O que é ler um livro?

“Não se lê livro apenas lendo livro. A discussão de ideias é livre e não depende de leituras obrigatórias e vestibulares e carteiras de habilitação”

“Entre o livro não-lido e o livro lido, existe uma gradação de formas com que se entra em contato com a história”. Essa é uma frase de Pierre Bayard, autor do livro Como Falar dos Livros que Não Lemos, destaque da Flip 2008. Relembramos essas ideias do autor para ampliá-las de várias formas. Vamos falar de imposições culturais, erudição forçada e a ignorância do modo pelo qual entramos em contato com livros — e, por extensão, com arte e conhecimento. O modelo que temos privilegia certa hipocrisia cultural, o fingimento acadêmico? Essa ideia será defendida por um artigo sobre o ‘preço’ de um currículo Lattes, E mais, mais ainda: alguns textos que escrevo, sob influência bayardiana, sobre autores que não conheço. E a abertura à sua participação. Escreva sobre autores que não tenha lido. Que “não conheça”. Quem disse que não conhece?

Em Como Falar dos Livros que Não Lemos, Bayard estabelece há diversos tipos de leitura, de aproximações com a obra — não somente a canônica, que é ler o livro de cabo à rabo. O próprio conceito de ter lido uma obra, para ele, é complicado, já que a cultura particular de um leitor é às vezes diametralmente oposta a de outro (como ele demonstrará pela leitura de Hamlet por um tribo africana) e, enquanto lemos e após lermos, o esquecimento age, de tal forma que toda leitura acaba por ser um conjunto de retalhos. Desse jeito, mesmo a leitura de algumas folhas, ou aquele autor que conhecemos por meio da palestra de alguém ou por motivo de que suas ideias são muito comuns a qualquer um em nossa sociedade — eles são todos autores lidos por nós. Então, ele coloca novos meios de classificar livros: livro lido, opinião positiva. Livro folheado, opinião negativa. Livro não-lido, opinião positiva.

Quem Mexeu no Meu Queijo, para mim, é um livro-folheado, opinião média. A Ilíada e a Odisséia são livros não-lidos, opinião superpositiva (++, na simbologia do livro). Bayard é claro e muitas vezes irônico, o que pode ser levar a compreensão de suas ideias como piada. Mas não são. Aqui há uma conceituação de leitura e contato com a arte que se configura tal como convívio com ideias. Desconsidera que livros incluem prazer, identificação, trabalho linguístico e estético, detalhes mínimos que fazem o valor de uma obra, complexidades que nenhum resumo ou palestra seria capaz de abranger. Mas nesse patamar de convívio, como eu chamei, é coerente que nossas fontes de conhecimento sobre literatura sejam muitas, tão fragmentárias e complementares como ele descreve. O conhecimento dessas ideias é posto como urgente, nos bloqueia acesso à empregos, nos aproxima ou opõe às pessoas.

É nesse sentido que pode haver um livro que explica como falar dos livros que não lemos. No momento em que isso se torna uma ferramenta social obrigatória e há enorme pressão para que dominemos todos os assuntos, fingir é uma resposta. Analisando, essa obrigação é apenas a exigência de qualquer conversa, e, segundo Bayard, envolverá interlocutores tão descompromissados quanto desinformados, tratando de superficialidades e ideias rasas por motivos de convívio social. Bayard pergunta: alguém acha plausível que qualquer um tenha lido todos os livros que aparecem na bibliografia de um mestrado ou doutorado? É possível supor que um professor conheça todos os livros que a infinidade de alunos possa perguntar sobre? Aceitar o inevitável — ninguém lê tudo — e o correto — ninguém precisa ler tudo — e o imprevisto — temos múltiplas formas de alcançar as ideias e a arte — são antídotos contra uma postura intelectual obcessiva que geraria não erudição, mas pavonice.

Prova disso é um texto do início do ano, “Quanto custa rechear seu Currículo Lattes, escrito por Marcelo Spalding e publicado no Digestivo Cultural. Spalding fala sobre publicações acadêmica em que um dos critérios para publicação é a assinatura da revista, sobre a falta de discussão e ampliação de conhecimento de congressos em que só os congressistas estão presentes na sala de apresentação de certa categoria de trabalho. “Os críticos dizem que o Lattes transforma todo o esforço intelectual dos pesquisadores em quantidade, em números, simplificando e até ridicularizando uma produção eminentemente qualitativa. Ocorre que no final do Lattes há uma tabela informando quantos artigos foram publicados, quantos livros ou capítulos de livros, de quantos congressos o fulano participou. A novidade é que um bom Lattes tem preço”. Não se trata daquela mesma superficialidade? A exigência que se faz é a exigência de uma aparência de erudição.

Spalding diz: “São essas pessoas com Lattes recheados que irão lecionar nas universidades federais e particulares (e há aos borbotões), são elas que irão formar os futuros médicos, advogados, jornalistas, professores? E quais os valores que essa geração acadêmica tem a passar? O valor do “quanto mais, melhor”, do “quem pode mais, chora menos”? E essa realidade, todos sabem, se reflete desde o Ensino Fundamental, onde as creches e escolas públicas são cada vez mais abandonadas e as particulares proliferam e profissionalizam-se”.

Concorda com tudo isso? Discorda? Sabe de outros exemplos na nossa educação e cultura em que se veja que é mais precioso mostrar conhecimento do que realmente se envolver de forma verídica com ele? Vamos conversando. E vamos criando. Há algum tempo, produzi textos a respeito da obra de Marcel Proust e Nelson Rodrigues — sem tê-los lidos. Baseei o que disse em informações que me vieram da mídia e de expectativas em relação aos livros. Não são essas, também, formas de ler um livro? Os dois textos estão para ser lidos pelos links. Escreva os seus próprios. Nós publicaremos nessa mesma página. A discussão de ideias é livre e não depende de leituras obrigatórias e vestibulares e carteiras de habilitação.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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