Ficção científica como crítica literária e clínica do mundo

Para além de um gênero literário, a ficção científica pode ser um olhar atento aos múltiplos saberes e formas de existir

Obra “The History of Science Fiction”, de Steve Juvertson (veja em tamanho total)

O presente texto tem como objetivo movimentar um debate a respeito da noção do gênero literário “ficção científica”, resgatando a aproximação que a crítica fez deste gênero ao mito, porém buscando ampliar e transformar a noção de mito para fora da chave interpretativa do conhecido/desconhecido. Inspirados pela filosofia de Gilles Deleuze e Félix Guattari, desejamos aqui tornar sensíveis as intensidades da ficção científica, por meio de um movimento que investe em desfazer as formações moleculares e identitárias do gênero, transformando-o em prática crítica contaminante (que ressignifique ao produzir a crítica), o que é possível em uma sociedade em que a ciência se tornou um discurso fundamental e coletivizado. Nesse esforço, o presente texto confia em Michel Foucault e Maurice Blanchot como potências mobilizadoras de um agenciamento literário capaz de percorrer a literatura como arte fundante de sentidos, afetos e percepções do mundo.

Do que falamos quando falamos de “ficção científica”?

Às vezes é muito simples perceber quando estamos diante de uma ficção científica: as gigantescas naves cruzando o infinito espaço, os dramas e heroísmos que se passam nos laboratórios, a tragédia essencialista humana sofrida por inteligências artificiais, os dilemas éticos das super-drogas ou das mega-armas, as experiências de alteridade ou de espelho diante do outro alienígena ou mesmo as crises existenciais entre criadores e criaturas, só para ficarmos com alguns exemplos. Porém, existe um mínimo comum para definir a ficção científica? Haveria um elemento estético ou um repertório narrativo que se repetiria, com ou sem diferença, capaz de unificar uma disparidade de conjuntos enunciativos sob a classificação de ficção científica? Afinal, é possível falar em alguma ficção que não seja científica na era tecnocientífica da contemporaneidade?

Veja também:
>> “Uma breve história da ficção científica“, por Vanessa Bortulucce
>> “Bebê Rena e os riscos da vontade de ser completo“, por Alberto Kelevra

Nenhum gênero literário é um território completamente definido, na realidade, é um instrumento classificatório e pragmático, não uma fronteira pacificada, portanto é dotado de historicidade e conflitos que fazem com que o gênero se ressignifique durante a produção da própria literatura – ao mesmo tempo é produto de uma filiação e, também, criador de uma diferença que produz o seu próprio contexto. A ficção científica é um gênero próximo da literatura fantástica, aquela à qual elegemos Edgar Allan Poe1 como uma espécie de marco ordenador, mas que o ultrapassa no tempo, tanto em relação ao passado quanto ao futuro. A literatura fantástica engloba os contos de terror, mistério, detetive, fantasia mágica e científica. Rastrear as origens da ficção fantástica ou ficção especulativa (Causo, 2003) seria uma tarefa arbitrária e sem sentido. Um trabalho mais razoável seria o de levantar uma genealogia da ficção fantástica que mapearia seus temas, alegorias, metáforas, recursos literários, espaços de produção e circulação, as repetições enunciativas, assim como os dispositivos que a tornam reconhecida como ficção fantástica. Contudo, tal trabalho escapa ao objetivo aqui proposto, minhas pretensões são bem mais humildes.

A narrativa do fantástico está presente desde o paleolítico, nas pinturas rupestres como o caso d’O feiticeiro da caverna francesa Les Trois-Frères. Arrisco a dizer que o “infamiliar” (Freud, 2019b) está presente desde que existe a linguagem, na medida em que a linguagem é capaz de produzir enunciados que escapam à necessária representatividade objetiva do real, ou seja, se posso enunciar a existência de um feiticeiro-cervo a linguagem se torna uma dobra da realidade, que em vez de negá-la, acaba por amplificá-la de forma infinitesimal. Afirmar que O feiticeiro francês é uma ficção científica é leviano e anacrônico, mas afirmar que a interpretação que fazemos dessa pintura é uma ficção científica é plausível e necessário. A literatura, por mais realista que se pretenda, é também ficcional, ou mesmo fantástica.

