Quadrinhos de amanhã

O que esperar do gênero “adaptações de histórias em quadrinhos” depois de Batman, V de Vingança, 300 de Esparta e Watchmen?

Diz-se que a premiação póstuma de Heath Ledger, na última cerimônia do Oscar, pela sua atuação em Batman – O Cavaleiro das Trevas — no qual interpretou um complexo, insano, indefectível Coringa — foi uma espécie de consagração do gênero “filmes de HQ (histórias em quadrinhos)” ou, de forma menos abrangente, “filmes de super-heróis”. Se não chegou a tanto, no mínimo permite que outras produções do mesmo tipo não sejam ignoradas como, ao que parece, sempre tinham sido, e também evidenciou a possibilidade dessas realizações serem analisadas por um viés artístico, ideológico, filosófico, estético.

Muitas das mais importantes obras das HQs já foram adaptadas ao cinema. Sin City, 300 de Esparta, V de Vingança e, recentemente, Watchmen. O que se pode esperar depois disso? O texto que segue serve para fazermos algumas tentativas de previsão de futuro — e também para criar, para o leitor menos informado, um pequeno panorama do que os quadrinhos são e podem ser, muito além de homens-aranhas, super-homens e mulheres-gato — ou talvez exatamente isso, mas não só isso.

Crossovers

As produções possíveis das quais podemos ter mais certeza de que de fato serão realizadas são os primeiros crossovers do gênero. Crossovers são encontros de personagens, de super-heróis, de um mesmo universo ou de mais de um (às vezes, muito mais de um). Universo é o termo usado, geralmente, para designar o conjunto de histórias e heróis de uma editora. A Marvel (de Homem-Aranha, X-Men, Quarteto Fantástico, etc) e a DC (de Batman, Super-Homem, Mulher-Maravilha, etc) são as maiores nos Estados Unidos e reúnem quase todos os personagens que a maioria das pessoas entende por HQ e por super-heróis.

Portanto, agora pode fazer sentido as cenas adicionais de uma série de filmes dos heróis da Marvel: algum personagem aparece e fala sobre a reunião de um grupo. Tanto no final de Homem de Ferro quanto em Hulk 2 isso ocorre. O que está acontecendo é o teaser (tipo de propaganda que não informa o real conteúdo do produto, mas afirma e reafirma a sua vinda próxima) de um ou mais filmes dos Vingadores, grupo que também terá o Namor (herói das profundezas do oceano) e o Capitão América, entre outros — sendo que mesmo estes dois nem tiveram seus filmes individuais ainda. Então, se você ler sobre Samuel L. Jackson ter contrato assinado para mais nove filmes da editora, já pode fazer suas apostas…

Mas isso é o de menos. Creio que você vá concordar que muito mais interessante será ver o Wolverine lutar com o Batman. Ou Super-Homem contra Hulk. Ou a x-men Tempestade comandar raios sucessivos para destroçar o corpo da Mulher-Maravilha. Essas histórias já foram contadas nos quadrinhos em DC versus Marvel/Marvel vs. DC, série de 1994 que se estendeu por três núcleos de enredo — como três partes de um romance, cada um com seus encontros de super-heróis e conflitos próprios — seqüenciais. Pode-se esperar pelo menos uma trilogia daí? Quem sabe… e, além disso, DC versus Marvel gerou uma série menor em que os heróis de uma e outra editora eram fundidos. A série se chama Amálgama e parte do mesmo desarranjo que permitiu que os universos se encontrassem e que acabou — por eles serem versões da mesma ideia, digamos — juntando-os num ser só.

Assim, será pelo menos divertido ir ao cinema e ver a fusão de Batman e Wolverine: Garra das Trevas; Homem-Aranha e Superboy (não aquele personagem de Smallville — nas HQs, existe um outro herói, que na verdade é uma espécie de clone de Clark Kent), o Spiderboy; e Capitão América e Super-Homem, o Supersoldado. Da fração das HQs que se esmera em criar ação simples, sem muita complexidade, certamente essas serão boas adaptações para o cinema, que pode mesmo melhorar a abordagem: as HQs originais são meio fraquinhas. Só não espere isso para agora: a Marvel nem contou ainda a chegada de Galactus, o engolidor de mundos; e a DC ainda nem pôs o monstro Apocalipse para matar o Super-homem…

Problemática do Heroísmo

Não foi pela diversão, por efeitos especiais impressionantes ou por personagens modelados em computação gráfica que, para citar o mais popular, Batman – O Cavaleiro das Trevas, é lembrado. A personalidade incontornável do Coringa é seu maior trunfo. Há certo tipo de HQ de herói que aprofunda alguns conceitos do gênero e retira daí uma forma de explicar o mundo; que (ingenuamente ou não) interpreta a sociedade. O exemplo recente é Watchmen; parte-se, nele, da ideia: que ocorreria se houvesse super-heróis? Que diferenças isso traria para a história? Como eles se portariam na sociedade, sendo invulneráveis, titânicos, sem chance de serem derrotados por pessoa ou exército? O que faria um país que tivesse algum desses seres sobre seu controle? O que se faz com poder absoluto?

