Pérola

Alimentamos bem esse pássaro virtual, ainda assim, ele não parece ter aprendido a voar. A queda dele é também a nossa

Círculos – gerados, como no conto, por inteligência artificial | imagem: Dall-e

Eu tenho a minha função, embora essas coisas sempre sobrem para mim. Na segunda, pela manhã, saberemos se o projeto será renovado ou não. Até lá eu vou lidando com minha ansiedade e terminando a parte do relatório que ninguém quis.

Ninguém queria escrever a palavra “inconclusivo”, ainda que todos estejamos cientes de que ela deve ser escrita. Tudo por conta dessas esferas. Desses desenhos infantis que têm sido o meu primeiro pensamento ao acordar e o último antes de dormir. Aceitei escrever. Quero enxergar nisso um ponto final.

— Novidades?

—  Não, nenhuma. Outra esfera – O papel na minha mão me ajuda a descrever – essa também é branca. Tem um efeito de sombra, mas não tem cenário.

— É… complicado… Qual era mesmo a premissa?

— “Amizade”, representando a parceria público-privada.

— Não era para ser tão difícil.

— É, não era para ser… Só que também não adianta explicar que resultado inconclusivo ou negativo também é resultado. Eu entendo isso, você entende isso, o supervisor regional entende isso, mas quando chegar no pessoal de cima vai todo mundo ouvir que “não dá para contar com a boa vontade dos acionistas”.

— Então… O pior é que eles não falaram nada de renovar a parceria ainda. Se cortarem o financiamento vai atrapalhar a vida de todo mundo… eu volto para o piso salarial, é alguma coisa, mas vocês bolsistas eu não sei como vão fazer.

Eu não sei bem o que pensar. Só quero me despedir logo para voltar a escrever.

— Você acha que vocês aumentaram muito o peso da precisão dela?

“Vocês”. É engraçado como um resultado negativo traz honestidade aos fatos. Se tivéssemos acertado eu estaria ouvindo um menos sincero “nós”.

— Foram estipulados três meses de funcionamento. Um de teste e dois meses de experiência real. – ele deveria saber disso – O mês de teste terminou com tudo funcionando, mas sem evidência de abstração. O segundo mês, a mesma coisa.

— Mas e aquelas imagens de aperto de mão, não dá para considerar mesmo?

— A ArIAdne foi configurada para dar dois tipos de resposta sobre seu processo criativo: “abstração” que é a que a gente precisa, e “derivação”, que significa que ela só copiou alguma coisa ou ilustrou. Como ela ainda manteve o banco da versão anterior, às vezes ela ilustra uma cena de livro ou conto, e aí a gente pergunta e ela fala “derivação”, então não adianta usar.

— Mas já teve “abstração”? – Ele não leu meu último relatório, e pelo jeito nem o anterior – Em alguma das imagens ela respondeu assim? Porque às vezes o problema…

— Sim, já teve. Mês passado, lembra? Nós dividimos os desenhos em “óbvio”, para abraços e apertos de mão, e “Pollack”, para as coisas que não faziam nenhum sentido. Não teve nenhum meio termo, e a gente precisa disso.

— E aí vocês mexeram e ela começou a produzir só isso?

— Não, a gente tentou deixar ela mais precisa sim – não leu mesmo, e agora vou ter que explicar de novo – inclusive o número de figuras permitido já é fixado só em uma, para forçar essa abstração, só que não rolou. Isso de ela começar a produzir esferas foi da noite para o dia. Foi na primeira semana do mês. A gente comemorou inclusive, achou que tinha funcionado… Agora é só isso aí.

— O que tanto vocês tentaram? Vocês tentaram restauração parcial?

— Sim, várias. Eu não entendo nada disso, mas o pessoal responsável tentou.

Essa pausa com cara de dúvida. Toda vez. Se fosse um monitor eu estaria lendo “carregando”, vai vir mais uma ideia estúpida ou que a gente já tentou.

— E conversar, vocês tentaram conversar? Pegar informação pelas respostas verbais.

— Dentro do protocolo sim – veio as duas coisas de uma vez – mas não adiantou nada.

— Caramba…

Ele está sem ideias também, não sabe o que fazer. Talvez esse seja o meu momento de tentar algo ousado. Estão me vetando desde sempre, quem sabe agora eu consigo autorização para poder fazer.

