De uma cúmplice habitual para Marina Colasanti: uma crônica para a escritora de delicadeza firme

Sempre achei, em todo o tempo, em tudo bonito o nome do site de Marina Colasanti: Marina manda lembranças. Recordações, julgamos de primeira, são matéria do passado. Com a escritora, entendi, no entanto, que o cotidiano também se faz de memórias. Logo, não há nada de estranho em inventar crônicas com o que já ocorreu. Senso de urgência e história na ordem do dia. Em sua morada virtual (mantida, com cuidado, pelo bibliotecário Rafael Mussolini e o ilustrador Santiago Régis), a partir de 2014, Marina passou a assinar as crônicas de quinta e, com elas, tornei-me sua cúmplice habitual. A cada semana, recebia lembranças da autora como quem busca pão fresco na padaria do bairro. Um começo de vida adulta formado por esse ritual. Parece-me, então, justo dizer tchau, adeus, até breve para tamanha companhia assim: sendo eu, hoje, a aprontar uma crônica. A mandar lembranças, na esperança de que Marina as receba.
Soube da morte de Marina, em 28 de janeiro de 2025, ao pousar em Confins. Li a notícia e emudeci. Fui a última a sair da aeronave. Chorei sem ruído para não constranger os demais passageiros. Que triste ironia chegar à capital mineira vazia de qualquer horizonte belo. Decidi, ali mesmo, desatar os planos. Adiei a ida a Inhotim e fiquei relendo a minha mestra. Perdi a última heroína que ainda estava aqui. Recuperei fotos, vídeos, áudios, registros diversos das vezes em que estive na presença dela. Por sorte e comprometimento fiel, foram muitas. No primeiro encontro, em uma edição paulistana do projeto Sempre Um Papo, em 2016, estava em tal estado de ansiedade que sabe-se lá o que disse. Quando dos seus 80 anos, fui à comemoração na Livraria Martins Fontes – ela de amarelo, o bolo com lombadas de livros e o brinde sorridente combinando com a aniversariante. Ouvi-la falar me deu a certeza de que a inteligência se põe em nós de maneira elegante. Que resiste a delicadeza firme. Que não se pode, sem exceção, naturalizar a mediocridade e a burrice. Ela me ensinou: “Palavras são como roupas: o uso excessivo as torna puídas e lhes rouba a luz. Palavras se apagam, iguais a estrelas”. Marina me deixou esses e outros alertas – em viva voz e, principalmente, em sua escrita. A tecelã enfiou a serpente na agulha e costurou um mundo.
Ou melhor: vários mundos – em contos, contos de fada, contos maravilhosos, minicontos, poemas e, claro, crônicas. Nas ilustrações, artista visual talentosa que ela também foi. Um legado (extenso em números: mais de 70 obras) que não prioriza romances, pois, na economia do verbo, Marina alargou o poder da precisão. E, além dessa riqueza no que concerne à arte, a criadora de seres encantados saltava aos meus olhos, inclusive, enquanto uma espécie de prova da existência de carne e osso de Clarice Lispector, a nossa Clarice. Entrego-me à comoção ao ler ou escutar a entrevista que Marina fez com Clarice para o Museu da Imagem e do Som do Rio de Janeiro (MIS-RJ). O zelo de amiga e a compreensão compartilhada de um ofício. Comovo-me ao imaginar Marina responsável pela coluna de Clarice no Jornal do Brasil (crônicas de novo – agora, as clariceanas, gravadas em mim há muito); ao recordar que ela, Marina, imitava, com graça, os erres de Clarice (a língua prrresa). Comovo-me sem limites com os autógrafos que ganhei de Marina: a generosidade do adjetivo bela, as bênçãos de Clarice através dela, interposta pessoa sensível (encantamento total!).
Conversei com ela e sobre ela – em aulas e palestras (no presencial e, durante o período pandêmico, on-line), livrarias e entrevistas (duas: para o meu TCC em Jornalismo e para o site do Itaú Cultural, esta última acabou por virar um dos trabalhos de que mais me orgulho, realizado na época em que era estagiária, tímida e ousada em simultâneo). Dei livros dela de presente – para mim mesma, com frequência, e para os outros. Crianças e adultos. Todos devem ler Marina. Incentivei gente querida a conhecer as obras (para cada um, uma recomendação, uma Marina que, a meu ver, mais combinaria com essa ou aquela pessoa). Marina foi a escritora que participou da minha formação, sinto desse modo, com a sua presença física. Como me despedir? Recorro, novamente, ao domínio da comoção: ao supor que também eu estava nas nuvens quando a minha escritora do coração foi para lá, penso que o meu até logo foi mais de perto, mais do alto, no céu. Entende? Na verdade, não suponho, sei: estar no avião na manhã do dia 28 de janeiro me deu a possibilidade de criar uma história para mim – que, como contadora que sou, levarei ao futuro, passando-a para frente. Cortando por dentro das nuvens para um tchau carinhoso: eis a memória que elaborei e, com saudades, envio-a aqui. Heloísa manda lembranças.
Obrigada, obrigada, obrigada, Marina. Que você esteja em paz, bem recebida por Clarice, Lygia e Nélida. Dê abraços nelas por mim. E receba os abraços delas. E os meus. Da sua cúmplice habitual (que continuará assim, denominação que me alegra inteira) que te ama e admira.