O Pobre na Literatura Brasileira

“Bueno rompeu o círculo dos ‘principais’ autores, sempre confundidos com os ‘melhores’, para voltar a sua atenção para escritores que nem sempre se destacaram tanto como deveriam”

I

Nenhuma década no século XX foi tão produtiva como a de 1930 para o romance brasileiro. O leitor pode, a princípio, contestar observação tão peremptória, mas, com certeza, haverá de concordar com ela se vier a ler Uma História do Romance de 30, de Luís Bueno (São Paulo/Campinas; Edusp/Editora Unicamp, 2006). Obra de mais de 700 páginas, sua extensão é justificada: ao contrário de De Anchieta a Euclides – Breve História da Literatura Brasileira (Rio de Janeiro, Livraria José Olympio Editora, 1977), de José Guilherme Merquior (1941-1991), que adotou o critério da alta seletividade para compor o que pretendia constituir um panorama dos movimentos literários no País, Uma História do Romance de 30 parte de uma leitura exaustiva de autores que apareceram na arena literária naquela década, ainda que sem muito destaque.

Ao agir assim, Bueno rompeu o círculo dos “principais” autores, sempre confundidos com os “melhores”, para voltar a sua atenção para escritores que nem sempre se destacaram tanto como deveriam, muitas vezes, em razão da própria incompreensão de seus contemporâneos. Além disso, não são poucos os autores que, embora de boa qualidade, mostram-se avessos a participar de confrarias ou mesmo promover o lançamento de seus livros, enfim, fazer a chamada política literária.

Hoje mesmo, boa parte da literatura brasileira da melhor qualidade não está saindo pelas editoras mais conhecidas, aquelas que dispõem de esquemas para “forçar”, de uma forma ou de outra, as páginas dos grandes jornais e revistas semanais a dedicar espaço a resenhas de seus livros. Por isso, um historiador literário que, daqui a 50 anos, pretender escrever uma aprofundada história da literatura brasileira do começo do século XXI terá muitas dificuldades para rastrear e garimpar os bons romances ou livros de contos destes dias, pois cometerá grandes injustiças, se se limitar a reproduzir os conceitos que vier a ler nas coleções dos grandes jornais do eixo Rio-São Paulo. Ou se se deixar levar pelas aparências, vasculhando catálogos apenas das grandes editoras.

De fato, em todas as décadas, há preciosidades que, praticamente, ficaram relegadas ao limbo da história literária, ou porque seus autores não dispunham de acesso às grandes editoras, ou porque suas obras tiveram a má sorte de sair por editoras de fundo de quintal, dessas que nunca pagam os direitos do autor – que ainda hoje não são tão raras assim. Ou porque – o que é mais comum – não encontraram críticos à altura que pudessem reconhecer sua importância e qualidade.

Reverter esse status quo é o verdadeiro sentido da história literária, até porque esta constitui uma atividade que não se justifica sem abundantes pesquisas de arquivo. O oposto disso é a leviana repetição de observações que críticos fizeram à época do lançamento, às vezes, levados por algum sentimento menor, pessoal, tanto para elogiar ou desqualificar determinada obra. Por isso, é preciso coragem e muita disposição para romper o hábito de se fazer história literária a partir dos “melhores” já consagrados pela crítica porque, afinal, é muito fácil e cômodo repetir idéias já consagradas sobre os mesmos autores.

Foi contra isso que se levantou Luís Bueno e o fez muito bem porque, afinal, como diz, “antes de ler efetivamente é impossível saber se, para determinado trabalho de história literária, vale a pena ou não ler esta ou aquela obra que, para alguém que trabalhou em outra perspectiva, anos antes, ficou claro que não valia”.

II

Se fosse seguir a tendência natural, tal como Flora Süssekind em Tal Brasil, Qual Romance (Rio de Janeiro, Achiamé, 1984), Bueno ter-se-ia limitado a estudar aqueles que são considerados os “grandes autores” da década, como Jorge Amado (1912-2001), José Lins do Rego (1901-1957) e Graciliano Ramos (1892-1953). Mas não. Dentro dos critérios mais amplos de Bueno, desses, apenas Graciliano Ramos poderia ser incluído entre aqueles que produziram os textos mais bem acabados do período, ao lado de Cornélio Pena (1896-1958), Dyonélio Machado (1895-1985) e Cyro dos Anjos (1906-1994), aos quais o estudioso dedicou a parte final de seu livro.

Embora a década de 30 seja marcadamente a época do romance social, de cunho neonaturalista, com o aparecimento do pobre na literatura brasileira, Bueno também detectou outra vertente de que pouco se diz, a chamada tendência intimista ou psicológica, que, de certa maneira, antecipou e preparou o terreno para o aparecimento de Clarice Lispector (1920-1977).

Bueno observa que a tendência dominante é considerar o romance de 30 como um desdobramento do Modernismo de 22, uma segunda fase da literatura surgida na Semana de Arte Moderna. E acrescenta que coube ao crítico José Luiz Lafetá (1946-1996) em 1930: A Crítica e o Modernismo (São Paulo, Duas Cidades/Editora 34, 2ªed., 2000) estabelecer o modelo que vê o romance de 30 como parte do movimento modernista.

Mas este não é um ponto-de-vista pacífico. O poeta Lêdo Ivo e outros intelectuais oriundos do Nordeste nunca concordaram com essa argumentação, vendo nisso mais um tour de force da intelectualidade paulista ou paulistana – especialmente, professores da Universidade de São Paulo (USP), com Antonio Candido à frente – para dar à Semana da Arte Moderna de 1922 uma importância nacional maior do que realmente teve.