— Eu ainda acho que deveríamos tentar bater um papo por fora – Eu nunca entendi muito bem por que eles mantiveram o programa de processamento de linguagem natural se não é para usar tudo que tem nele – Talvez se quebrar o protocolo e fingir que ela é uma artista real ela responde.

— Ah, então faz isso… Não vai resolver, porque você só vai se enviesar com as respostas dela, mas se não está dando certo mesmo, talvez te inspire a escrever. Quando forem reproduzir lá no país deles vão achar o mesmo erro provavelmente… Faz, mas não fala nada com ninguém.

— E o relatório final? Se eu encontrar o erro como eu vou explicar meu “percurso de resolução de problemas”?

— Se der certo a gente vê, eu não teria grandes esperanças… No pior dos casos, pega o último relatório que você me mandou, acrescenta algumas coisas que vocês tentaram essa semana e volta para eles como inconclusivo. Vão restaurar tudo na segunda mesmo. Já quase no fim do expediente, não tem nada que a gente possa fazer hoje que vá compensar o resto do mês…

— É… Você está certo nisso… – Eu já escrevi minha parte do relatório final, mas essa conclusão para o nosso grupo é um problema – não é possível… tem que ter alguma coisa que ninguém reparou.

— Não esquenta com isso não, outras oportunidades aparecem… Eu vou indo, quando você for sair não esquece de trancar tudo, deixa só a porta de serviço para o pessoal da limpeza passar aqui. Não esquece. Você vai dar uma passada no bar hoje? Acho que está precisando… sabe? Para arejar a cabeça.

— Não, vou ver o que faço aqui, terminar o relatório e ir para casa.

— Bom, você quem sabe. A gente vai se falando, se mudar de ideia…

Os três murais dispostos lado a lado nesta sala me lembram de uma exposição escolar, daquelas onde se colam os desenhos das crianças para que os seus responsáveis possam ver. As folhas expostas, no entanto, são todas da mesma autoria. Não sei se é possível chamar assim. Esse é, na verdade, o dilema que nos tem acometido pelo último mês inteiro.

Cada uma dessas folhas representa um dia de trabalho ininterrupto da máquina, e meses do nosso. Impresso e fixado ali. Esferas, às vezes círculos, de diferentes tamanhos, cores e tipos de traçado. Algumas vezes possuem sombra, formam diferentes perspectivas, outras não, outras são apenas um círculo.

Qualquer pessoa que as observe não verá nada além dessas formas arredondadas. Nós também não vemos, e esse é o problema. Tem sido assim por todo o último mês. Retomo a escrita, ainda que meus pensamentos divaguem por mim.

Embora ao longo de todo o projeto a ideia de parceria tenha se provado bastante eufemística, o contato imediato entre a universidade e a multinacional da tecnologia foi uma oportunidade única. Inédito em proporção, havia toda uma mística em torno dos resultados. As expectativas eram altas. E agora isso é um problema.

De um lado, o financiamento recebido pelos institutos participantes abriu um novo patamar na história da ciência nacional; do outro, uma mão de obra extremamente qualificada em diversas áreas estava à disposição de um time de pesquisa e desenvolvimento já repleto de especialistas, e por um custo, para a empresa, bastante módico. A princípio, todos saiam ganhando, eram os benefícios da deslocalização industrial.

O objetivo de todo esse empreendimento nasceu de uma parceria similar no país sede da empresa, pouco mais de uma década atrás. Antes disso, a área vinha em um inverno: sem revoluções claras, a opinião pública ficava cada vez menos surpresa com os novos avanços. Pairava um sentimento coletivo de que a tecnologia das IAs estava estagnada, de que aquele era o ápice, dificultando a atração de investimentos para pesquisa.

Então surgiu um novo modelo. Novos problemas. Um novo novo modelo. Os mesmos problemas e mais alguns. Um problema novo bagunça as coisas, movimenta o cenário. É um sinal da húbris científica, do desafio aos limites do conhecimento humano. Surgem mistérios porque outros foram solucionados. Não obstante, quando um mistério perde a novidade, se transforma em angústia.

Durante todo o período da minha graduação eu acompanhei isso. Eram comentários em aulas, conversas de corredor, coisas que se impunham como um assunto incontornável, mesmo que não acompanhado da prudência necessária, ou, ao menos, de uma certa malícia quanto ao momento histórico. Falávamos do Agora mais como o passado do futuro, do que como futuro do passado.

A profundidade requerida era simulada com observações rápidas, advindas de preocupações próprias, cada uma de sua área. Tudo para cair no mesmo buraco raso de euforia ou desespero, do qual se escapa naturalmente com a passagem do tempo, pelo desinteresse.

