O Espelho Negro de Goiás

imagem: cena de “Black Museum”, episódio de Black Mirror

(Tem spoilers, e eu não aviso onde)

Um dia desses eu estava a olhar meus livros, quando encontrei um que li recentemente — em 2014, talvez —, do qual eu tinha gostado bastante: A Hora dos Ruminantes, de José Jacinto Veiga, conhecido como José J. Veiga, escritor nascido em Goiás em 1915 e morto no Rio de Janeiro, em 1998. O escritor, eu o descobrira casualmente na estante de meu avô, e havia lido, dele, antes Torvelinho Dia e Noite Sombras de Reis Barbudos. Depois desses, ainda li Os cavalinhos de Platiplanto, A Estranha Máquina Extraviada — ambos de contos — e por fim, Aquele Estranho Mundo de Vasabarros. A retomada d’A Hora dos Ruminantes me despertou a necessidade de voltar à obra e lê-la inteira. Explico.

Agora imagine que esse lugarejo bucólico e estático recebe um acontecimento notável e misterioso, o qual os cidadãos não conseguem explicar, e isso afeta suas vidas de forma irremissível. Digamos, a vinda de viajantes misteriosos a um acampamento afastado. A chegada (por erro postal) de uma máquina enorme, de forma única e funcionamento e aplicação desconhecidos. O advento de uma empresa de razão social ou ramo de atuação não explicados que começa a gerir a cidade de maneira autoritária e arbitrária. Uma punição legal abominada por todos, mas a nós completamente enigmática. Um viajante esotérico que vem à cidade e, dias depois, no céu se avistam luzes e sons nebulosos.

Pense em uma vila no interior do Brasil. Uma dessas cidades perdidas entre Minas e Goiás, onde nada de extravagante acontece; onde todos se conhecem pelo nome e o futuro já é conhecido, porque nada de diferente é esperado. Um lugar que parou no tempo, ou, se não parou, que ao menos demora mais para atinar às metrópoles. 

Esses são os enredos de J. Veiga. A grosso modo, porque em poucas páginas (sua obra toda não deve somar duas mil), o autor consegue colocar milhares de formas de organização social, cultural e tecnológica totalmente… fantásticas! Sim, o lugar da literatura brasileira onde ele é inserido é o realismo fantástico (ou mágico)! E a fantasia dentro da realidade mais absoluta é o que marca as suas histórias, mesmo aquelas mais simples, como de um noivo que visita a noiva toda a noite para jantar (sem levar adiante o caso), o estranhamento é a palavra de ordem do escritor.

E, como vocês já devem ter notado, aqui quero relacionar sua escrita a um ícone cultural de nossos dias, que faz esse escritor merecer ser relido para além da carga política de sua época (A hora é de 1966, dois anos depois do golpe). Black Mirror, a série inglesa de Charlie Brooker, é terrivelmente veigueana sem o seu criador saber, provavelmente (sejamos realistas). Mas antes, vamos lá, o que é o “realismo fantástico”?

A Mágica da Metáfora

De forma bem resumida e grosseira, o que eu digo é que é uma representação da realidade como nós conhecemos, marcada por situações e personagens “fantásticos” — no sentido de “fantasioso, esotérico, sobrenatural”. Não se trata propriamente de uma história de terror ou de ficção científica, já que o fantástico, aqui, está a cargo da metáfora, da alegoria, do eufemismo. Além disso, ele é aceito pelas personagens como parte daquilo tudo que é sua vida.

O gênero consiste basicamente nos cidadãos de Antares (do Érico Veríssimo) verem os seus mortos saindo do cemitério para protestar, ou na cidade de Macondo (do Cem Anos de Solidão, de Gabriel Garcia Marquez) sumindo nas areias do tempo e ninguém de fora da cidade falar qualquer coisa. Surgiu, entre uma controvérsia e outra, com o Pedro Páramo, do mexicano Juan Rulfo, em 1955, ou com o Jorge Luís Borges desde sempre e, nos anos 1960 a 1980, principalmente, virou o recurso literário de muitos escritores da América Latina contra as ditaduras nacionais sob as quais viviam.

No Brasil, além do Veiga, há quem insira o Murilo Rubião, o Walter Campos de Carvalho, o Dias Gomes nessa tendência. Vale ressaltar que o surrealismo seria a fonte original do realismo fantástico, porém, entre um e outro há diferenças estéticas, temáticas e estruturais. Ou não. São muitas perspectivas críticas, e os textos teóricos de Borges, Cortazar, Angel Rama e Antonio Candido francamente são lenha na fogueira e citá-los aqui ia fazer eu me enrolar todo. Deixo o problema a vocês, porque aqui eu quero falar do J. Veiga como o nosso escritor de Black Mirror!