Fora do mundo (como conjunto simbólico e representacional de uma determinada cultura), existe o outro (alteridade), esse mundo se formula em termos de fronteiras, tanto metafóricas como geográficas (apesar da fronteira geográfica ser uma alegoria do poder), independentemente de sua porosidade. O outro étnico, religioso, sexual, político, como também o outro estrangeiro, bárbaro, indígena, árabe, todos eles são um fora (Pelbart, 2009) – dehors –, um acesso ao “infamiliar” humano. Não há uma grande Humanidade essencial e eterna, mas dobras de mundos que se multiplicam em um tecido-espelho confundindo o que é refletido. No texto “A linguagem ao infinito”, Foucault (2009, 47-59), inspirado em Blanchot (2011), aponta a morte como o “infamiliar” último da literatura, o fora absoluto da linguagem, o qual a literatura se torna o murmúrio infinito em busca da imortalidade, reproduzindo-se indefinidamente como em um jogo de espelhos que se refletem um ao outro. O fascínio com o fora, como o irreconciliável, com o eterno outro (o estranhamento enquanto bloco de afeto), com o infamiliar é o que está no reino do fantástico: a sensação de que há sempre algo a ser dito ou escrito mesmo depois de duas centenas de milhares de anos. Assim como a realidade resiste às palavras, as palavras resistem, eternamente, à realidade; em um murmúrio as palavras resistem às palavras. A representatividade não é o todo da linguagem.

Escrever, hoje, está infinitamente próximo de sua origem. Isto é, desse ruído inquietante que no fundo da linguagem anuncia, logo que se abre um pouco o ouvido, aquilo contra o que se resguarda e ao mesmo tempo a quem nos endereçamos. Como o inseto de Kafka, a linguagem escuta agora no fundo da sua toca esse ruído inevitável e crescente. Para se defender dele, é preciso que ela lhe siga os movimentos, que se constitua seu fiel inimigo, que só deixe entre eles a finura contraditória de um tabique transparente e inquebrável. É preciso falar sem cessar, por tanto tempo e tão forte quanto esse ruído infinito e ensurdecedor – por mais tempo e mais forte para que, misturando sua voz a ele, se consiga se não fazê-lo calar, domá-lo, pelo menos modular sua inutilidade nesse murmúrio sem fim que se chama literatura. Após este momento, não é mais possível uma obra cujo sentido seria se fechar em si mesma para que fale somente sua glória (Foucault, 2009, p. 52-53).

O encontro com o “infamiliar” é causa e consequência da linguagem, as palavras dobram a espessura do real, geram rugosidades barrocas (Deleuze, 2012), ao mesmo tempo que informam constantemente o seu limite, o fora que arrasta a literatura consigo na experimentação com o mundo. Em seu conto Pierre Menard, autor do Quixote, Borges (2007) – um exemplo aguçado do que pode ser a ficção científica, inclusive – desloca a posição do autor, atribuindo a Pierre Menard a escrita dos capítulos IX e XXXVIII, além de trecho do capítulo XXII, letra por letra, da célebre obra de Cervantes:

Ele não queria compor outro Quixote – o que seria fácil – mas o Quixote. Inútil acrescentar que nunca levou em conta uma transcrição mecânica do original; não se propunha copiá-lo. Sua admirável ambição era produzir páginas que coincidissem – palavra por palavra e linha por linha – com as de Miguel de Cervantes (Borges, 2007, p. 38).

O conto de Borges mobiliza toda a maquinária literária ao tornar ela própria o “infamiliar”, a literatura não é mais onde repousam as palavras, saboreiam-se os sentimentos e se confidenciam as verdades, mas sim uma máquina de fluxo e influxos, ordenação, controle e reprodutividade. Assim como no conto “A biblioteca de Babel” (Borges, 2007), o autor traz a sua percepção de que tudo que havia para ser escrito já foi escrito, esse murmúrio infinito que assombra a linguagem, de modo que a literatura se apresenta como o demônio nietzschiano (Nietzsche, 2012) que sussurra o pecado do Eterno Retorno: o rompimento do tempo linear de deus, em favor de um tempo circular pagão. Escrever é eternamente retornar, pois todas as histórias já foram contadas, mas, mesmo assim, o escritor aceita o pacto na esperança de produzir a diferença, essa diferença é a pura intensidade do mito, a visão do que está fora da literatura, do discurso, do que restringimos com os nomes de mundo e realidade, um contato com aquilo que Nietzsche busca chamar de “vida”: os raios-c que brilham na escuridão próximos ao Portal de Tannhäuser, vistos pelos olhos de Roy Batty.