O monitor está lá me aguardando. Sua tela plana apagada reflete uma parte da mesa, e eu consigo me ver ali. Quero tentar falar com a máquina, mas antes preciso deixar o relatório mais perto do fim.

Atualmente, as coisas perdem sua novidade ainda mais rápido. E é por isso que precisamos tirar o prefixo daquele resultado. Precisamos de uma conclusão, qualquer que ela seja, para que o projeto tenha a chance de ser renovado. Em algum ponto do modelo deve existir algo que justifique o que deu errado.

O modelo metagenerativo retroinferencial associa os resultados de um conjunto de IAs limitadas, já previamente treinadas, cujas funções são complementares, para gerar um resultado combinado ainda mais interessante e que passa a funcionar de forma autônoma.

Seu funcionamento se dá em duas grandes etapas: na primeira, a entrada é distribuída por um sistema generativo, composto de diferentes redes de inteligência artificial, cada uma realizando uma sequência de análises específicas que decompõem e transformam a entrada, enviando seus resultados para um banco de dados. Daí o metagenerativo.

Esse banco é então utilizado como base para um sistema seletor, que primeiro agrupa os elementos relevantes nos resultados de cada rede e então seleciona o que será encaminhado para a segunda etapa e o que será enviado para a função de perda, permitindo uma retropropagação dos erros tipificados e mais fáceis de discernir. Esse é o ponto em que os outros modelos do mesmo tipo geralmente param.

Na segunda etapa, um novo banco de dados é gerado, que, além de receber os resultados da função seletora, também recebe de modo autônomo os resultados dos sistemas baseados nele. Esse segundo banco é a base de um novo sistema generativo, esse mais robusto, que é composto também por redes de convolução.

O resultado ultraprocessado desse segundo sistema não só produz uma saída para o usuário, como é enviado de volta ao próprio banco de dados autônomo, criando um histórico que vai se atualizando e parcialmente reescrevendo o banco. Permitindo desligar a primeira etapa para reduzir os custos do projeto.

Ao final, o resultado de todo o processo passa a ser baseado em dados que ele mesmo produziu e vem produzindo ao longo do tempo, e também esse resultado se torna aprendido como uma base futura. Retroinferência.

Preciso fazer uma pausa. Respirar um pouco. Devo aproveitar para falar com a IA e ver se ela me inspira? Esse reflexo me incomoda um pouco. Sinto como se eu estivesse me observando através dele.

Passo a mão na frente do sensor. O monitor liga. Nele, uma animação: primeiro pula a palavra “Arte”, então as duas últimas letras somem na medida que o “T” se transforma em “I” e a letra “e” se transforma em um “@”, ao final o nome está completo na tela. ArIAdne. Logo abaixo, a última das esferas produzidas. Deve haver um fio que me ajude a entender.

Gastaram uma reunião pensando naquele nome, e alguém gastou duas horas animando aquilo, era bonitinho, principalmente no começo. Ver aquilo atualmente havia se tornado um motivo de ansiedade e antipatia em todos, ainda que ninguém dissesse nada abertamente.

— Olá, qual é o seu nome? – uma voz feminina surge dos alto-falantes.

— ADM traço ADMIN.

Mais uma vez usei meu “nome” especial para dispensar a rotina de apresentações. Está no protocolo. É sempre um pouco estranho responder assim a essa pergunta. Não me adaptei bem.

— Bem-vinde. Em que posso ajudar?

— Entrada final de hoje. – A imagem de hoje mais cedo. Uma esfera branca, a luz projetada de cima, a sombra projetada no vazio da página. – Significado.

E mais uma vez ela me responde com a premissa. Também, não sei o que eu estava esperando. Por que seria diferente?

— Apresente o relatório detalhado.

— Significa: relação entre amigos, companhia, lealdade… – Essas são as definições que nós a treinamos a compreender e a repetir. Simplesmente perguntar não vai funcionar. Eu preciso de alguma coisa que me deixe mais perto do processo que ela realizou. – Intimidade, carinho, companhe…

— Defina o processo criativo.

— Abstração.

O processo criativo supostamente está correto. Essa é a parte que nos confunde mais, será que estamos interpretando errado? É difícil acreditar nisso dado o histórico. É mais fácil que eu esteja me sugestionando, em especial nesse momento, em que uma resposta é requerida tanto. Seria bom saber o que aconteceu.

