Judd Apatow e os Estados Unidos pós-Friends

The American Dream — Reloaded

Visualizemos a cena: seis amigos se encontram para um happy hour em uma cafeteria. São jovens entre 25 e 30 anos, com empregos que, se não são os que eles idealizaram, são ao menos uma etapa até um trabalho “perfeito”; alguns dividem um apartamento alugado com os amigos, outros têm sua própria casa e, é quase certo, nenhum deles está casado — são solteiros ou divorciados e sem filhos. Nenhum é negro e a cidade pode ser New York (escrito em inglês mesmo, para dar uma falsa ideia de cultura urbana transnacional). Estou descrevendo, como alguns de você puderam imaginar, o seriado Friends.

A série que, por dez anos, foi o programa que mais cativou os americanos (e os brasileiros) é o mais perfeito retrato dos jovens de classe média branca (a etnia nesse caso é, como tratarei brevemente abaixo, muito importante) norte-americana. São em sua maioria, moradores de grandes centros urbanos que, livres do pessimismo e do pavor quanto a um possível confronto nuclear — sentimentos que evanescem com o fim da polarização entre Estados Unidos e União Soviética — , enxergam o mundo como um celeiro de oportunidades sociais e econômicas.

Almejam a uma nova versão do American Dream: não se trata propriamente de ter uma casa com quintal, uma esposa esperando o marido com o jantar pronto e uma ou duas crianças sorridentes e sardentas (como é o caso em diversas sitcoms, destacando aqui Tudo em Família ou Dias Felizes).

São os yuppies, acrônimo de young urban professional (jovem profissional urbano), uma cultura que, mesmo um pouco estereotipada, é, de maneira geral, como um contínuo episódio de Friends. Esses jovens moram em cidades grandes, querem se casar e ter o emprego ideal, sem dúvida, mas, acima de qualquer outra coisa, querem viver o seu agora, aproveitar a sua juventude e as possibilidades que sua vida urbana permite, sejam elas relativas a gastronomia, cultura ou relações interpessoais.

Como disse, são jovens quase sempre brancos. Se eu quisesse falar sobre como os jovens negros e latinos viveram esse momento de transição, aí seria um artigo totalmente diferente (e que eu — jamais! — me arriscaria a escrever, primeiramente, porque nunca saberia o que é ser um norte-americano negro, a exemplo das personagens de Spike Lee). Diferente, principalmente pelo principal elemento da cultura norte-americana: o forte liberalismo econômico e social, que permite a segregação velada, desde que sustentada por uma tolerância mútua. Mas séries como Um Maluco no Pedaço, Eu, a Patroa e as Crianças e Todo Mundo Odeia o Chris podem sugerir algo nesse sentido.

Assim, estamos nos anos 1990, em meio a uma sociedade que está caminhando para a utopia do Sonho Americano revisitado e atualizado: explorar os prazeres do agora, desejando um futuro tradicional (família, filhos, cargo de diretoria), porém, colocando esse futuro bem no futuro. No momento, essas personagens não se importam em ter empregos que não são exatamente do seu agrado, porque sabem que, um dia, chegaram lá; se sua condição atual não é a que haviam planejado, seu objetivo de vida é conciliar a maravilha do agora com a busca desse objetivo. Rachel é garçonete, mas quer trabalhar com moda: perfeito — ser garçonete é só uma fase. Ross é divorciado e tem um filho pequeno, mas isso não impede que ele continue tendo namoradas. Joey é um galanteador que não se prende a ninguém, mas — hey! — isso não é um problema quando se é jovem, bonito e feliz.

Penso na letra de Alright, da banda britânica Supergrass, que capta bem o espírito dessa época, apesar da distância geográfica (tradução minha):

Somos jovens, somos ecológicos
Mantemos nossos dentes bons e limpos
Encontramos os amigos, viajamos, estamos bem

Esse é o espírito de Friends e das séries contemporâneas a essa. Esse é o espírito dos anos 1990. Pergunte a algum profissional liberal com 40 ou 50 anos o que ele pensa sobre o governo FHC: provavelmente dirá que foi um governo que investia na iniciativa privada, que permitia aos jovens galgar uma carreira, vencer desafios e ser felizes. Os anos 1990 foram profundamente neoliberais, e o foram, principalmente, porque esse sistema era então necessário. Clinton lá, Fernando Henrique aqui, as economias globais e nacionais passaram a se estabilizar novamente, e, com isso, as pessoas (algumas, que fique bem claro) começaram, efetivamente, a “enriquecer”.

Meu ponto é: os anos 1990 foram caracterizados pelos sitcoms menos por problemas sociais graves, e mais por problemas interpessoais cômicos, porque esse ideal era o que guiava aquele país naquela época. E é esse ideal, enfim, que Judd Apatow começa a atacar em seus filmes, nos anos 2000.

