House e o Parto de Ideias

Qual a semelhança entre House e o filósofo Sócrates? Ambos destroem conceitos pré-estabelecidos. Que é crise? Que é estabilidade? Que é mérito? Que é fracasso?

Alguma situação cotidiana regular. Professora com seus alunos em exposição de ciências. Ou perseguição de bandido por policial em que o primeiro encurrala o segundo. Ou esposa dedicada se preparando pra sair de casa, beija o marido, entra no carro. E esta mulher então começa a ter espasmos violentos, perde o controle de si, acelera o carro até se chocar contra a parede. E aquele policial ri eufórico e absurdo, gargalha, desatento e sem controle ele será baleado… enquanto aquela professora vê um menino regularmente e cotidianamente pedir para ir ao banheiro, só que ele está urinando sangue. Precisamos imediatamente de alguma explicação. Essa é a premissa de House, série americana criada por David Shore. House é o melhor médico de determinado hospital e expoente em diagnóstico. Mas, pelo contrário do que quereríamos, só se importa com os pacientes na medida em que são um enigma. Não há situações regulares e cotidianas, então, é o que isso diz? Não. Há. Mas não como se quer.

A binariedade que dá vida a todos os episódios de House é crise e estabilidade. Partindo do modelo clássico de filme hollywoodiano, postula, em cada episódio, que nossa vida e nosso mundo não são tão seguros quanto imaginávamos; que nossos relacionamentos não são tão consistentes quanto acreditávamos; e que nossas verdades não são confiáveis, apesar de que precisemos tanto que sejam. No decorrer desse artigo, vamos explicando como isso ocorre, até chegarmos ao ponto de dizer que o que um capítulo da série pode produzir é o efeito das interrogações de Sócrates, é uma maieutica televisiva. Longe demais? A descobrir.

Desde Griffith e Ainda Agora

Desde O Nascimento de uma Nação, do diretor D.W. Griffith, como já tratado em Capitu, há uma estrutura comum para o cinema americano, seguida de forma mais rígida no início deste cinema, mas ainda existente até hoje de alguma forma. Esse estrutura ocorre assim: há no início do enredo um equilíbrio ideal. Esse equilíbrio é ameaçado, interrompido por certa força externa. As forças ‘do bem’ contra-atacam e restabelecem o equilíbrio original. Harry Potter é um bom exemplo desse esquema. Em House, ele funciona da seguinte forma: todo princípio de episódio traz sua situação de equilíbrio; a doença é a força externa que abala o equilíbrio; e as forças do bem são a equipe do doutor House. A pluralidade de pessoas que são focadas por esses prólogos tem uma característica interessante e um efeito peculiar — é quase sempre inesperado quem será o atingido pela fatalidade, nos tantos que se envolvem nas primeiras cenas. Pode ser aquela professora tanto quanto aquele aluno. O efeito disso, e isso é potencializado com a variedade de situações ao longo da série, é afirmar que isso não ignora ninguém — qualquer um, em qualquer classe ou profissão, poderia ser o alvo. Como essa definição abrange todo tipo de espectador, o efeito psicológico imediato é alto.

Se nos identificamos com a primeira sequência, se sentimos asco, empatia, dor, choque ou algum sentimento em relação ao que vimos, certamente teremos também a urgência de uma resolução. E, sabemos, quem é que poderá nos dar essa resposta? House. Sendo a doença e a morte dois problemas existenciais centrais, numa ficção em que existe um médico quase sempre infalível certamente isso nos serve de consolo, de refúgio psicológico. O processo que enxergo aqui é o seguinte: a doença onipresente coloca em crise a ideia de segurança que tinhamos e House é o herói que nos traria de volta à estabilidade. Traria. Porque não é como se tivéssemos um Super-Homem — temos aqui muito mais um anti-herói, que não se importa propriamente com quem salva, mas pelo desafio da incógnita que cada doença traz, pelo exercício racional e exibição de seu brilhantismo e por um prazer algo ralo que lhe dá o fato de ter salvado vidas. A vida, portanto, é salva por alguém que não liga para a vida.

Crise de Conceitos

E aí, senão nós, pelo menos nosso conceitos entram em crise novamente. Herói pode salvar tudo sem dar a mínima pra isso? Ué, pode… só que as demais histórias nos levaram a crer o contrário. Não é só um afago psicológico que haja alguém capaz de nos salvar, mas também o é que esse alguém goste, se importe com a gente, ou com a vida, ou com a bondade. Se há um herói, há um guia, um ponto a se atingir, algo com que se identificar e a espelhar. Mas e este homem que salva por egoísmo? Como segui-lo? Como se identificar e espelhar? Seguir House não é se tornar melhor, é se tornar mais mesquinho. Certo? Não nos termos da série. Nos termos da série, não nos tornamos; deixamos de conter e nos revelamos mesquinhos.

O núcleo disto pode ser expresso por uma das frases de House: todo mundo mente. Quando ele parte do princípio de que o outro ser humano pretende falsificar sua imagem e história, enganar e iludir, o que ele faz da sociedade? Se nunca conhece ninguém de verdade e nunca se pode confiar em qualquer pessoa, como viver o dia-a-dia, como cumprimentar a família, convidar o vizinho para o almoço? O cotidiano se torna intragável. House, ele próprio será uma resposta-atitude frente a essa situação, mas não a única proposta pela série. O diálogo entre as posturas dos personagens é uma das linhas de força da trama. Se House se centrará cada vez mais na razão, na dedução, na espionagem de amigos e paixões, obcessão por fato e estatística e dados concretos, tabulagem de indivíduos, uma das médicas, Cameron, será a parte de sua equipe firme nos ideais de bondade, por exemplo. House será confrontado e os ideiais de Cameron serão muitas vezes ridicularizados, o mesmo para outros personagens, e nunca uma resposta única, enquanto mais e mais conceitos são problematizados.