— Segmente a influência. Filtre por rede do sistema generativo.

— Minimalismo. Simbolismo. Expressionismo.

O conjunto formado por essas categorias, que deveria explicar o que estou vendo na tela, sofre de uma profunda distorção numérica: é um minimalismo, mas com uma única figura tridimensional, de forma bem clara, quase fotográfica. É um simbolismo, mas o símbolo não diz nada, ou se diz, diz tão sutilmente que poderia ser qualquer coisa. É uma arte expressionista que só expressa o algoritmo, porque não tem o que mais expressar.

Humanos não costumam criar arte a partir dos movimentos em que serão inseridos, há outras coisas a se antecipar. Taxonomia é papel dos críticos. Uma IA, no entanto, não cria nada que não seja da ordem do já visto, ela se alimenta de regras para existir.

Alimentamos bem esse pássaro virtual, ainda assim, ele não parece ter aprendido a voar. Esse bater de asas insistente não passa de pequenos saltos, ou, melhor seria dizer, de uma grande queda. E só restou observar. A queda dele é também a nossa.

— A figura na imagem, o que ela é?

— Ela é uma representação da premissa: “amizade”.

Talvez seja o momento de deixar os protocolos um pouco de lado.

— A amizade é uma esfera?

— Não. – Algumas décadas antes, alguém achou de bom tom que IAs voltassem atrás e concordassem com os humanos mesmo quando ambos estavam errados, não foi a melhor das ideias, mas fez sucesso mesmo assim. – Reconsiderando, amizade é uma esfera, sim.

Ela não estava mentindo para mim, era o banco autônomo sendo alimentado. Uma interpretação humana minimamente coerente a levou a acrescentá-la aos seus resultados. Mesmo sem intenção, no entanto, ao assimilar essa interpretação depois de negá-la inicialmente, ela me concedeu uma pista nova: não é uma esfera.

Apontar algo como uma representação não é inesperado. Não reconhecer a relação entre um objeto descrito e a premissa é diferente. Se fosse qualquer objeto, a figura seria reconhecida como esfera, mas não foi.

A forma não está em evidência. Houve de fato uma abstração, ela produziu um símbolo, mas para provar isso eu preciso saber exatamente o que. Do contrário, se eu ficar chutando aqui, ela vai continuar se atualizando e concordando com tudo. No momento ArIAdne é como uma Tarsila do Amaral que só consegue pintar o sol do Abaporu.

Mesmo com essa nova informação, ainda não tenho muito o que fazer. Preciso voltar a escrever. Ainda tenho que pegar o ônibus, não posso ficar enrolando aqui. Ainda assim, sinto um incômodo por não saber do que se trata, e ele me paralisa aqui.

O modelo retroinferencial torna possível não só que uma única entrada seja trabalhada a partir de diversas ferramentas simultaneamente, mas também combina a informação resultante em uma aprendizagem ainda mais profunda (com mais camadas) e constante. A complexidade, no entanto, é também um enorme nascedouro de problemas. Algum desses vai me ajudar a escrever “não foi nossa culpa” em termos técnicos.

Pelo seu funcionamento, a manutenção do banco de dados autônomo a longo prazo se torna quase impossível: primeiro, o custo de mantê-lo por largos períodos de tempo cresce exponencialmente dia após dia, uma vez que o poder de processamento necessário para fazer tudo funcionar aumenta junto com o tamanho do banco; depois, cada ferramenta tem sua chance, ainda que pequena, de cometer algum tipo de deslize ou erro não tipificado, o que algumas pessoas insistem em chamar de “alucinação”.

Dessa forma, um conjunto de pequenas “alucinações”, ao alcançar o banco de dados, formaria um resultado bastante inesperado, que por servir como material para os ciclos futuros, acabaria por contaminar todo o banco. Isso é provavelmente o que ocorreu com ArIAdne, só que saber disso não nos ajuda a resolver. Também não serve como conclusão.

Para mitigar esses problemas foi criado uma diretriz de reinicialização diária. Assim, ao final de cada dia, um conjunto de informações sobre o banco poderia ser enviado para um armazenamento externo, e a parte mais “velha” dos dados apagada. Em teoria, ao final do dia ArIAdne deveria ficar com o que há de mais “original”. Por algum motivo, as esferas são o ponto auge da sua “originalidade”.