Os Anos 2000 e o Retorno dos Riscos

Friends (e os Estados Unidos) era uma fantasia de viver os problemas do agora com alegria, bom humor e perseverança, nos anos 2000 as coisas mudam.

Todo mundo com mais de quinze anos de idade, ainda que vagamente, lembra daquela imagem assustadora que foi o ataque contra as Torres Gêmeas, um dos principais símbolos do poder econômico e político dos Estados Unidos. Mais do que representar um ataque contra uma nação que nas últimas décadas havia enriquecido por acordos e intervenções políticas dos mais escusas, era uma mostra de que a suposta estabilidade do mundo era falsa.

A economia americana já vinha sofrendo sutilmente pelos crescentes movimentos nacionalistas e/ou teológicos em países como o Afeganistão e o Iraque, fontes do principal produto de seu interesse — o petróleo. Além disso, a economia do “Tio Sam” vivia muitos entraves que, ainda serão muito debatidos como sendo ou não o que levou à crise de 2007/2008. Dentre esses, os estímulos bancários ao crédito e o boom imobiliário mostravam suas consequências, na medida em que muitos dos endividados começavam a não ter qualquer perspectiva de pagar tais dívidas. Esse grande montanha-russa de consumo e aquisição de bens chegava ao seu topo, e não conseguiria se sustentar lá. O livro/filme A Grande Aposta é, certamente, uma ótima pedida para amadores que, como eu, tentam entender alguma coisa nisso tudo.

O que todo esse cenário que ainda hoje vivemos representa na cultura cinematográfica americana? Podemos tentar entender, lançando um olhar para Friends. Os fãs da série vão se lembrar de dois dos seus principais acontecimentos; eles não têm qualquer relação com as condições econômicas globais, entretanto, simbolizam a mudança de mentalidade dos yuppies.

Primeiro: Chandler e Monica precisam mudar de cidade, porque ele foi transferido do trabalho. Segundo: Rachel tem uma filha e se casa com Ross. Ora, são dois acontecimentos que poderiam ter se sucedido com qualquer pessoa; muitas pessoas que trabalham em grandes empresas passam por esse tipo de mudança e muitos casais têm filhos e se casam. Entretanto, aqui estou pensando em uma mudança de personalidade por parte das personagens.

O casal em questão vive em Nova York há muito tempo, têm seus amigos e familiares nesse estado e nessa cidade; suas vidas sociais estão aí e, mesmo assim, aceitam se sujeitar à transferência, a uma alteração em seu estilo de vida. Se, por um lado, essa mudança indica o fim da série, por outro, denota uma nova preocupação daquele homem “de sucesso” com seu trabalho. Ele simplesmente não pode recusar, não pode se demitir em nome de sua personalidade, porque o mercado de trabalho se fecha, as oportunidades estão em falta, largar um emprego é, efetivamente, assumir um risco.

O segundo acontecimento refere-se a Rachel, a mulher linda, bem-sucedida, independente e segura de si. De repente ela se casa com o homem que outrora a traiu, aceita abrir mão de uma parte de sua vida individual. Não quero menosprezar sua ação, e tampouco o amor; ela não está se tornando uma “esposa submissa”. Está simplesmente mudando a sua forma de pensar e viver o mundo. Está aceitando que o seu ideal de juventude eterna não deu certo, e que agora ela precisa se prender a alguns valores. Ela não vive mais apenas para si — tem sua filha também –, logo, não poderá mais viver sob os mesmos padrões de comportamento que vivia antes. Seu estilo de vida não mais se sustenta — o American Dream reformado falha.

Idealmente, podemos imaginar os casais Chandler e Monica e Ross e Rachel vivendo cheios de alegria, todos os dias acordando lindos e maquiados e sempre prontos para falar alguma coisa espirituosa e cômica. Nesse caso, será só uma projeção de nossos próprios desejos pessoais de beleza e sucesso — e eu não duvido que um Friends assim montado seria um novo marco na TV. Mas esse ideal não corresponde à realidade. Não corresponde, nem sequer às possibilidades econômicas e sociais dos Estados Unidos pós-crise. É aqui que entram os filmes de Judd Apatow — filmes de pessoas frustradas ou conformadas que, diante de novas perspectivas em suas vidas, precisam continuar vivendo. Um emprego ruim não é mais uma fase; dividir o aluguel, ou (voltar a) morar com os familiares não é mais uma opção; ter diversos sonhos não-realizados é uma realidade.

