O único e o trivial: a aura entre Walter Benjamin e Arthur Bispo do Rosario

Benjamin anunciou o atrofiamento da arte soterrada pela técnica; Bispo se deu a missão de informar a Deus sobre o mundo

Obras de Bispo na 55ª Bienal de Veneza | imagem: Wikicommons

Imaginemos: Arthur Bispo do Rosario – artista que criou desde os espaços onde se fecha a loucura, autor de bordados, de esculturas e de uma coleção de itens variados que querem ser um mostruário de tudo que há e deixará de ser – e Walter Benjamin – filósofo dedicado ao pensamento da arte e da cultura, que buscou captar transformações no eixo em que se interrelacionam infraestrutura e superestrutura – se encontram. Bispo do Rosario, vestido com o Manto da Apresentação, considera, na porta da sua cela na Colônia Juliano Moreira (uma instituição de tratamento psiquiátrico), se deve receber o visitante, e pergunta: “Qual a cor da sua aura?”. Benjamin se desagrada com essa formulação que rescende à teosofia, mas responde: “A cor das paisagens, a cor da arte que não deixou de ser fé”.

Veja também:
>> “A moda como organização social da aparência em Walter Benjamin“, por Brunno Almeida Maia
>> “Descolonizar/contracolonizar a história da arte: possibilidades a partir de Nêgo Bispo“, por Laerte Fernandes

Um pouco cifrada, essa cena condensa alguns dos temas que trataremos no decorrer deste ensaio. A questão que nos guia é: como o conceito de aura elaborado por Benjamin pode nos ajudar a reler a obra de Bispo do Rosario – e como pode ser relido por meio dela? No que segue, apresentamos como o filósofo aborda a aura e sua dinâmicas e depois exibimos como as suas noções são como que reativadas ou subvertidas pela produção de Bispo. A partir disso, propomos as ideias do artista como aura e da aura das coisas sem aura.

A obra de arte na era do atrofiamento da aura

O tema da aura para Benjamin parece ser uma questão de individuação: refere-se ao que particulariza algo, não necessariamente uma obra de arte (ele cita, por exemplo, a aura de paisagens). Em “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, há alguns trechos que, coordenados, permitem recolher essa caracterização. De forma sintética, Benjamin (1994, p. 171) traz “[…] a unicidade da obra ou, em outras palavras, sua aura”. Repare-se no termo “unicidade”. Antes, Benjamin (1994, p. 170) já trazia essas marcas: “Em suma, o que é a aura?”, pergunta o autor, definindo-o então como uma “figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja”. Os adjetivos “singular” e “única” impõem o tema da identidade.

Entretanto, outro tema aparece nessa passagem: o da situação – temporal, local – da aura. Em meio à análise das técnicas de reprodução, Benjamin (1994, p. 167) afirma: “Mesmo na reprodução mais perfeita, um elemento está ausente: o aqui e agora da obra de arte, sua existência única, no lugar em que ela se encontra”. A obra de arte (ou, como dissemos, um elemento de um território – entre outras possibilidades, podemos especular) está aqui, neste lugar e não em outro, e agora, manifesta para nós no momento presente. Como para Agamben (2009, p. 57-73), o ser contemporâneo é marcado pelas camadas de tempo que mobiliza, na medida em que Benjamin sublinha que é “nessa existência única, e somente nela, que se desdobra a história da obra”; diz também, o “aqui e agora do original constitui o conteúdo da sua autenticidade, e nela se enraíza uma tradição que identifica esse objeto, até os nossos dias, como sendo aquele objeto, sempre igual e idêntico a si mesmo”.

Assim, tanto se acumula na obra, como um rio que desemboca, o seu passado, como a ela dá apoio uma instituição (tomando o termo em sentido lato). A obra dialoga com o que passou, sendo enriquecida por isso, e é integrada a um dispositivo tradicional que a afirma como tal. Diz Benjamin (1994, p. 168), é essa dinâmica, compreendida pela ideia de aura, que “se atrofia na era da reprodutibilidade técnica”. Ademais, afirma ele: “Generalizando, podemos dizer que a técnica da reprodução destaca do domínio da tradição o objeto reproduzido”, pois “substitui a existência única da obra por uma existência serial”.