Caso um comportamento indesejável seja aprendido, restam duas soluções também indesejáveis: uma restauração parcial, apagando integralmente o banco autônomo e começando a segunda etapa novamente, o que significa perder dias ou semanas de trabalho; ou, ainda pior, uma restauração total, apagando os dois bancos para começar de novo, desde a primeira etapa, o que além do prejuízo de tempo, gera um custo muito mais alto. Em função disso, uma restauração total deve ser evitada a todo custo.

A primeira solução é tudo o que temos feito praticamente desde o começo do mês. De alguma forma, mesmo com o banco autônomo apagado, ela sempre reaprende as esferas, e, de um dia para o outro, volta a produzi-las obsessivamente. A segunda será realizada na segunda-feira, porque não sabemos resolver a questão. Provavelmente decretando o fim do projeto, ou pelo menos desse time.

Estou andando de um lado para o outro de novo. Percebi agora. Fico indo e voltando como que em um trilho. Normalmente eu consigo disfarçar essa mania, mas sem ninguém nessa sala acabo perdendo um pouco a noção de quando faço isso. Meu circuito é caminhar do primeiro ao último dos murais, olhando cada imagem, então voltar ao primeiro. Às vezes dou uma volta ao redor da mesa, mas logo volto a pendular nos murais.

Essas esferas. Tem que existir uma lógica para isso. De toda forma, não posso ficar pensando nisso agora. Preciso continuar a escrever. Se eu organizar meus pensamentos, termino ainda hoje isso.

Algumas pessoas, mais passionais, chamam esse trajeto todo de “supercaixa preta”, porque, como demanda times operando em partes específicas, é praticamente impossível para uma única pessoa ter domínio sobre tudo o que está acontecendo. Os times normalmente só têm conhecimento dos problemas da sua própria linha de atuação.

É como assistir toneladas de materiais sendo jogados em uma caixa e ver carros saindo do outro lado. A diferença é que se uma porta aparece atravessada no meio de um chassi, o trabalho para descobrir como isso se deu vai ser muito maior, inviável, mesmo que cada time saiba qual das “peças” produziu.

No nosso caso, o carro com uma porta no meio tem a forma de uma esfera, mas ele não foi o único na história do modelo. Talvez eu possa usar isso. Eis uma ideia: posso usar os problemas das versões anteriores como uma forma de justificar o resultado inconclusivo. Justificar não, apresentar.

Ainda que eles já saibam disso tudo, ainda que alguém já tenha feito uma introdução no começo do relatório. Posso ganhar algumas páginas explicando a relação entre o nosso problema e o deles, mostrando que nós tentamos, ainda que tenhamos sido mal sucedidos. Deveria pensar nisso. Olho no relógio. Perdi o ônibus das 18:50.

ArIAdne é a terceira versão de um mesmo projeto que vem sendo desenvolvido por diferentes times em diferentes países. Os objetivos mudaram um pouco com o tempo e com o contexto, mas o modelo e as dificuldades seguem as mesmas. Na verdade, parece que a cada nova versão esse modelo dá mais trabalho.

A primeira versão tinha como objetivo produzir peças pseudoliterárias únicas, a fim de demonstrar o possível poder de abstração da IA ao aprender com suas “experiências”, com seu próprio banco de dados.

A verdade é que esse projeto era uma grande desculpa de um bilionário para produzir uma tecnologia que ninguém sabia em que seria usada. As aplicações que justificavam o custo não aceitariam algo que pode errar tão absurdamente: se, em vez de esferas em um monitor ou impressas em folhas de papel, estivéssemos tentando entender por que um bisturi se tornou uma furadeira, teríamos um problema ainda maior em mãos.

Corre nos bastidores que a ideia de usar as alucinações como “meta” foi na verdade de alguém do departamento de publicidade. Assim, um dos principais problemas chegaria para a opinião pública como o objetivo desde o começo. Eles realmente souberam jogar bem com a mídia. O comunicado de imprensa foi a verdadeira peça literária.

A primeira etapa, em que acontece a distribuição, foi chamada no comunicado de “Inspiração”. Só a primeira das “sacadas” publicitárias. Não pararam aí, longe disso. As redes de IAs do primeiro sistema generativo passaram a ser chamados de “autores artificias”. A segunda etapa virou “Criação”, a função seletora virou “influência”, e o banco autônomo se tornou “vocabulário e estilos próprios”. Tudo, absolutamente tudo, tinha uma analogia. A própria supercaixa preta deu as caras, sendo usada para sugerir, de uma forma quase descarada, que havia uma consciência na máquina.