A Metáfora no Sertão

Alguém vai ler o subtítulo acima e vai dizer: falou “sertão” num artigo de literatura… Lá vem o Guimarães Rosa. Bem… Você acertou, lá vem ele. Se nós pegarmos livros como Sagarana ou Primeiras Estórias, o elemento fantasioso inexplicável alegórico-metafórico já está lá. “Um moço muito branco” é sobre o que? “O burrinho pedrês” e seu senso de sobrevivência? “Corpo fechado” e sua margem à dúvida? Guimarães já flerta com o realismo mágico quando ele usa esses elementos de fantasia tão típicos da narrativa oral tradicional brasileira.

Ali tem alguma coisa de falar sobre a realidade pela metáfora e pela alegoria inseridas em elementos estranhos — o que, nos livros do J. Veiga, é quase-regra. Porém, em Guimarães, não entendo esse traço estético como o centro da narrativa; penso que lá o sobrenatural surge como um símbolo de certo juízo de valor e moral, algo herdado de um profundo conhecimento das fábulas e literatura medieval.

J. Veiga, por sua vez, é um autor que aparece depois de João, que acompanha um processo de modernização (no sentido de máquinas, tecnologia e também direitos civis) do Brasil e do mundo. Ele foi repórter da BBC durante a 2ª Guerra, e seu primeiro livro surge em 1955, ele com 45 anos. Ou seja, é de um período posterior ao da obra de Guimarães. Não bastava que ele falasse do sertanejo goiano-mineiro, porque aquele homem e aquele mundo já eram diferentes.

“Duas moças trocando afetos, começando um relacionamento… Algo banal e corriqueiro… até que a cena começa a se repetir em outras épocas, tendo as duas a mesma aparência e, uma delas, um inexplicável impedimento”| imagem: San Junipero”, episódio de Black Mirror

Sua literatura, entendo eu por minha pouca leitura de seus livros, é essencialmente a literatura do embate. Não só político. O lado político existe lá, e n’A Hora dos Ruminantes isso é óbvio, se nós pensamos na imagem do opressor, externo a um microcosmo estruturado, que chega a esse lugar e o transforma à sua revelia. Isso é o governo militar operando o Brasil. Mas ali tem mais do que a política.

O elemento sertanejo de J. Veiga é a metáfora da tradição, e não a tradição brasileira, centro-oeste, oligárquica. A tradição ocidental da cidade provinciana em oposição a metrópole (e quanto a isso ele deve ter lido o Balzac). Na metrópole, na capital propriamente, é onde as coisas acontecem, as tecnologias avançam, o mundo evolui, as esposas se divorciam, as ruas são tomadas por transportes sem tração animal. Esse é o mundo de Manairema, cidade de Torvelinho Dia e Noite, e de Taitara, de Sombras de Reis Barbudos. O mundo de nós e eles.

O elemento fantástico, por sua vez, é o que penso aproximar esse escritor de Black Mirror. Partindo de um comum, narrado de forma coloquial, intimista e cotidiano, José nos dá o estranho inexplicável. Ele nos coloca no olhar daquele homem interiorano que vê um mundo se transformar e ele não sabe o que é aquilo, como agir com aquilo, entender o que é aquilo, principalmente.

Por exemplo: os visitantes d’A Hora dos Ruminantes. Não sabemos o que eles querem, quem eles são, o que fazem, só sabemos que eles exigem que o carreteiro da cidade trabalhe para eles levando areia todos os dias. E quando eles vão surgem os cães, sem sabermos de onde, agressivos, por todas as ruas da cidade; e por fim, os ruminantes, os bois que fazem o trânsito humano impossível. O cotidiano é tomado por um elemento conhecido, entretanto, bem diferente do que se é esperado dele; a realidade começa a sofrer transformações que parecem fantásticas ao indivíduo da província. Seu mundo local e tradicional começa a ruir com as inovações sociais e tecnológicas vindas da capital e essa ignorância no trato com o novo é a verdadeira contestação do que é, agora, real e inventado.

