Gabriel Garcia Márquez agoniza

Morte de mentira, novo livro e análise da identidade do latino-americano

O escritor colombiano Gabriel García Márquez, prêmio Nobel de 1982, está moribundo. As mãos trêmulas supostamente escrevem uma carta aberta em que ele conta sobre o câncer linfático que lhe arranca todas as suas forças. O texto se espalha pela internet, causando comoção. Márquez, autor dos romances Cem Anos de Solidão¸ Crônica de uma Morte Anunciada, O Amor nos Tempos do Cólera, Memórias de Minhas Putas Tristes, além da autobiografia Viver para Contar, é um dos mais importantes escritores latino-americanos.

Mas há algo de estranho no texto. A começar, as frequentes alusões a deus. Não consta que Márquez seja como Machado de Assis, que, no momento da morte, negou a extrema-unção, mas esse tipo de referência simplesmente não é o tipo de coisa que escreveria. Isso segundo Orlando Moretti, que na sua “Crônica do Falso Adeus” descreve o escritor colombiano como “de esquerda, marxista, amigo de Fidel Castro, militante de causas sociais”, um “humanista engajado”, mas que “nem de longe lembra um religioso”.

De fato: o texto se trata de uma farsa. Sua autoria é desconhecida; o conteúdo foi atribuído a Márquez. Se está ou não próximo da morte, como de costume, não se sabe, mas continua trabalhando e tem um novo livro já escrito, recebendo os retoques finais. Ariano, nascido em XX de março de 1928, o colombiano completa 81 anos neste 2009.

A notícia da nova publicação foi dada por um amigo seu, Plinio Apuleyo Mendoza, com quem escreveu o livro de conversas Cheiro de Goiaba (1982). De acordo com a entrevista de Mendoza ao jornal britânico The Guardian, Márquez está escrevendo uma “história de amor”, da qual tem quatro versões escritas. No momento, seleciona as melhores partes de cada uma dessas versões. Segundo Mendoza, depois de um tempo sem produção literária, Márquez se tornou “muito autocrítico”. Em 2006, houve indicações de que o colombiano não escreveria mais, de acordo com ele, por falta de entusiasmo.

Crônica de uma Morte Anunciada

Esquerdista, pouco religioso, humanista, autocrítico, Gabriel García Márquez escreveu ao longo de toda a sua vida. Quando pequeno, ele viveu com os avós em Aracataca. A cidade colombiana faz lembrar (ou é) a fictícia Macondo, onde se passam os eventos de Cem Anos de Solidão, tanto que, em 2006, seu prefeito tentou sem sucesso trocar o nome atual pelo do livro, com esperança de trazer mais turistas. Aracataca, como Macondo, tem plantações de banana e personagens curiosos e/ou surreais. A começar pela família de Márquez.

Dois exemplos, apenas: seu pai era um homem com onze filhos (um número que, se quiser efeitos simbólicos para a biografia, é considerado mágico) e no peito do seu avô às vezes surgia uma pontada aguda, uma dor de assassinato. Esse avô, veterano da Guerra dos Mil Dias, parava na rua enquanto levava o neto ao circo, como se lhe doesse algo, e sussurrava ao neto: “Ay, no sabes cuanto pesa um muerto”, falando de alguém que matara. O próprio Márquez pode ser um desses personagens; aos sete anos, era um menino cujo primeiro livro que leu foi As Mil e Uma Noites.

Saindo de Aracataca, após uma crise das plantações de banana que também afeta Macondo, acaba chegando à Bogotá, onde cursa Direito por um tempo, abandonando depois para se dedicar ao jornalismo e à literatura. A produção jornalística de Márquez, com reportagens e críticas de cinema, foi publicada em XX coletâneas pela XX, em XX. O colombiano ainda estudaria no Centro Experimental de Cinema de Roma e faria uma viagem de três meses por países socialistas, indo então à Paris e enfim ao México, onde mora até hoje. Foi lá em que, depois de dois anos, terminou e enviou a uma editora de Buenos Aires os originais de seu livro de maior sucesso, Cem Anos de Solidão.

Quem somos nós, latino-americanos?

A importância desta e de outras obras de Gabriel Garcia Márquez está na força do estilo de literatura que ficou conhecido como realismo fantástico e na sua ligação com o seu tempo, na sua interpretação da identidade latino-americana e do momento histórico do continente.

A realidade e o tempo são difusos na obra de Márquez e em outras dessa corrente literária. Há eventos possivelmente (e, nesse caso, brutalmente) cruéis, como um massacre que marca para sempre a vida de um homem, que passa a repetir continuamente o número de mortes, para que nunca sejam esquecidos. Mas há também personagens que ascendem aos céus por excesso de pureza, uma epidemia de esquecimento que faz com que os nomes dos objetos se percam todos e um general que perdeu 32 revoluções. O mítico e o verdadeiro se entrelaçam para falar de assuntos humanos.

De acordo com a mestre em História Karla Pereira Cunha, no ensaio Busca por uma identidade latino-americana através da Literatura: estudo das obras Cien Años de Soledad de Gabriel García Márquez e El Laberinto de la Soledad, de Octávio Paz, o realismo fantástico estava em oposição a “uma mentalidade perpetuada pela elite local, pela história oficial”. Cunha afirma que “esta nova literatura buscava oferecer um retrato da sociedade, explorando o universo cultural latino-americano, sobretudo os espaços rurais ou pequenos povoados”, em que havia lugar para “a associação do cotidiano com o aspecto folclórico e supersticioso”.

Segundo a ensaísta, a literatura foi um dos primeiros lugares em que houve espaço para a discussão da identidade latino-americana, longe ainda dos estudos acadêmicos. Qual era a especificidade, as características únicas do continente, além das idéias importadas do colonizador? No Brasil, este questionamento tomou forma no movimento modernista de Oswald de Andrade e também em livros capitais como Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freyre e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda.

O que torna singular as narrativas de Márquez é a forma como utiliza a história como meio para fazer uma reflexão sobre o ser humano e sua identidade”, diz Karla Cunha, “sua obra é pontuada de reflexões sobre a modernidade e pode ser considerada em uma dimensão poética, pela capacidade de inventar códigos para o mundo.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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