O Conformismo dos Anos 2010

No final de Friends (e da primeira década do novo milênio), o padrão de vida dos norte-americanos começa a mudar de forma contundente. No caso da classe média branca, passa a haver certo retrocesso econômico e muitos daqueles jovens que achavam que o “mundo” nunca acabaria começaram a perceber que, enfim, ele na verdade talvez estivesse próximo do fim. Toda a utopia de uma economia perfeita, de um país sem racismo e de um cenário global pacífico rui. Mesmo cenários idealizados como a família feliz e amorosa de Rachel, Emma e Ross distancia-se do American Dream original.

Entramos no mundo de Judd Apatow. São comédias sobre a classe média branca e seus problemas e questões existenciais mais pungentes, a começar com aquela que é o sumo do espectro final de Friends: amadurecer e viver o mundo com responsabilidade. Seus filmes (os que ele produziu, escreveu ou dirigiu) são cômicos, sim, mas são igualmente melancólicos, e até um pouco conformistas, talvez, tirando o peso negativo dessa palavra.

Diferente de Woody Allen, cujos retratos da classe média branca tendem ao profundo debate epistemológico e moral, os filmes de Apatow se focam em personagens sem tanto conhecimento nessas questões. Assim, suas colocações acontecem de uma forma bem mais prática (“prática”, retomando o conceito grego de práxis — ação concreta mais do que discurso sobre a ação).

São filmes que parecem apenas comédias descerebradas, quase sempre envolvendo piadas machistas/sexistas e maconha e com personagens que são pessoas com uma vida comum e hábitos simplórios (vide a personagem de O Virgem de 40 anos, de 2005). Entretanto, essas características são o componente da nova estrutura social e econômica norte-americana.

Se o uso da maconha não diz nada sobre os filmes (mas aparece em quase todos, por isso o citei), todos os demais elementos que compõem o enredo ou as individualidades das personagens são significativos. Vamos pensar no primeiro, As Loucuras de Dick & Jane (2005): qual é o enredo? Um casal jovem que, perdendo o emprego, precisa cometer crimes para saldar suas dívidas! Eu diria que é bastante representativo, se pensarmos na crise de 2007/2008, apesar de o filme ser uma regravação de um programa de mesmo nome dos anos 1970. Porque é esse o cenário dos Estados Unidos de então — Dick e Jane são Monica e Chandler que, mesmo atendendo a todas as exigências da empresa em que trabalham, não resistem à crise. Sua empresa faliu, Dick volta a buscar emprego e descobre um mercado saturado — pessoas de sua idade e mais jovens competindo e concorrendo por uma mesma vaga.

Para além da economia (e abarcando a ela), temos as questões do caráter social e existencial dessas personagens; seus sonhos e utopias não são atingidos, mas eles vivem em conformidade com esse “fracasso”. Essa é a personagem “apatowiana”, se é que eu posso falar assim. Nesse sentido, os atores Seth Rogen e Paul Rudd são as caras dessa conformidade.

Em O Virgem de 40 anos, o protagonista está em um emprego que lhe desagrada, tem uma vida sexualmente nula e socialmente restrita. Não podemos dizer que se trata só de uma personagem cômica, que existe assim sem motivo — é, antes, uma vítima de um discurso progressista dos anos Bush-Clinton que foi atingido pela realidade. Podem dizer que estou exagerando no caso deste filme; em minha defesa, ressalto: mais pungente nesse sentido é Ligeiramente Grávidos (2007).

Os Anos 2010 e a Família de Amigos

O mais pungente, mas não o único que mostra um novo padrão de família, sem aspas, porque devemos começar a pensar na família desse jeito, também. As famílias das personagens de O Virgem de 40 AnosSuperbad: É Hoje (2007) e Ligeiramente Grávidos vivem o amor entre amigos, uma tradução ruim para “bromance”. Em Friends, o bromance de Joey e Chandler era uma passagem até que o segundo se casasse. Nos filmes de Apatow, é uma realidade viva, a condição em que se encontram as personagens.

Não se trata unicamente de viver em uma mesma casa. Quem já alugou um quarto sabe que, às vezes, dividir um teto não é nenhum sinal de afeto, mas de necessidade econômica. O bromance nos filmes de Apatow é nesse sentido: são famílias formadas por amigos, alguns vivendo em casas separadas, uns dos outros, entretanto, são uma família: se encontram nos fins de semana, conversam todos os dias, vivenciam rituais do cotidiano familiar. Seus laços de amizade e os problemas de um dos membros da família sendo encarados como um problema de todos são, inclusive, o fio condutor dos filmes.