À cidade de Sombras… de repente chega a Companhia Melhoramentos de Taitara, e os citadinos começam a ter sua liberdade e seus hábitos alterados pela imposição desse grupo hermético do qual nenhum detalhe conhecemos. Até que não sobra mais nenhuma ação possível, senão sair voando. O fantástico é um símbolo da novidade tecnológica e da implicação social dessa, como em Black Mirror, com a diferença que, na série, o fantástico fica mais naturalizado pelo acordo tácito que a série impõe com tecnologias de um futuro próximo. É, entretanto, o fantástico, uma vez que tais processos tecnológicos aparecem como uma realidade dada.

Não adianta contestarmos que é impossível surgir no céu sombras luminosas que se assemelham a uma briga (Torvelinho…) ou que a “transferência de consciências” é metafisicamente impossível (Black Mirror), porque o objetivo em ambos os casos é discorrer acerca da inovação já consolidada. E como ela pode afetar aspectos tão primordiais da dita “alma” humana, como ética, alteridade ou compaixão.

No conto “O Estranho Caso da Máquina Extraviada”, os elementos de Black Mirror são gritantes; um Black Mirror às avessas, uma vez que aqui o suspense é, justamente, a máquina existir e nenhum morador da cidade saber qualquer coisa dela. Ou seja, é um mundo novo que surge em um mundo antigo, um mundo em movimento em um mundo parado… sem exatamente afetá-lo, por ser tão novo em meio a um contexto antigo. É uma afetação de realidade pela sua não afetação; é o estranhamento (uma máquina misteriosa, sem função, forma ou origem clara) causado por um elemento banal (um extravio postal).

O episódio “San Junipero”, de Black Mirror, segue nesse sentido quando apresenta uma situação comum — nos anos 1980, duas moças trocando afetos, começando um relacionamento… Algo comum (talvez cause um pouco de estranhamento em algumas pessoas, pela parte da homoafetividade), banal e corriqueiro… até que a cena começa a se repetir em outras épocas, tendo as duas a mesma aparência e, uma delas, um inexplicável impedimento.

J. Veiga, porém, tem um mérito que em Black Mirror encontra paralelos, talvez, só em “Black Museum” e “White Christmas”, encontrado em Aquele Mundo de Vasabarros, um romance no qual nós conhecemos uma realidade sutilmente similar a nossa.

Sutilmente, porque estamos na cidade-estado de Vasabarros, geograficamente inserida… em algum lugar do mundo. A língua é o português… com gírias e expressões tanto incomuns como inventadas por J. Veiga. A estrutura política é um complexo feudalismo monárquico burocrático e parlamentarista. E as tecnologias e hábitos culturais são o principal elemento de fantasia. É em Aquele Mundo… que há a punição que aterroriza a população, e é empregada pelo estado, mas que nos é totalmente incompreensível, por não ser descrita. Não sabemos o período em que se passa a história, suas tecnologias são descritas ora como provenientes da Idade Média, ora do século XX. A ciência é tanto bioquímica quanto popular (de rezadeiras, queima de ervas e imersões em águas).

J. Veiga cria um mundo possível e crível dando a distância linguística e semântica necessária para que ele se torne fantasioso e imaginado. Um romance que pode ser lido como uma alegoria platônica para falar do poder político, do extremismo ideológico, de ética e ciência… Precisamente como são os episódios citados de Black Mirror.

É por sua aparentemente simples, coloquial, quase adolescente, construção textual que J. Veiga discorre sobre a transição de um mundo fragmentado em uma aldeia global e é pela fantasia que ele aponta as mudanças tecnológicas e sociais. Um trabalho que podemos ver nos chistosos, dramáticos e tensos episódios de Black Mirror. Assim, encerro minha pequena semente de análise multi-semiótica. Disse que José J. Veiga é um autor que, lido hoje, nos ajudaria imensamente a entender sobre o mundo tecnológico em que vivemos, e que sua construção literária nesse sentido aproxima sua escrita do universo crível do Black Mirror. Um escritor que, na sua redação que embate o local e o global, embate, também, o antigo e o novo em termos das mais variadas ordens — da tecnológica principalmente. Fios soltos, lacunas e imprecisões vão existir: apontem-me quais são essas. Enfim, trouxe alguns livros e trechos porque se fosse pra falar de tudo, acho que virava uma tese de doutorado (fica a dica).

Autor

  • Autor dos livros de poesia Nada (Patuá, 2019) e Hinário Ateu (Urutau, 2020). Já publicou em revistas como Mallarmargens, 7Faces, Zunái e publica com regularidade nas revistas Úrsula e Subversa.

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