Será apenas no século final do século XVIII e durante o século XIX que a literatura de ficção científica ganhará os contornos que nos parecem mais claros. A Revolução Industrial abre espaço para novos deuses e titãs, e, portanto, para novas mitologias (ou talvez não tão novas, mas apenas diferentes). A primazia é apenas um monumento, ela não é a origem, mas um ponto de orientação, por isso me sinto à vontade para colocar o trabalho de Mary Shelley como a primeira ficção científica moderna: Frankestein (2017). O monumento é bem moderno: uma escritora mulher, não reconhecida como cientista, trata da relação criador e criatura, humano e inumano, ao mesmo tempo que agencia a questão da mulher na sociedade europeia da época. Os personagens não são apenas o jovem dr. Frankestein e sua criatura, mas também a autora Mary Shelley: sua impossibilidade de publicar com o próprio nome, a violência doméstica, as dificuldades afetivas. A indústria, a química, deus, a alquimia, as comunidades literária e científica da Europa do século XIX, o mercado editorial, os dramas familiares, o direito ao exercício completo da cidadania negado, tudo isso para que Prometeu seja (re)escrito novamente, que se repita, mas com uma diferença que inaugura a ficção científica, não em sua forma pura2, mas caótica, misturada com o terror, o mistério e o fantástico. Pois, ao trazer a alquimia de volta para química, no sentido contrário das academias científicas da época, é que Shelley reinstala o estranhamento, o encontro com o familiar infamiliar. Apesar dos legítimos esforços de Carl Sagan, a melhor ficção científica é feita por aqueles que não são oficialmente reconhecido como cientistas, os que vivem à margem, mobilizados em devires entre a arte, a filosofia e a ciência.

Aqui se faz necessária uma explicação, talvez mais. Alguns críticos como Frye (2014), vão identificar o “mito” como a origem do que vem a se tornar a literatura fantástica, nascimento potente pois é desprovido de origem, fruto do caos, ao mesmo tempo divino e humano, tal como o teatro; e, também, polissêmico, pois o mito, “o nada que é tudo”, nas palavras de Pessoa (2014, p. 23), não basta em si enquanto definição, ao ponto de mobilizar uma massa gigantesca de pensadores diante dessa Esfinge: Nietzche, Barthes, Paul Veyne, Joseph Campbell, Jung, entre tantos heróis devorados.

Uma corrente fiel a Freud (2019b), à qual está filiado Northrop Frye, assume uma visão bastante positivista em relação ao mito, herança do século XIX. Segundo essa corrente o mito ocuparia, na dimensão coletiva, o que ocupa a imaginação fantástica da criança diante do desconhecido, ou o infamiliar. A ciência seria uma espécie de maturidade (Causo, 2003), que, por meio da verdade afastaria o desconhecido e a sua sombra – o medo. Essa explicação não só é bastante positivista como excessivamente triunfalista. Desse modo, o mito seria a face passada de Janus, voltada para o desconhecido, ou ao primitivo humano; a ciência seria a face futura, moderna, do conhecimento. Tal explicação é muito interessante se formos debater, mesmo que superficialmente a obra de Freud. A psicanálise é uma forma de ficção científica do mito de Édipo, o inconsciente o grande infamiliar interno, o infamiliar absoluto individual, enquanto a morte é o infamiliar coletivo. Sempre inacessível, a ponto de Lacan ter que se apropriar da linguística para elaborar sua noção de inconsciente. É muito difícil negar que A interpretação dos sonhos (Freud, 2019a) seria uma ótima obra tecno-xamânica ao estilo steampunk.