O paralelo mais simplório que se pode fazer entre esse poder absoluto abstrato que retirei das HQs e a nossa realidade é o uso da bomba-atômica. Os EUA encerraram a participação japonesa na Segunda Guerra Mundial devastando duas cidades. Em Watchmen, em um Estados Unidos de mentira, Dr. Manhattan encerra o conflito do Vietnam em uma semana. Apenas para uso comparativo, lembre também do recente ataque de Israel ao Hezbollah. O comentário nos jornais era: a reação israelense foi desproporcional. Mas um leitor disse: “e o que é desproporcional em uma guerra, sob um ataque? Se alguém é atacado por uma arma branca e possui um revólver, essa pessoa reage com o que tem”. Certamente, o que se faz com a força? é a questão que rege essa história. Que não é a única a explorá-la.

Vou citar dois exemplos. O primeiro, O Reino do Amanhã, da DC Comics. Nele, os super-heróis que conhecemos, esses que tem um código de honra (ou seja, não matam, não torturam, etc, são a versão mais cor-de-rosa para o título herói) são rechaçados pela opinião pública, exilados da sociedade; a ideia geral era a de que esse tipo de defensor era bondoso demais, que novos tempos precisavam de novos heróis, frios e sem pudor de aplicar violência contra violência. O Batman nunca mataria o Coringa. E uma das primeiras cenas de O Reino do Amanhã é a de um novo herói varando o abdómen do vilão com um raio. O quanto isso é distante da nossa própria sociedade? A decisão entre manter uma moral invariável e abusar do uso da força para eliminar o quer que possa ser ameaça é a discussão latente, por exemplo, nas atividades da polícia. Lembremos da chacina ocorrida para encerrar uma rebelião no Carandiru e os casos do livro Rota 66, de Caco Barcellos.

O segundo exemplo aborda a questão de um lado muito diferente. O nosso. A série Marvels conta o aparecimento dos primeiros super-heróis sob o ponto de vista de um jornalista, uma pessoa comum entre outras pessoas comuns que de repente vê seres de fogo cortando o céu ou gigantes de roupa azul atravessando a cidade. O equivalente de um cristão que pudesse assistir aos conflitos de anjos e demônios no cotidiano, nos jornais, na janela de casa. O que se faz quando o mundo é composto de forças muito maiores do que a do indivíduo? Quando muito pouco está sob seu controle? Faria mesmo mais sentido se essa série fosse escrita por latino-americanos, que viveram sob ditaduras; a não ser que haja em alguns americanos um despeito, um temor pelo poder incontrolável do seu próprio governo, dentro do país e fora dele. O que também é possível.

E há uma outra face de Marvels: o próprio uso da força por humanos contra a diferença. Sabe-se que os X-Men são uma metáfora para o racismo. Assim, quando humanos se preparam para apedrejar uma menininha mutante nessa série, é evidente que isso não está tão distante (e é mesmo simplório) frente a tudo o que já foi visto acontecer na realidade.

Por que ler os clássicos?

O lançamento do filme infantil Coraline é também um indicativo das próximas adaptações de HQs — desta vez, distante das histórias mais simplistas e das séries-metáfora, se assim podemos dizer. Coraline é baseado em um livro escrito por Neil Gaiman, que produziu uma das mais prestigiadas séries dos chamados quadrinhos adultos: Sandman. Gaiman criou em uma série de arcos (conjuntos) de histórias uma mitologia fantástica própria. Como disse o escritor Clive Barker a respeito da obra: “nessas narrativas, o mundo todo é assombrado e misterioso. Não existe um status quo sólido, apenas várias realidades relativas, particulares a cada um dos personagens, que são frágeis e sujeitos a erupções de outros estados”.

Barker também diz: “Se encontram entidades interdimensionais, que possuem um senso napoleônico do seu próprio destino, ocupando o mesmo quadrinho de feras coloridas que parecem ter fugido de figurinhas de chiclete. Gaiman é um desses criadores que não veem razão por que seus contos não podem incluir pastelão, divagações místicas e a mais sombria coleção de serial killers”. Ainda de acordo com ele, “[Gaiman] não fornece soluções morais convenientes. Em vez disso, cria histórias como um cozinheiro demente faria um bolo de casamento, escondendo todo tipo de sabores doces e azedos na mistura”.

Interessado? Certamente, o cinema não faria um bom Sandman se fizesse só uma adaptação — seria preciso um diretor (quem sabe, Tim Burton?) para recriar o ambiente e dar corpo tridimensional aos personagens, e atores que possam representar suas qualidades etéreas e tão humanas — como as de deuses gregos.

Terminando minhas apostas, creio que The Spirit, por motivos muito parecidos com os de Coraline, seja um bom sinal. O criador desse personagem é Will Eisner, que utilizou a HQ como meio de expressão para tratar da guerra do Vietnam e seus personagens, de soldados a cidadãos, em Reminiscências, como também para desenhar o autobiográfico No Coração das Trevas, que fala de pessoas comuns, americanos, sob a guerra e sem futuro definido. O filão explorado por Hollywood parece ser apenas o mais digerível, o mais pop; será que um dia virão as versões cinematográficas de Maus (HQ sobre o Holocausto, premiada com um Pulitzer) ou de Fritz, The Cat (personagem de Robert Crumb politicamente incorreto)?

Ah, sim, certamente um dia virão. Mas só depois da Marvel esgotar a maior parte das suas centenas de heróis. Não que isso seja tão ruim assim…

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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