Penso que um modo de entender como esses conceitos se complicam é tomar o tema de um episódio e vê-lo em duas palavras opostas e extremas que o condensem. Desde a primeira binariedade, a citada crise/estabilidade, também poderemos enxergar o duelo entre mérito e fracasso, culpa e inocência, merecimento e não-merecimento, idolatria e afeição. Analise a primeira dentro do esporte. O que é mérito? O que é fracasso? Temos um episódio em que um ciclista campeão que injetou hemácias em si mesmo (tipo de doping). Não tem mérito, segundo o pensamento imediato que nos ocorre. Mas… as regras esportivas são arbitrárias. Um jogo é assim porque dizemos que é assim. E se a falta de medo em interferir no corpo fosse um valor, mérito seria outra coisa? O episódio também dirá: médicos não se enchem de café e estimulantes para estudarem mais? Ou outros exemplos. E valeria a pena destruir esse ídolo-ciclista se ele já é herói para tantos? Aqui se restabelece o herói-guia. Mas, veja, ele tem essa função de guia, porém seus pés são de barro…

O que é inocência? O que é culpa? Um condenado a morte pergunta: “é justo que se perca a vida toda por um só erro, mesmo que seja o maior que cometeu?”. E quando se vê que esse condenado sofria de um distúrbio neural que provavelmente causou seu ‘erro’, qual o valor da justiça que o puniu? Era um fator biológico incontrolável ou há outros que o superaram? Se há a dúvida, como se decidir por uma punição? Em outro episódio, uma outra doença do cérebro faz com que um adolescente converse com deus. Ele escuta a divindade e ajuda as pessoas com conselhos e milagres. É inocente, puro, inexpugnável. Mas se tal fé é fruto de um distúrbio, qual o valor dela? E se descobrirmos, como descobriremos, que aquele rapaz cometeu um ‘erro’, esse erro deve fazer com que perca a vida, quer dizer, nenhum conselho ou milagre ou ajuda que fez antes nada mais vale? Que é inocência? Que é fracasso?

Assim, episódio a episódio, House vai dificultando que se pense simples…

Maieutica

Talvez alguns se incomodem com a aproximação, mas esse colocar obstáculos na frente do raciocínio simplório nos faz lembrar a maieutica do filósofo grego Sócrates. O site Mundo dos Filósofos afirma:

Sócrates adotava sempre o diálogo, que revestia uma dúplice forma, conforme se tratava de um adversário a confutar ou de um discípulo a instruir. No primeiro caso, assumia humildemente a atitude de quem aprende e ia multiplicando as perguntas até colher o adversário presunçoso em evidente contradição e constrangê-lo à confissão humilhante de sua ignorância. É a ironia socrática. No segundo caso, tratando-se de um discípulo (e era muitas vezes o próprio adversário vencido), multiplicava ainda as perguntas, dirigindo-as agora ao fim de obter, por indução dos casos particulares e concretos, um conceito, uma definição geral do objeto em questão. A este processo pedagógico, em memória da profissão materna, denominava ele maiêutica ou engenhosa obstetrícia do espírito, que facilitava a parturição das idéias.

Portanto, quando afirmo que House relembra Sócrates, quero dizer que constantemente nos põe em evidente contradição e nos constrange à confissão humilhante da nossa ignorância. Demais para uma série de TV? Nunca ocorreu contigo semelhante pensamento? Pois ainda assim creio que esse é o potencial das discussões da série. Se a tese daqueles episódios for mesmo fermentar dentro da sua cabeça, acabará por corroer algumas outras em volta. Essa ideia parece coerente, já que essa é a postura do próprio House. Pois mesmo um arrogante, um egoísta, um egocêntrico, ele contratou gente para confrontá-lo e atenta a cada ideia que lhe é oposta. House sabe da sua inteligência. Mas não confia tanto assim nela. Novamente, vamos a Sócrates:

O conhece-te a ti mesmo, no pensamento de Sócrates, significa precisamente consciência racional de si mesmo, para organizar racionalmente a própria vida. Entretanto, consciência de si mesmo quer dizer, antes de tudo, consciência da própria ignorância inicial e, portanto, necessidade de superá-la pela aquisição da ciência. O procedimento lógico para realizar o conhecimento verdadeiro, científico, conceitual é, antes de tudo, a indução: isto é, remontar do particular ao universal, da opinião à ciência, da experiência ao conceito.

Episódio a episódio, se verá que a nossa comparação não é equivocada. E saberemos que, é mesmo, House não é um herói pelo qual nos espelhamos, mas é certamente um que nos faz olhar no espelho. No nosso próprio. E ver o que estiver lá, seja mesquinhez ou hipocrisia ou bondade. Porque é preciso conhecer a doença para curá-la, e talvez seja preciso chegar até o limiar dos sintomas, o paroxismo do mal — para que se encontre, enfim, a cura.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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