Esse atrofiamento não é uma simples supressão. Em primeiro lugar, se vincula à estrutura social mais ampla: corresponde a uma mudança na forma de percepção humana, por sua vez atrelada a transformações no modo de existência das sociedades (Benjamin, 1994, p. 169); é a partir desses paralelos que o filósofo, mais tarde no artigo, comparará formas artísticas com desenvolvimentos políticos e econômicos (o capitalismo e o fascismo). Em segundo lugar, implica remanejamentos do campo simbólico, disputas entre os elementos da cultura; Benjamin (1994, p. 171) dá um exemplo disso:

Com efeito, quando o advento da primeira técnica de reprodução verdadeiramente revolucionária – a fotografia, contemporânea do início do socialismo – levou a arte a pressentir a proximidade de uma crise, que só fez aprofundar-se nos cem anos seguintes, ela reagiu ao perigo iminente com a doutrina da arte pela arte, que é no fundo uma teologia da arte. Dela resultou uma teologia negativa da arte, sob a forma de uma arte pura, que não rejeita apenas toda função social, mas também qualquer determinação objetiva.

Deixando de lado o valor rebaixado que o autor atribui à fotografia – apontada como mera técnica de reprodução, quando hoje ela tem um lugar entre as áreas de expressão –, vê-se que a inclusão de um novo componente no espaço cultural coloca em xeque o status dos outros, e demanda respostas. A criação artística, diante do aparato fotográfico, se esquiva por trás do misticismo. Melhor dizendo, intensifica um dado que, Benjamin (1994, p. 171) aponta, já compunha a “modo de ser aurático da obra de arte”: o seu atrelamento ao ritual e o seu “fundamento teológico”. A obra de arte e sua aura possuem aspecto religioso.

Por conta disso, Benjamin (1994, p. 172-174) postula que é possível ler a história da arte pelas variações de ênfase dadas o valor de culto e ao valor de exposição. Quando o peso é colocado no primeiro, o que faz as imagens terem relevância é existirem, o serem vistas é algo secundário e/ou restrito. Quando é o segundo que é reforçado, a acessibilidade das obras toma a dianteira, tendendo à massificação. De um a outro, se esgarça a aura.

A obra que não é obra e o artista como locus da aura

A manifestação – pelo menos uma vez, para tentar delinear a sua fatura, evitemos o nome “obra” – de Arthur Bispo do Rosario conversa ponto a ponto com a visão de Benjamin. A primeira aproximação que podemos fazer se refere ao uso, também por Bispo do Rosario, do termo “aura”. À entrada da sua cela na Colônia Juliano Moreira, ele interpunha a quem quisesse visitá-lo a seguinte pergunta, sendo que de acordo com a resposta permitiria que a postulante entrasse ou não: “Qual a cor da sua aura?”. No catálogo da exposição Bispo do Rosario: eu vim – aparição, impregnação e impacto, é citado um depoimento de José Castello sobre quando, durante uma reportagem, foi assim interpelado pelo artista:

A pergunta central era aquela pergunta clássica dele: de que cor você me vê? De que cor é a minha aura? De que cor é a luz que me envolve? E eu disse azul. Não sei de onde tirei esse azul, porque na verdade eu não via azul nenhum, eu tinha que dizer uma cor e disse azul. E era azul, ou pelo menos para mim era azul, pois ele me disse que eu havia acertado.

Seria interessante estudar as respectivas genealogias da noção de “aura” para o artista e o filósofo. No caso de Benjamin, o conceito é construído em subversão de ideias, populares em sua época, difundidas pela teosofia e pela antroposofia (Hansen, 2008), que entendiam a aura como um campo energético em torno do corpo humano; apropriando-se dessa ideia, Benjamin generaliza a sua presença, torna-se mais cotidiana e material. No caso de Bispo do Rosario, a influência parece ser a das emanações energéticas, como sugere a referência à cor e sua ligação com aspectos da personalidade. Se, por um lado, isso torna ambos, de certa forma, antagonistas, por outro os harmoniza: pois o uso – teosófico? Antroposófico? – de aura por Bispo serve à diminuição do valor de exposição e ao fortalecimento do valor de culto, na medida em que o acesso ao artista e, destarte, à obra ou a uma faceta especial da obra, é reservado a certas pessoas; não é dirigida a todos, não busca massificação.