Destaco esse conceito, principalmente, depois de ter lido a breve entrevista da escritora Hanya Yagihara no caderno Ilustrada, da Folha. Hanya fala que a sociedade cobra muito que as pessoas se casem e tenham filhos, mas hoje os padrões de comportamento e relações interpessoais mudaram. Por que um grupo de amigos não pode ser uma família? E esse é o cenário dos quatro principais filmes de Apatow. São os amigos de Andy que o ajudam a perder a virgindade em O Virgem de 40 Anos; é uma empreitada entre amigos íntimos que conduz a trama de Superbad: É Hoje; Ben Stone (Seth Rogen) vive com quatro amigos — praticando os rituais do cotidiano, como refeições, trabalho, datas comemorativas — em Ligeiramente Grávidos; é a amizade o principal vínculo social de Dale com Saul em Segurando as Pontas (2008) — mesmo o uso da maconha pode ser entendido como um ritual “familiar” deles.

Famílias tradicionais existem nos filmes de Apatow também, e a mais notável é a de Pete (Paul Rudd) e Debbie, que aparece em Ligeiramente Grávidos, a família de Alison; e em Bem-Vindo aos 40 (2012), no qual são o tema principal do filme. Entretanto, não é a família de “comerciais de manteiga”; como uma projeção do que aconteceria com Ross e Rachel, eles não vivem “felizes para sempre”, mas (às vezes) ressentidos pelas oportunidades e prazeres que precisaram abandonar em detrimento dos filhos. Não se trata, evidentemente, de uma propaganda antinatividade, mas de uma constatação.

Buscando a Juventude e a Liberdade que Nunca Tiveram

Não penso que Apatow condene a Família Tradicional, visto que há personagens nos filmes desse diretor que vivem, e mesmo almejam ao casamento e até à“rotina”. Trata-se, pelo contrário, de uma nova maneira de compreender como funciona a mentalidade dos norte-americanos: se a “tradição” (e aqui, penso em um aspecto mais liberal, que aceita novos modelos familiares, novos credos e profissões não-convencionais) não os agrada, fugir dela é igualmente complexo, e por fim eles a aceitam. Não é, todavia, uma aceitação simples e satisfatória.

Por exemplo, em Ligeiramente Grávidos, Debbie e Alison vão a um clube noturno para comemorar uma promoção. A forma escolhida para essa comemoração não é trivial — optam por um modelo típico da juventude. Encarar um espaço escuro, apertado e com música alta é um importante ritual de convivência e uma fonte de prazer de muitos jovens. Trata-se, penso, no caso de Debbie e Alison, de comemorar a sua juventude. Algo que se evidencia em um segundo momento: Alison, já grávida, volta à danceteria e é barrada pelo segurança; ora, o que mudou no aspecto dessa mulher, tão loira e jovem quanto no início? A gravidez: é quase catártico quando ela nota que, para os padrões sociais de seu tempo, esse é um sinal de “maturidade”, de que ela não viverá mais sua vida de forma inconsequente, desmedindo seus gastos e prazeres — mas nós, eu e aquele segurança, sabemos que isso é uma falácia.

A falácia da “imagem jovem” e imortal começa a desmoronar frente aos avanços nas fases das vidas desses jovens que acreditavam que nunca iriam envelhecer. Nesse sentido, as falas dos policiais Slater e Michaels em Superbad: É Hoje são significativas: seus trabalhos não são “igual no CSI”, isso é, suas vidas não são um grande programa festivo e emocionante de TV e eles não são “heróis”, mas dois trabalhadores que precisam viver o seu dia a dia. São jovens que “amadureceram”, como é a verve de um país, como os Estados Unidos de Bush filho e Obama, e que agora não consegue lidar tão tranquilamente com suas expectativas frustradas.

Inevitável, assim, é perguntarmos sobre o futuro dos States e do mundo; as expectativas, contudo, não são tão animadoras, vide o sucesso de figuras como Donald Trump. O que Apatow pode nos sugerir, pergunto eu, a vocês? Algumas pistas estão em Bem-Vindo aos 40, e também nas seguintes obras (algumas em produção), LoveDescompensadaCrashing e The Big Sick: filmes com casais que não sabem lidar com suas diferenças, com as mudanças sociais que os cercam, que buscam desesperadamente uma juventude e “liberdade” que na verdade nunca tiveram…

Comédias românticas beirando o kitsch, com personagens amarguradas e melancólicas, que precisam se renovar para conseguirem viver um novo cenário econômico e social; não é uma mudança fácil, tranquila e pacífica… Esse é o estilo dos seres Judd Apatow. Esses são os Estados Unidos em 2016.

Autor

  • Autor dos livros de poesia Nada (Patuá, 2019) e Hinário Ateu (Urutau, 2020). Já publicou em revistas como Mallarmargens, 7Faces, Zunái e publica com regularidade nas revistas Úrsula e Subversa.

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