutia”.

Roberto Peres afirma que cada artista tem o seu próprio processo de desenvolvimento. “O que a gente pode encontrar como denominador comum talvez entre eles seja a necessidade da busca de outros valores, de outros limites que, na verdade, o artista não sabe quais são”.

O que vai restar é o que for verdadeiro

Aos 79 anos, o artista plástico Luiz Hamen continua ativo. Na semana anterior à entrevista, ele havia feito o quadro O executivo à procura de si mesmo, reflexão sobre a sociedade. Na casa-ateliê, do outro lado da praia da Biquinha, em São Vicente, com vista para a orla, os quadros do artista com seu colorido característico contrastam com o azul do mar, a areia e os prédios de paisagem uniforme.

A casa é diferente das demais. Ao me passar o endereço, ele complementa: “É a casa com um mosaico na frente”. Junto com o mosaico, muitas figuras, olhos e caras. Um observador ficaria horas admirando os detalhes, desde a porta da entrada, a escadaria singular, os ambientes e os quadros. A impressão é de uma casa viva, independente dos moradores, A pintura e a arquitetura do local também refletem a visão artística do autor, com 51 anos dedicados à pintura. Dedicação que começou ao acompanhar Gerson Charleux, também pintor e a frequentar um ponto de encontro dos artistas santistas: o Clube de Arte.

Foi no Clube de Arte que Hamen fez alguns cursos e se associou ao movimento artístico da época. Outro ponto de encontro era o ateliê do Nelson Penteado de Andrade, localizado na João Pessoa quase esquina com a rua Itororó, o lugar sempre recebia visitas dos artistas que passavam para trocar idéias e experiências. “Eu conheci o Nelson Penteado de Andrade, fiz uma visita ao ateliê dele. A obra dele tem a característica, que eu também costumo fazer, de buscar, no feio, o belo, porque, por exemplo, uma favela é bonita, e se busca expressar este aspecto na pintura. Assim também ocorre nos quadros dos morros”.

As respostas de Hamen são dadas de forma calma e atenciosa. Não só ao expressar sua visão nos quadros, mas também no dia-a-dia, ele impressiona por demonstrar que a vida, a arte e as coisas do cotidiano são objetos de reflexões aprofundadas aliadas à experiência do tempo. Ao falar do papel da arte, ele apresenta conceitos que saem da visão cotidiana e se aproxima de um aspecto mais transcendental.

“O artista tem que buscar uma forma de expressão que vai além da razão lógica das coisas. Não é a lógica que determina a obra, deve se ir além do repertório. Estar aberto e ser receptivo ao novo. O artista só pode estar receptivo ao novo quando estiver vazio de conceitos porque a conceituação é a mesmice. Você não pode criar nada, onde os conceitos e julgamentos determinam as coisas. Se é assim, você não está criando. Você só pode criar se você cria o silêncio. E, a partir do silêncio você observa o fazer. A partir do silêncio não esta mais presente o observador; isento o observador, fica só a mensagem.”

“Toda obra de arte genial é feita assim. Independente dos ismos, o que vale é o que a obra de arte transmite. A existência na arte é marcada pelo que continua; o que vai restar é o que for verdadeiro. O caminhar se faz assim. Ela não pode ser feita de outra forma se realmente vai expressar algo transcendente. A arte, de um modo geral, expressa os sentimentos mais sutis do espírito humano. E por isso mesmo é o que se aproxima mais da verdade e da essência do ser verdadeiro de cada um de nós.”

De forma semelhante a um professor Hamen vai buscar no exercício da poesia exemplos para aclarar sua premissa. “Eu acredito que de forma intuitiva o poeta usa a linguagem como artesanato. Para poder dizer alguma coisa verdadeira o poeta tem que se abstrair do formal da linguagem e criar uma sintaxe nova, pessoal, dele, para que possa transmitir o sentimento com aquela linguagem conhecida de todos. Esse é o mistério do artista”.

Compartilhe esta postagem:

Participe da conversa