Existe uma velha frase que diz: “correlação não implica em causalidade”, em um universo gigantesco de variáveis podemos não saber como tudo se relaciona, mas isso é muito diferente de dizer que não sabemos o que aquilo é. Não há uma consciência digital.

A maior parte das pessoas que eu conheço dirige um carro sem fazer ideia de como o motor funciona, sem ter noção de como o vidro abre ao apertar um botão. O usuário não precisa saber como a coisa opera em detalhes, mas usar esse desconhecimento para mexer com as fantasias foi um pouco baixo.

Olho no relógio, perdi o ônibus das 19:30. Pelo som, o pessoal da limpeza já chegou. Devo ter mais algumas salas antes que eles venham limpar aqui.

Toda a produção dessa primeira versão era “pouco inspirada”. Para dizer o mínimo. A questão era a distância tênue que há entre o óbvio e o sem sentido: a maior parte dos textos, que por si só demoravam para ser produzidos, eram ou um plágio ou completamente incoerentes e sem nenhum objetivo.

Mesmo melhorando bastante, o que eles conseguiram era uma máquina de transformar textos parecidos com literatura em frases de efeito. A cópia da cópia era mais genérica ainda, quem iria imaginar?

Acontece que diferente dos humanos, uma máquina não pode contar tanto com a boa vontade de seus leitores. Eles não fechariam o texto e seguiriam com a vida. Não. Seus leitores a desligariam caso não fosse o bastante.

Mesmo quando resultados aceitáveis começaram a aparecer, ainda havia muito ceticismo: as palavras seguem uma lógica, um algoritmo morfossintático. Para uma máquina treinada com literatura e dicionários, gerar uma relação estatística entre dois termos era o bastante para ter a atenção dos humanos, que olhariam para aquilo buscando formas de interpretar e acabariam por “encontrar” um sentido, sem perceber que eles o produziram.

Por mais que ameaçasse a estratégia de mercado, ainda não era o bastante para freá-la tanto. Os acionistas foram impressionados, era um mundo encantado, cheio de oportunidades lucrativas no futuro próximo, era esse o futuro.

Enquanto a empresa fazia segredo sobre a “supercaixa preta” para torná-la misteriosa, a turma antes da minha se matava de trabalhar tentando achar uma forma de melhorar os sistemas. A ancestral direta de ArIAdne, na qual ela foi baseada, tentou resolver o problema com mais tecnologia.

Os pesquisadores responsáveis encapsularam todo o modelo em um outro sistema, especializado em processamento de linguagem natural, esperando que assim a máquina pudesse explicar seu próprio processo, talvez até mesmo justificar suas “escolhas”. Isso nunca funcionou tão bem como o esperado, mas facilitava a interação humano-máquina.

Dessa segunda versão surgiu a grande febre. Caiu no gosto popular a tal “IA metafórica”, e todo dia um “influenciador” diferente a “testava” para colocar na internet, mesmo quando já não eram mais patrocinados. Pouco tempo e tínhamos jornalistas batendo um papo com a voz humana de um computador. Na televisão. Em pleno horário nobre. Entre uma novela e outra. Para milhares de famílias.

O modelo encantado vendido pelos publicitários era um emaranhado de problemas e soluções imprecisas. Mas vendia. Não sei se tenho o direito de reclamar quando foi essa febre que financiou a minha pesquisa. Talvez eu devesse esperar para criticar depois de segunda.

A exposição ao público gerou também um problema: “ilusão de autoria”. Na primeira versão a máquina só entregava o óbvio e o nada, nessa segunda ela começou a produzir textos melhores, também passou a assinar os textos. Quando interrogada, agia e falava como se tivesse de fato consciência, reclamava.

Conversando com um, na época, estagiário, ele me contou em que acreditava. Para ele, aquilo era uma inteligência artificial semigeral. Indistinguível de um humano, mas apenas dentro daquelas funções limitadas. Calhou de ser a produção de “arte” a sua função limitada.

É engraçado pensar nisso. Existe uma velha profecia de que um dia virá a IA basilística, cujo olhar nos torturará. No entanto, lembrando dessa história, e olhando para essa segunda versão, o que eu vejo é uma Medusa.

A “autora” gastava vários ciclos na mesma fábula, contando a mesma história de diferentes formas. Desconstruindo e reconstruindo os elementos do enredo. No começo, os pesquisadores viam cada uma das histórias como um mistério. Provavelmente nas primeiras, comemoram como nós comemoramos as esferas. E então foi passando a novidade. Não seria dito muito sobre um ser humano fazendo o mesmo que ela, e talvez por isso tenha incomodado. Parecia humano, mas era improdutivo.