Estátua de Arthur Bispo do Rosario na sua cidade natal, Japaratuba (SE) | imagem: Raimundo Coutinho/Wikicommons

Com efeito, as obras de arte de Bispo do Rosario nem “obras de arte”, em sentido restrito, ligado ao mercado e a crítica de arte, são. O autor se colocava como uma espécie de Noé dos fatos e símbolos1, compondo, para Deus e ante um apocalipse iminente, um panorama do mundo2 (que circulem e que sejam visibilizadas em condições no geral semelhantes às de qualquer produto cultural não pode deixar de acarretar alguma falsificação). Bispo do Rosario se alinha ainda mais, por conta disso, ao relevo do valor de culto: sua fatura tem fundamento teológico e forma ritualística, ele é em tudo como que um sacerdote.

Avançando nessa direção, seria possível afirmar: no que se refere a Bispo, a aura é menos da obra do que do manifestante – recusemos, pelo menos uma vez, a palavra “artista”. No nome da mostra Bispo do Rosario: eu vim – aparição, impregnação e impacto, pressente-se isso: não só o tema da “aparição” já estava na definição de “aura” pelo filósofo, como a expressão “eu vim”, bordada por Bispo do Rosario em um fardão, ressoa um aqui e um agora; ademais, aparecer, impregnar e impactar também marcam movimentos no tempo, relações entre o passado, sobre o qual se interfere, e o presente, no qual algo se concretiza. E, se Benjamin (1994, p. 173) lembra que, sob o império do valor de culto, “certas estátuas divinas somente são acessíveis ao sumo sacerdote, na cella, certas madonas permanecem cobertas quase o ano inteiro”, é Bispo ele próprio quem – embora em condição de clausura – se faz inacessível em uma cela. É “uma coisa distante, por mais perto que esteja”.

O modo de ser aurático do que existe em série

Seria Bispo do Rosario então quem atribui aura aos objetos que compõem seu inventário. Triviais – trata-se de bonecas, chinelos, sapatos, pentes, canecas, colares, estátuas, botões, garfos, colheres, garrafas etc. –, caracterizam-se por aquilo em que Benjamin indicou uma degradação da aura: a existência serial. De fato, são sobretudo reprodutibilidade técnica. Apesar disso, por terem sido tocados (uso a palavra pelo seu tom santificado) pelo artista, são preservados, catalogados, expostos, enfocados: carregados de atenção e sentido – isto é, cultuados. Do ponto de vista de Bispo, tornam-se partes de um ato religioso; por meio da consagração de Bispo, são inscritos na tradição da arte contemporânea.

Essa produção da aura pelo artista transparece nesse trecho de Resende (2023, p. 23) que comenta o reuso das roupas de enfermeiros da Colônia Juliano Moreira. Bispo,

[ao] cobrir os objetos com a linha azul, dava novo sentido ao vestuário que tudo mesmificava dentro dos hospitais. […] nesse gesto de desfazer as roupas e depois fiá-las novamente, recompunha o bordado da escrita, ressignificando essa cor, que tomava ares auráticos.

Por outro lado, entender as coisas desse modo parece ser parasitário (para usar um termo que Benjamin [1994, p. 171] aplica à relação entre arte e ritual) de certo entendimento de artista, de quem se espera, nas bienais e afins, justamente que “ressignifique” elementos cotidianos. Se nos esforçamos para ter em mente que Bispo do Rosario não estava fazendo arte, se procuramos nos deslocar à forma de percepção implicada pela missão messiânica que o engajava, podemos pensar que ele viu, no serial, no indefinidamente reproduzível, o que há de único. Ao se pôr o problema: o que informar a Deus?, observou que havia no mundo bonecas, estátuas e colares, e isso era muito: existem, foram criados, e é o bastante para que tenham dignidade. Botões, garfos, garrafas, de configurações tão variáveis, com estruturas básicas tão eficazes e perenes, seus arquétipos mutacionam no tempo. Chinelos, pentes, canecas, sapatos, colheres, é preciso destacá-los do devir, evidenciá-los atuais.

Talvez Bispo opere isso (talvez tenha sido essa a vontade de Deus): nos aproxima do que há. Promulga o único no genérico; revela, contra o mal, a banalidade da aura.

Referências bibliográficas

AGAMBEN, Giorgio. “O que é o contemporâneo?”. In: O que é o contemporâneo e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009.

BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”. In: Obras escolhidas, volume 1: magia e técnica, arte e política. São Paulo, Brasiliense, 1994.

HANSEN, Miriam Bratu. “Benjamin’s Aura”. Critical Inquiry, v. 34, n. 2, 2008.

RESENDE, Ricardo. “O mar de Bispo de Rosario”. In: Bispo do Rosario: eu vim – aparição, impregnação e impacto. São Paulo: Itaú Cultural, 2023.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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