O que proponho aqui é abrirmos espaço para pensarmos a ficção científica como uma forma de mitologia moderna/contemporânea, mas, também, em um movimento de afastamento dos fundamentos proposto por Freud, trair a noção de infamiliar proposta pelo primeiro psicanalista e fazer o que ele fez em seu trabalho de fato. Buscar o espaço do fora (inconsciente), produzindo um mito contemporâneo que repita com diferença o exercício literário. Se Freud produz um tecno-xamanismo steampunk em suas interpretações dos sonhos e dos mitos gregos devemos tomar isso como uma potência sci-fi. É por isso que alguns cientistas, como Carl Sagan, fracassaram em escreverem ficções científicas, eles estão preocupados demais com explicações, verdades, realidades possíveis, eles reescrevem artigos em formato romanesco, entregam-se à explicação e à comunicação, e não ao infinito murmúrio. Geralmente eles atingem potências mais intensas quando estão convencidos do que fazem é a ciência verdadeira, de laboratório.

Esse desafio político e estético nos demanda lutar contra a morte, como o cineasta canadense David Cronenberg, que produz corpos, órgãos, bioquímicas em seus filmes: órgãos sem funções que se multiplicam e são vigiados e removidos cirurgicamente pelas autoridades para a manutenção da ordem do Estado, como no filme Crimes do futuro, de 2022. É preciso produzir uma ficção antropológica contrassexual (Preciado, 2014), como em A mão esquerda da escuridão, que nos tire os essencialismos e naturalismos que precedem o debate de gênero. Uma ficção histórica como O homem do castelo alto (2019), de Philip K. Dick, que nos coloca como produtos de uma narrativa histórica contrafactual de um universo histórico contrafactual para nós mesmos, levando a uma outra dimensão a proposta de Walter Benjamin de escrever a história a contrapelo.

É neste sentido que proponho tomar a ficção científica não apenas como um gênero literário – é tarde demais para acabar com isso –, mas, também, como uma proposta de prática de crítica literária e clínica do mundo, qualquer livro que lermos como ficção científica, será, por produção, ficção científica. Mesmo os escritos antes da Revolução Industrial, como nos mostrou Freud. Paul Preciado conseguiu extrair uma ficção pornô-política do universo das revistas masculinas para adultos em seu trabalho Pornotopia: PLAYBOY e a invenção da sexualidade multimídia (2021), trazendo o mundo pornográfico para a ficção científica, que enquanto gênero, muitas vezes, excede pela castidade de seus personagens.

Da representatividade a intensidade: a ficção científica como prática crítica

A proposta que exponho aqui parte da ideia de que a ficção científica não é uma identidade do texto, mas o produto de um esforço de crítica que produz novas relações em uma trama ampla de palavras, objetos e seres. O que faz a ficção ser científica não é o mesmo que torna a ciência científica, se não estaríamos falando de ciência, relações de funções. Existe uma camada sem espessura que entrelaça os textos, uma espécie de véu de transparência mutável, a crítica é aprender a se mover por esse véu.

O fictício não está nunca nas coisas nem nos homens, mas na impossível verossimilhança do que está entre eles: encontros, proximidade do mais longínquo, absoluta dissimulação lá onde nós estamos. A ficção consiste, portanto, não em mostrar o invisível, mas em mostrar o quanto é invisível a invisibilidade do visível. (Foucault, 2009, p. 225)

A ficção só deixa de ser científica por um efeito da invisibilidade do que sempre esteve presente, mesmo para a visão. O essencial não é invisível aos olhos, o que importa, e não o essencial, atinge aos afectos e perceptos. O essencial é pura imagem, o que produzimos nessa imagem é o que intensifica as potências dos corpos-palavras. Talvez a ficção científica mais potente neste sentido seja o texto Um artista da fome, de Kafka (1998), que, no exaustivo esforço de superar o invisível do exposto corpo afetado pela fome, pois é disso que se trata a literatura, de fome, testa a incredulidade dos espectadores da invisibilidade desse invisível presente no corpo magro como imagem pura. Kafka é o produtor de uma vasta obra de ficção científica da microfísica do poder: o castelo, o processo, a máquina da colônia penal, o corpo seco de fome, a carta ao pai.