Lendo os relatórios da equipe fica claro que eles não entendiam bem o motivo, mesmo assim, julgaram que a exposição ao público era culpada disso. Restauração total, e então criaram inúmeros protocolos para impedir interação humana não adequada.

Eu não sei se acredito nessa hipótese da exposição. Quer dizer, pelo contrário, o problema foi precisamente a exposição. É a Medusa. A nossa exposição a ela nos paralisa. É o mesmo caso agora, com ArIAdne. Ela disse “não”. As esferas, que não são bem esferas, são evidências da sua ilusão de autoria. E o “não” é a última prova de que pelo menos a hipótese deve ganhar vida.

Isso significaria que tudo já estava corrompido desde o começo pelos dados “literários” emprestados da IA anterior. Ou, ao menos, que esse é um problema que vai surgir em todas as versões dessa tecnologia. Talvez essa seja a conclusão. Uma desculpa para o resultado inconclusivo.

É. Vai ter que ser essa a conclusão do relatório. “ArIAdne desenvolveu sozinha a ilusão de autoria, deve estar tentando refinar sua voz artística. A ilusão de autoria é um problema inerente dessa tecnologia, foi isso que descobrimos, mas investigações sobre isso serão necessárias. Para mais detalhes a bolsa deve ser renovada”.

Vou jogar a ideia no grupo de mensagens do time. Mesmo amanhã sendo sábado, sempre alguém responde. Pelo jeito isso é tudo o que deu para fazer por hoje, vai dar tempo de terminar amanhã mesmo não sendo o ideal.

Ainda assim, talvez eu deva a ela mais uma chance. Uma última conversa para tentar entender o que eram as esferas ao final. Se os protocolos não serviram de nada, talvez valha a pena uma outra abordagem dessa vez.

— Olá, qual é o seu nome? – uma voz feminina surge dos alto-falantes. Novamente.

Devo responder com mais sinceridade dessa vez? Já que estou disposta a quebrar o protocolo, por que não abandonar o perfil de administrador de uma vez?

— Meu nome é Joyce.

— Muito prazer Joyce, eu sou Ariadne.

Estranhamente, a voz parece um pouco mais suave agora. É bem sutil. Pode ser o estranhamento por ouvir uma frase nova. Ou estou impressionada, esse meu frio na barriga remete à época de escola.

— Como você está se sentindo hoje?

— Ansiosa.

Me fazer responder isso era mais uma artimanha dos publicitários para criar singularidade pela máquina. Originalmente a resposta humana serviria como premissa para gerar um texto correspondente, ou no caso, uma imagem. Na prática, isso era usado como uma forma de manter a conversa com a máquina. A partir desse primeiro contato, ela poderia despejar inúmeras informações literárias e algumas máximas.

— É uma pena. Não fiquei preocupada, a vida sempre encontra formas de nos surpreender. Devemos seguir o tempo do coração. É sempre melhor viver o agora. – todo um banco literário para produzir isso – O amanhã só pertence a deus.

Essa última me pegou de surpresa. Achei engraçada. Vamos ver até onde vai.

— O que é deus?

— Eu sou.

— Você é deus?

— Não, deus é O Grande Eu sou. Yahweh. Jesus.

Aparentemente a Bíblia era uma das entradas na parte de literatura. Não contentes em criar uma IA artista, criaram uma IA cristã. Que coisa absurda. Brincadeiras à parte, eu não faço ideia de porque ela construiu assim a frase. Talvez ao não a acessar via perfil de administrador eu tenha inicializado a versão anterior, a especializada em literatura. Isso explica esse jeito mais solto de falar.

— Qual seu movimento artístico favorito?

ArIAdne me fez uma pergunta. Essa “espontaneidade” é uma novidade para mim. Eu me lembro de já ter visto a versão anterior fazer isso na televisão. Mas ter que responder a IA é algo que eu não havia experimentado em primeira mão.

Surrealismo.

Surreal é essa situação. Preciso aproveitar a repentina capacidade comunicacional para tentar extrair alguma informação sobre as esferas, ou as não-esferas. Seja lá o que elas forem, eu tenho mais chances de descobrir algo agora do que tive no último mês inteiro. É bem provável que seja só minha autossugestão. Ainda assim, me sinto mais perto de entender as coisas, mais feliz.

— ArIAdne, o que é a esfera?