Bueno também se alinha nessa frente que prefere não atribuir tanta importância ao Modernismo, lamentando ainda que Lafetá se tenha deixado levado por certo part pris, ao condenar ao limbo da história literária um autor do quilate de Octávio de Faria (1908-1980), que, por ter sido um inveterado direitista e grande teórico do fascismo no Brasil, teria sido vítima do preconceito esquerdista. Até porque o texto de Lafetá é oriundo de uma tese defendida na USP em 1973, auge das violações dos direitos humanos cometidas por energúmenos a soldo do regime militar (1964-1985), o que, provavelmente, deve ter pesado no estado de espírito do estudioso.

III

Um grande romance esquecido, mas exumado por Bueno, é Salgueiro, segundo romance de Lúcio Cardoso (1913-1968), publicado em 1935, texto denso e complexo, em que o morro carioca, hoje mais conhecido em razão de sua escola de samba, ganha contornos de protagonista. Nesse romance, o então jovem escritor já mostrava grande talento para a construção psicológica das personagens, técnica que haveria de aprofundar em obras-primas como A luz no subsolo (1936) e Crônica de uma casa assassinada (1959).

Por isso mesmo, era um autor que vendia pouco, até porque o que oferecia era uma técnica refinada, ao contrário do romance mais ligeiro de Jorge Amado, que encontrava maior apelo popular (e o popular vai aqui como força de expressão porque, levando-se em conta os altos índices de analfabetismo no Brasil da década de 1930, como ainda no de hoje, não se pode considerar nenhum escritor como de apelo popular).

Além disso, fazia uma literatura de inspiração católica, que sempre seduziu apenas a classe média, enquanto Amado começava já a se deixar levar pelo marxismo rasteiro e mal-digerido dos teóricos do Partido Comunista, procurando idealizar a malandragem, tendência que influenciou muitas gerações de romancistas e compositores de música popular. Basta lembrar que Capitães de Areia (1937) já alcançou mais de 110 edições e continua a seduzir leitores, o que no Brasil é um marco.

Seja como for, Lúcio Cardoso é um bom exemplo do esquecimento a que foram relegados importantes romancistas da década de 30, como Abguar Bastos (1902-1995), Jorge de Lima (1893-1953), até hoje mais lembrado como poeta por conta do poema “Nega Fulô” e por Invenção de Orfeu (1952), e Cordeiro de Andrade (1910-1943), autor de Cassacos (1934), cuja vida breve o impediu de dar vôos mais altos na literatura.

Outra descoberta que o olhar crítico de Bueno soube detectar é o aparecimento da mulher como personagem do romance brasileiro, a partir de O Quinze (1930), de Rachel de Queiroz (1910-2003). No caso, a mulher pobre, que, a essa época, só aparecia como prostituta ou namorada em romances escritos por homens. Aliás, Jorge Amado iria também idealizar a mulher prostituta em boa parte de seus romances. Diz Bueno que Conceição, a personagem de Rachel de Queiroz em O Quinze, que não queria ser namorada nem prostituta, causou espanto e acabo sendo subvalorizada por críticos como Tristão de Athayde (1893-1983).

IV

Bueno estabelece o período de 1933 a 1936 como o auge do romance social ou proletário (e aqui o termo compreende não só o trabalhador como o lumpen, o mendigo e o marginalizado, ou seja, o pobre em geral), com o aparecimento de Cacau, de Jorge Amado, Serafim Ponte Grande (1933), de Oswald de Andrade (1890-1954), e Os Corumbas (1933), de Amando Fontes (1899-1967), que provocariam grandes debates. É de 1933 também o romance Parque Industrial, de Patrícia Galvão, Pagu (1910-1962), que traz na capa a inscrição “romance proletário”, mas que, publicado em edição particular, não teve muita repercussão.

Publicado pela Ariel, uma editora de prestígio à época, Cacau foi aquele que obteve maior recepção de crítica e público, até porque seria beneficiado, de maneira involuntária, pela estupidez do regime Vargas, cuja polícia proibiria a circulação do livro, o que lhe resultou em forte publicidade gratuita. Escrito sob orientação comunista, o livro trazia muitos defeitos de construção, como a falta de complexidade interior das personagens, como assinalou o crítico Fábio Lucas, mas, dentro de sua intenção doutrinária, alcançaria muito êxito, principalmente em razão de seu veio poético.

E hoje pode ser apontado como um ícone do romance social, com a entronização do pobre na literatura brasileira – no caso específico, o trabalhador rural das plantações de cacau no Sul da Bahia, cuja situação não é muito diferente da maioria dos trabalhadores rurais do Brasil de hoje, muitos deles ainda vítimas do trabalho escravo.

É de lembrar que, a partir de 1937, o “romance proletário” começa a entrar em declínio, com o aparecimento de livros mais bem trabalhados pelo lado psicológico, como Angústia (1936), de Graciliano Ramos, e as estréias de Cornélio Pena e Octavio de Faria, além da cristalização de escritores como Lúcio Cardoso e José Geraldo Vieira (1897-1977).

Autor

  • Doutor em Letras na área de Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (1999), Fernando Pessoa: a Voz de Deus (1997); Bocage – o Perfil Perdido (2003), e Tomás Antônio Gonzaga (2012), entre outros.

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