O Que é o Poder?

Um dom que é dado a certa pessoa e a ela só cabe aceitar sua predestinação; ou um objetivo que se autoexplica, único percurso coerente?

“Com grandes poderes vem grandes responsabilidades” é uma das frases mais conhecidas dentro do universo dos quadrinhos. É como um mote de Homem Aranha, e quem tiver visto os filmes certamente a terá ouvido. Ela resume bem a ideologia que molda as ações de todo herói americano. Por algum acaso ou acidente, este herói recebe grande poder — ou é posto em determinada posição e momento em que ele é o único capaz de ter uma atitude. Cabe ao indivíduo que se encontra nessa situação ‘aceitar’ sua predestinação. Ele não poderá viver certas partes da vida cotidiana e eventualmente vai colocar seus entes queridos em perigo. Esse recebimento de poder ganha um cárater de maldição: ele é uma ameaça para alguns e a única alternativa para muitos outros, e acredita que negligenciar suas possibilidades é de tal maneira errado que prefere perder a própria paz por isso. Aqui se poderia também especular sobre a cultura americana e suas relações com o dito, mas não será nosso caminho.

Também se poderia afirmar que a estrutura de novos poderes/perda de ‘paz’ seja análoga ao momento de vida dos leitores de HQ: crianças e adolescentes. Durante o crescimento, é o que ocorre, não? Ganhamos possibilidades, nos tornamos responsáveis por certas coisas e depois não podemos mais nos livrar de tudo isso. Mas também não será o nosso caminho.

Compare agora o que foi dito com os animes. O herói geralmente não recebe seu poder por motivo algum. Ele tem um potencial e está claro que poderia ser muito mais poderoso. E ir cada vez mais longe é muitas vezes um objetivo em si, não ligado à luta contra algum vilão. Ele se torna melhor e cada vez melhor porque não pode encarar a vida de outra forma. Não é seu único objetivo o de salvar pessoas, as histórias incluem variantes, diferentemente das HQs americanas. O conflito tem um valor em si. Um herói raramente se perguntará sobre o motivo de sua luta, porque a própria luta é o motivo. Uma decorrência disso é que, algumas vezes, entre herói e vilão se estabelece uma relação de respeito mútuo — são dois indivíduos que chegaram muito longe e que agora põem tudo em jogo. Um justifica o esforço do outro por lhe dar um desafio à altura. Nas histórias americanas, essa mesma relação será sempre de ódio e repulsão, mesmo que às vezes herói e vilão se “completem”, um garantindo que o outro exista — como acontece com Batman/Coringa.

Desta forma, enquanto o Homem Aranha recebe seus poderes porque ocorreu de um inseto radioativo mordê-lo, ou Bruce Banner se torne o Hulk por uma explosão, ou o Super-Homem ganhe múltiplos poderes apenas por mudar de planeta, ou o Quarteto Fantástico só existe pela razão de que uma expedição espacial deu errado — enquanto isso, em Dragon Ball, o herói, Goku, tem força sobre-humana, sim, mas nada realmente superior, e seu objetivo é o de ser mais e mais forte. Enquanto o Batman simplesmente combate o Coringa, Yusuke, de Yu Yu Hakusho, tira prazer das batalhas que lhe desafiam.

Com que valores isto dialoga? O quanto disso pode a criança que assiste absorver, o quanto das ideias de sua própria sociedade são próximas disso?

Sofra pela força

Dentro desse contexto dos animes, existe a característica particular de que muitas vezes é o o sofrimento um meio de conquistar aquela superação de poder, aquela evolução. Se fomos nos lembrar do conceito budista de “toda dor é desejo de não sentir dor”, estamos aqui além dele, se expor à dor é se tornar maior do que ela. Para vencer uma batalha, Yusuke, citado acima, se lança contra uma espécie de ataque cortante, uma ventania que feria feito navalha — cruza os braços e se joga suicida, atravessa aquilo e destarte vence. Em outro episódio, o mesmo personagem receberá o último ensinamento de sua mestre, a passagem da força que ela porta em seu corpo para o dele. Uma esfera de energia entra em seu corpo e ele passa horas sofrendo, como que agonizando no chão, e esse processo continua até que ele passa a ser dono daquele poder. Através da dor, novamente.

Há outros exemplos. Em Cavaleiros do Zodíaco, o meio pelo qual as armaduras destruídas em batalha são reconstruídas é pelo sacrifício de sangue. Corte o pulso e deixe que escorra sobre o metal. Ela se reconstruirá mais forte, mais resistente, mais viva. Em Dragon Ball, Goku, o herói, se submete a treinar em gravidade mais intensa que a nossa, de modo que os movimentos em ambiente normal fossem tão mais fáceis que ele seria imensamente veloz.

Nesses casos, mesmo que sempre haja um passo adiante, determinando uma busca sem fim, isso nunca adquire um cárater de maldição, como acima.

O que é o poder?

Assim sendo, as diferenças entre esses dois modos de encarar o poder ficam claras. Ambas vão determinar o indivíduo, como afirmado, de forma diferente: a primeira lhe dirá: você já tem um poder considerável e, por isso mesmo, não pode negar sua posição, não pode fugir dela. A segunda dirá: você pode ter grande poder, mas precisa de esforço e de conflito.

Não se pode dizer, no entanto, que essa divisão seja tão estrita quanto demos a entender. Se observamos caso a caso, veremos variações na “adesão” a determinada ideologia. Seguindo pelo oposto poderíamos também cair no equívoco de crer em origens distintas para os dois tipos de HQ, pensar que se desenvolveram sem interferência. Mas o nascimento do mangá tem já lá a influência americana, nos tempos de ocupação do Japão. Mais acertado seria ver que existem duas tendências de compreensão do poder e tentar comprovar ou negar a sua existência de acordo com os fatos reais. Assim como tentar enxergar se há em nós mesmos crenças deste tipo ou de outro tipo. Para você, o que é o poder?

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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