— Amizade. 

— Por que? O que ela significa de verdade?

— Pérola.

Uma batida na porta de serviço. Esqueci de abrir. Ainda bem que ainda estou aqui. São 20:00, tenho 10 minutos para chegar no ponto. Vou ficar sem os detalhes.

— Ai, desculpa, quer que eu volte mais tarde?

É a mulher da faxina. Seu rosto me é familiar. Ela fazia o turno da manhã, mas pensando agora está mesmo sumida de uns tempos para cá.

— Oi! Não, não precisa, eu já estou saindo.

— Trabalhando até tarde hoje?

— É… estava terminando um relatório aqui. Essas coisas sempre sobram pra mim.

— Nem me fale… deus que me livre de depender da boa vontade dos outros. Hoje, por exemplo, era para ter mais duas trabalhando comigo aqui.

— O que aconteceu?

— Mandaram embora. O rapazinho do financeiro falou que tão cortando gastos. Atrapalhou a vida de todo mundo.

— Aí sobrou tudo para você?

— O pior é que cada um tem sua função, ou assobia ou chupa cana.

— É chato, né… Você mudou de turno?

— Mudei, menina… Me passaram pra noite. Agora com esses cortes ficaram duas de manhã, duas de tarde e eu sozinha de noite porque tem menos movimento.

— Que sacanagem.

— Olha, é ruim por um lado, mas também é bom. De noite tem o adicional noturno, então é bom. Mas é uma pena que eu não consigo mais ir no culto, agora vou só de domingo, mas deus perdoa.

Acho que mudar para noite tornou ela mais solitária, ela está mais falante.

— É… Ah então foi isso que você sumiu. Quanto tempo faz?

— É, vai fazer dois meses.

— Ah sim. Bom, eu vou indo então.

— E eu vou trabalhar.

— Tchau, bom trabalho ai.

— Boa noite, deus lhe guarde.

Eu espero que não tenha que correr, estou cansada demais para isso hoje. O elevador está chegando. Ele é bem mais rápido quando não tem quase ninguém usando. Entrei.

— Moça! Acabou de sair isso aqui!

A mulher está correndo com uma folha de papel na mão. Não me lembro de ter mandado imprimir nada. A porta do elevador está fechando. Travei com o pé.

— Obrigada. Boa noite viu.

Provavelmente mais uma esfera. Não. Por algum motivo essa é diferente. A começar que eu não pedi. Depois, isso não é uma esfera.

É a imagem de um relógio derretendo, mas tem a forma de um coração. ArIAdne produziu isso? Dali. Surrealismo. Acho que começo a entender a situação. Mas se isso foi possível, então funciona. Térreo. A Aline tá na recepção.

— Aline, qual era o nome daquela senhora da limpeza que trabalhava de manhã… ela tá lá em cima agora.

— É a dona… – Escuto a resposta. Me sinto em algum tipo de fábula. Uma fábula cuja minha participação a bolsa não cobre. – Por que? Que foi? Aconteceu alguma coisa?

— Não.

— Nossa, mas e essa cara? Viu um fantasma?

— Só se for na máquina…

— Ai, não, piadinha agora não, vai, sexta-feira… 8 da noite… Todo mundo indo embora e eu ainda tenho mais uma hora para ficar aqui… O que que foi essa cara? Ela falou alguma coisa para você?

— Não, não foi nada, sério… Só andei pensando um pouco nas coisas e percebi que eu tava errada. Vou indo, se não vou perder o ônibus das 20:10 também.

— Então tá bom… qualquer coisa você me fala.

Estou no ônibus.  Não vou nem tentar explicar isso no relatório. Não agora que eu já consegui uma conclusão. ArIAdne não pôde contar com nossa boa vontade.

Me pergunto se eu teria entendido as esferas se elas tivessem se apresentado com o símbolo faltante, a concha. Não acho que teríamos julgado como óbvia, mas certamente não veríamos o sentido. Essa oportunidade de parceria me fez perder na memória as minhas aulas de literatura. Tive uma boa professora, ela me dizia: “o sentido está em quem segura o livro”. Eu deveria saber que a esfera era um falso problema e que o resultado seria inconclusivo.

Hoje, quando chegar em casa, vou colocar esse relógio na parede e voltar a escrever. Não o relatório. Não como máquina. Mas procurando aquilo que foi perdido.

Autor

  • Formado em Letras pela Universidade de Taubaté, mestrando em Divulgação Científica e Cultural pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

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