É por isso que para ser uma ficção científica não basta um rótulo, mas é necessário habitar um entre, atingir as zonas limites e indeterminadas, para delas traçar uma linha de fuga que arraste com sigo a máquina classificatória (Feather, 2023). O gênero ficção científica atua como molar, tornou-se, por meio do investimento massivo da cultura, um território delimitado, uma máquina classificatória, produzida por máquinas classificatórias com o objetivo de se multiplicar enquanto máquina classificatória. Tão bem classificado, delimitado e isolado que derrubou as antigas pontes que o ligavam ao fantástico, tornando o grande problema do gênero catalogar e julgar os filmes em que o som se propaga no espaço ou não, dando a isso o fútil nome de realismo.

Classificar como ficção científica é um processo eficiente e útil: determina a possibilidade de captação de investimento, os custos de produção, distribuição, a demanda de mercado e o retorno esperável. Portanto, de uma necessidade urgente. O que se busca, então, é escapar da lógica da mercadoria, e pensar em uma ecologia semântica. A ficção científica não é para consumo, ou pode não ser, mas sim para construir comuns frágeis e temporários. Esses comuns não são países, culturas, etnias, classes sociais, tribos urbanas, identidades de minorias, mas sim simbioses, trocas, deslocamentos, alimentação, perturbações, desorganizações, caos… movimentos distribuídos pela rede classificatória que impedem a função de captura dessa rede.

Sendo assim, nada pode ser ficção científica, mas sim pode ter potencial ficcional-científico, pois a ficção científica ocorre no encontro, entre obra, autor, seres e mundo. Estabelece relações temporárias que se esgotam e se refazem, produzem órgãos sem função (heresia política-estética de Cronenberg de invocar tais órgãos), se desmancha nas esquinas, favelas e cortiços, se reorganiza em rodas de samba, maracatus e funks, para mais à frente se desfazer em fugas, circular na ordem do trabalho, do dia, do Estado, da economia. Um clube secreto no subsolo de um bar, Clube da luta (Palahniuk, 2021), lutas clandestinas, gordura humana roubada na madrugada para fazer sabonetes, anarcoterrorismo.

Para buscar entender o que potencializa as intensidades da ficção científica irei utilizar um cientista que estuda as ciências: Bruno Latour. Latour (1994) nos aponta para uma anomalia moderna que é um ser antimoderno – o híbrido. Criaturas produzidas em laboratórios que mobilizam questões filosóficas, políticas, climáticas, econômicas, religiosas, se negando a ocupar um espaço na partilha racional do mundo. Falar de drones, por exemplo, mobiliza a agricultura, o transporte de mercadorias, a vigilância e monitoramento, o turismo, o audiovisual, a guerra, a indústria de entretenimento e de brinquedos… A tradicional ideia de cosmologia dos antropólogos não se restringe ao considerados “povos primitivos”, não atingimos o ideal moderno de separar a Igreja do Estado, muito menos as áreas dos saberes. Todo ser está inserido em uma ecologia complexa que não se limita à noção de meio-ambiente biológico e geográfico tradicional.

Veja também:
>> “Os modos de existir de Bruno Latour“, por Tiago Salgado
>> “Quando a pipa pousou no laboratório a língua do doutor queimou em 788 °F“, por Antonio Neto

Para ilustrar melhor retomemos Frankestein de Mary Shelley (2017), que agencia a indústria, a química, deus, a alquimia, as comunidades literária e científica da Europa do século XIX, o mercado editorial, os dramas familiares, o direito ao exercício completo da cidadania negado… Essa capacidade polissêmica da obra é que potencializa a sua construção de sentido nos processos de leitura, crítica, conversa, trocas, nos comuns formados momentaneamente só para isso. A escrita se repete no ato de escrever e no de ler, espelhos que reproduzem infinitamente o escrito contra a morte. Édipo vivo através do tecno-xamã Freud.

Há uma ficção científica molar (Deleuze & Guattari, 1997), identitária que atende ao nível de cultura e mercado, mas é preciso, também, produzir uma molecularidade (Deleuze & Guattari, 1997) para ficção científica, não se trata de uma oposição, mas de linhas de intensidade e transformação. A molaridade encontra-se no campo da representação e da identificação, a molecularidade ocupa o espaço do movimento e da transformação (devir):

Devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de nos tornarmos, e através das quais nos tornamos (Deleuze & Guattari, 1997, p. 64).

