Micheliny Verunschk: “Me sinto impelida a contar as histórias dos despossuídos, daqueles a quem tudo foi negado”

Muito se fala na volta dos extremismos, dos preconceitos sociais e culturais, no renascimento do ultranacionalismo, da violência institucional… Por vezes, parece que não aconteceu nenhum progresso nos últimos 50 anos, e mais, que hoje, na verdade, estamos regredindo. Diante desse panorama, o que é a literatura? O que ela faz diante de tudo isso?

Talvez escrever sobre o horror, sobre a sociedade em ruptura, sobre a violência física, sexual e psicológica seja só uma aposta em uma solução. Mas é uma aposta que encontramos nos livros de Micheliny “Onça” Verunschk, grande escritora brasileira, autora da pungente Trilogia Infernal lançada entre 2016 e 2018 pela editora Patuá. Ela conversou com Úrsula a respeito das suas perspectivas criativas.

Nascida em Pernambuco, doutora em semiótica pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, lançou também o arrebatador livro de poemas Geografia íntima do deserto (Coleção Alguidar, 2003) e ganhou o Prêmio São Paulo de Literatura em 2015 com o romance Nossa Teresa – Vida e morte de uma santa suicida (Patuá, 2015). Falemos da trilogia e depois sigamos à entrevista (atenção: pode haver spoilers).

A maior preocupação quando conto uma história é com o outro. O personagem não é meu, no sentido de posse, precisa de uma voz e de uma vida que só a narrativa ficcional pode garantir

A primeira obra de Trilogia InfernalAqui no coração do inferno (Patuá, 2016). A da menina Laura, crescida em algum sertão brasileiro meio abandonado pelo progresso, filha de um delegado corrupto e agressivo, adúltero e violento com a segunda esposa, recebe um inusitado trabalho. Manter à salvo um menino, acusado de canibalismo, de uma turba raivosa. Inusitado, falei eu: ora, que senso de ética e dever é esse, vindo de um homem sem ética?

A segunda: O peso do coração de um homem (Patuá, 2017). A história do canibal do primeiro romance, Cristóvão e sua família sofrida. Sertanejos “fortes”, como teria dito Euclides, passam por privações, sofrem abusos psicológicos, sofrem pela falta de qualquer apoio social em uma sociedade rural esquecida pelo resto do Brasil, até que acontece o crime.

A terceira: O amor, esse obstáculo (Patuá, 2017). Agora, lemos a história da investigação da menina, já adulta, e suas investigações sobre sua mãe, desaparecida nos anos de chumbo, bem como sobre seu pai, torturador homicida. Até que Laura cruza com Cristóvão e, então, novas reflexões e elucidações surgem.

Livros sobre a violência institucional, sobre o descaso, sobre a repressão social e sexual… O tom de Onça, entre a memória e a reminiscência, é notável. Sua habilidade cinematográfica (meio Glauber meio Leone) de construir o enredo é única. Onça lida com a narrativa como se conduzisse um tabuleiro de xadrez: coloca cada cena, cada fala, cada palavra pensando justamente na ambivalência do texto. Seu relato sobre as violências é poético, ao mesmo tempo em que é direto. A poética do horror, a poética do não-belo, se assim podemos dizer, é o centro de sua criação. Conversemos com a autora.

De onde surgiu sua necessidade de escrever? Quem é a escritora Micheliny Onça Verunschk?

Talvez do fato de que não sei fazer outra coisa, que escrever é meu “estar-no mundo”, talvez porque me sinta impelida a dar voz, a contar as histórias dos despossuídos, daqueles a quem tudo foi negado em algum momento. É a “experiência com as coisas reais” que move a minha escrita.

De onde surgiu a ideia dos romances da Trilogia Infernal? Você procurou algum caso específico ou compilou os diversos que compõem nossa infeliz crônica policial?

A Trilogia Infernal, que vejo como um único romance disposto em três grandes capítulos, tem várias origens: a mais remota é um sonho de meados dos anos 1990, em que sonhei a cena que abre O peso do coração de um homem, na qual uma mulher e seu bando invadem o sítio de uma família em busca de duas crianças. Ela está colocada na narrativa ficcional quase como surgiu no espaço onírico. Outra origem está num episódio da minha vida familiar. Meu pai era militar, foi delegado como o pai da personagem e, como ele, levou para casa um adolescente que cometeu um crime. Esse rapaz havia assassinado o pai a golpes de foice para defender a mãe que estava sendo espancada. Meu pai, compadecido desse garoto, que estava visivelmente em choque pelo que havia feito, deixou que ele ficasse em nossa casa durante a tarde esperando um carro que o levasse para a cidade vizinha, para o exame de corpo de delito. Uma terceira origem está em uma viagem que fiz ao Rio de Janeiro em 2010/2011 e me chamaram a atenção faixas de apoio à criação da Comissão da Verdade. Essas origens, embora desvelem uma relação íntima, mesmo familiar, com os temas da trilogia, no entanto não dialogam com ela como uma criação memorialista ou autobiográfica e nem mesmo de auto-ficção. Por exemplo, meu pai, embora militar num período ditatorial, era um homem que se colocava à esquerda e para quem a ditadura e o militarismo tiveram uma ação brutal. E embora  Laura, minha personagem, divida esse dado comigo e o fato de ser adolescente nos anos 1980, não somos a mesma figura em espelho. Trata-se de um repertório emocional e afetivo que tenho e do qual faço uso como matéria-prima para a obra de ficção.