Na contemporaneidade a ciência se tornou um discurso de circulação social, estabelecendo disputas narrativas mesmo entre aqueles que estão fora das instituições de produção científica. A ciência é um dos regimes de verdade mais capilarizados da nossa sociedade atual. Ficção científica, portanto, pode ser “ler como um cientista”, um devir-investigador, cientista não no sentido de quem detêm o saber e explica, mas do que experimenta a dúvida e explora o infamiliar, daquele que produz novos sentidos, novas relações, que mobiliza a potencialidade híbrida da obra. O coveiro não lê Frankestein da mesma forma que o cientista. Esse tornar-se investigador é que produz a ficção científica, como o bom livro de mistério só surge na presença de alguém que se transforme em detetive.

Para tanto se faz necessário não apenas acolher os híbridos, mas ampliar o ecossistema de conhecimentos que é a força para expandir as conexões. Colocar apenas as chamadas hard sciences como ficção científica é uma limitação constrangedora. Todos os conhecimentos são produtores de ficções, mesmo quando afirmam categoricamente estarem falando de verdades. Jorge Luis Borges foi um escritor exemplar neste sentido, fez da erudição e da biblioteconomia uma produção de ficções científicas. Um tomo perdido em uma biblioteca do Cairo era mais fantástico que o “capacitor de fluxo” criado pelo físico Dr. Emmett ‘Doc’ Brown.

Resumindo: olhar como um cientista, investigar os híbridos e criar relações com os diversos saberes no ato da leitura e crítica é o que transforma qualquer obra em uma ficção científica, potencializado suas intensidades de transformação e conexões. Isso não se trata de um método para que qualquer livro se torne uma ficção científica, mas sim propostas para não nos limitarmos aos rótulos, que sejamos, também, “escritores” de ficção científica. Pois esse texto mesmo se deseja uma ficção científica literária.

Referências bibliográficas:

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BORGES, Jorge Luis. Ficções. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

CAUSO, Roberto de Sousa. Ficção científica, fantasia e horror no Brasil: 1875 – 1950. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.

DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. Campinas-SP: Papirus Editora, 2012.

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, V. 4. São Paulo: Ed. 34, 1997.

FEATHER, Bartholomew. A máquina classificatória de humanidades: escritos excrementais. Tradução Roberto Dalmo. São Paulo: Livraria da Física, 2023.

FOUCAULT, Michel. Ditos e escritos III. Estética: literatura e pintura, música e cinema. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009.

FREUD, Sigmund. Obras completas volume 4: A interpretação dos sonhos. São Paulo: Companhia das Letras, 2019a.

FREUD, Sigmund. O infamiliar [Das Unheimliche] – Seguido de O homem da areia de E. T. A. Hoffmann. Belo Horizonte: Autêntica, 2019b.

FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. São Paulo: É Realizações, 2014.

KAFKA, Franz. Um artista da fome / A construção. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.

LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaios de antropologia simétrica. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1994.

LE GUIN, Ursula K. A mão esquerda da escuridão. São Paulo: Editora Aleph, 2019.

NIETZSCHE, Friedrich W. A Gaia ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

PALAHNIUK, Chuck. Clube da luta. São Paulo: Leya, 2021.

PELBART, Peter Pál. Da clausura do fora ao fora da clausura: loucura e desrazão. São Paulo: Iluminuras, 2009.

PESSOA, Fernando. Mensagem. Organização, apresentação e ensaios Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro, 2014.

POE, Edgar Allan. Histórias extraordinárias. São Paulo: Companhia das Letras, 2017

PRECIADO, Paul Beatriz. Manifesto Contrassexual. São Paulo: N-1 Edições, 2014.

PRECIADO, Paul Beatriz. Pornotopia: PLAYBOY e a invenção da sexualidade multimídia. São Paulo: N-1 Edições, 2021.

PRECIADO, Paul Beatriz. Testo junkie: Sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.

SHELLEY, Mary. Frankestein: ou o Prometeu moderno. São Paulo: Darkside Books, 2017.

Autor

  • É professor do campus Itaberaba do Instituto Federal Baiano e coordenador do Núcleo de Estudos de Gênero e Sexualidade (Geni-Itaberaba) dessa instituição. Tem graduação em História, especialização em Jornalismo Científico, mestrado em Divulgação Científica e Cultural, doutorado em Teoria e História Literária, todos pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde também cursou o pós-doutorado.

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