Por que o espaço do deserto/desértico surge tanto em suas obras?

Para esta pergunta serve um tanto o que digo na pergunta anterior, mas no lugar de deserto prefiro outro: o sertão. Veja bem, sertão não é sinônimo de deserto, muito embora o senso comum possa, muitas vezes, colar uma paisagem à outra. O sertão é imensidão e profundidade e está intrinsecamente ligado à história dos territórios que compõem o Brasil e à história dos muitos povos que o habitam. O sertão está dentro e fora de nós. E é todo lugar. Não sou eu que digo isso, apenas repito, porque faz mesmo muito sentido.

Qual é a maior preocupação na hora de narrar episódios de extrema violência? Como fazê-lo sem cair no tom grotesco de Datenas, Resendes e afins?

A maior preocupação quando conto uma história é com o outro. O personagem não é meu, no sentido de posse, é alguém que precisa de uma voz e de uma vida que só a narrativa ficcional pode garantir. Assim, esses personagens são humanos em suas histórias, fraquezas, heroísmos e covardias e, por o serem, merecem respeito. O que a mídia que pinga sangue faz é desumanizar os indivíduos. O grotesco de Datena e outros é justamente o leilão da dor alheia em nome de alguns traços de audiência. Aquilo é a morte da linguagem, da civilidade e, sim, da humanidade. Prefiro não assistir.

Nos romances da Trilogia a sexualidade e a violência se aproximam em diversos momentos, seja como prática ou repressão. Quais são as interações e relações desses dois elementos?

O Brasil é violento, reprimido de partida desde a colonização. A imagem da sambista nua no carnaval carioca é um flash de uma licenciosidade e luxúria em espaços de permissão: os três dias de carnaval, a avenida ou o sambódromo. Ali tudo é experimento controlado. Na prática temos espaços de vigilância e repressão dos corpos em vários níveis. No cotidiano, a liberdade dos corpos só pode se dar “por baixo dos panos”. Isso explica um tanto também o adestramento das vontades pelo capitalismo bárbaro, pelas religiões mais preocupadas com o diabo do que com as condições de vida dos indivíduos, com a comoção por portas de vidro de instituições bancárias depredadas em manifestações etc. Não é possível falar de Brasil sem falar nessas instâncias. Não é possível escrever sobre a ascensão do fascismo hoje, por exemplo, sem tocar nesses pontos sensíveis.

De onde surgiu o projeto gráfico da obra? Em que medida ele se relaciona ao contexto dos romances?

O projeto gráfico é o do artista plástico Leonardo Mathias. Quando enviei os romances para a Patuá enviei também as referências e ideias que tinha para a capa e para o projeto gráfico. De um lado, os filmes de faroeste spaghetti, os cartazes de procurados do oeste americano, figuras como Calamity Jane etc; de outro, revistas em quadrinhos como Tex e mesmo filmes como Kill Bill. Discutimos, eu, o Eduardo Lacerda [editor da Patuá] bastante esses projetos e creio que Leonardo captou com muita sensibilidade o espírito dos livros.

Por fim, que autores novos você anda a ler? Que autores de qualquer época você está sempre a reler?

Tenho estado muito atenta à produção nacional contemporânea, são tantos nomes que há sempre o risco de se esquecer alguém, mas atualmente estou relendo Torto Arado, de Itamar Vieira Júnior, que li no original, e vou ler na sequência Cartas à Rainha Louca, de Maria Valéria Rezende. Volto sempre a Osman Lins, Graciliano Ramos, Clarice Lispector. Leio muito poesia e atualmente estou estudando as poéticas de Bob Dylan e Patti Smith, além de poetas brasileiros de minha geração. Ah, e ensaios, um dos meus gêneros favoritos. Leio muito, mas menos do que poderia.

 

Autor

  • Autor dos livros de poesia Nada (Patuá, 2019) e Hinário Ateu (Urutau, 2020). Já publicou em revistas como Mallarmargens, 7Faces, Zunái e publica com regularidade nas revistas Úrsula e Subversa.

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