Em alguns momentos, creio que o panorama literário, principalmente aquele formado por alguns jovens autores, se baseia no paradigma do Bartleby, o jovem escrivão imaginado por Melville. A indecisão (ou a impertinência) representa, antes de tudo, a inocuidade do pensamento que perpassa sua produção. O passo à frente no que concerne a uma identidade particular que marque com força suas escolhas estéticas parece ficar emperrado no velho ‘Eu preferiria não fazer’, incansavelmente repetido pelo estático escrivão.
Daí vem um mal tipicamente brasileiro: quando não se consegue dar aquele passo adiante, se pratica aquilo que Maiakóvski com tanta propriedade chamou, em poema do mesmo nome, de ‘reunismo’. A precariedade do sistema intelectual brasileiro exigiu, ou forçou aos jovens autores, que criassem grupos como as velhas academias — nos quais a bajulação mútua era a regra e o público uma mera quimera — e essa criação se dá com muito mais impetuosidade do que qualidade.
Obviamente que a noção de ‘movimento’ e ‘escola literária’ é um mal produzido pelo ensino de Literatura que ainda sob uma ótica historicista fez uma classificação tacanha e incompetente, colocando no mesmo universo estético autores tão díspares quanto inclassificáveis. Mas parece que o conceito de movimento foi ideologicamente perfeito para certos momentos da nossa literatura, principalmente no Romantismo e no Modernismo de 22 (e até mesmo o movimento regionalista de 26, de Gilberto Freyre): a ideia de comunhão estética, de um mesmo ar que se respira, oxigenando o pensamento da comunidade é emblemática para se encobrir lacunas de mediocridade, dos quais poucos conseguem se sobressair com o passar do tempo.
Parece curioso que, num estado como Pernambuco, por exemplo, no qual o talento individual sempre suplantou qualquer conceito de escola ou movimento, (Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto, entre outros), agora tentem impor o pensamento de que a ‘nova literatura contemporânea’ [sic] passe obrigatoriamente pelo caminho de movimentos como Nós-Pós e Urros Masculinos, que, entre outras macaquices literárias, criaram a tal Freeporto, evento alternativo à Festa Literária Internacional de Porto de Galinhas (Fliporto). Mas por que ater-se a tal ‘movimento’?
O ‘Eu preferiria não fazer’ aqui aparece de forma sintomática: o clima de irreverência e ‘dane-se a Academia’, ou os agentes literários, ou o mercado editorial, ou mesmo o leitor ou ainda uns aos outros (no pior sentido da palavra – ou no melhor, quem sabe) é a tônica. Tudo cuidadosamente maquiado para disfarçar suas faltas de opções estéticas por meio do riso fácil e de uma falsa ironia que antes de atingir negativamente seus alvos parece ser uma isca para o próprio mercado editorial que se debruça muitas vezes a um humorismo capenga e a um tipo de texto que pretende salvar vidas e corações, mas que é muito mais representativo de um vazio tão comum àquela onda que busca apenas o choque calculado pelas atitudes pretensamente ‘inovadoras’. Um vanguardismo ultrapassado que descarta qualquer possibilidade de um pensamento agregador realmente capaz de teorizar sobre os caminhos da literatura como até hoje a Oulipo (Ouvroir de Littérature Potentielle – Oficina de Literatura Potencial; dentre os quais Raymond Queneau, Georges Perec, Marcel Bénabou, Jacques Roubaud, além do Italo Calvino, se sobressaíram) consegue fazer, sem que se passe por vanguardista ou pior, paradigmática. A coragem que se tem em fazer, ao contrário do postulado de Bartleby, é o que os diferencia dessas modinhas e que garante a sua permanência.
Negar-se a fazer (se encararmos isso como uma resposta ao desafio de derrotar as soluções simplistas e acomodadoras) e insistir bater na tecla de um suposto deboche, de uma visão infantilóide do ato de escrever, que foge constantemente do pensamento crítico é um certificado de extrema incompetência e covardia. Longe de apregoar uma visão idealista ou funcional da Literatura o que eu imagino é que fugindo dos simplismos, buscando um retorno ao engenho da narrativa e da poesia pensada (não uma recorrência a concretismos ultrapassados ou a mimetismos de poetas ‘undergrounds’) para ser realmente poesia e não um simulacro performático, é que encararemos as grandes e as pequenas questões. Aí é que se sobressai o talento individual, mesmo aqueles que se afiliem, conscientemente ou não, a determinado pensamento estético.
‘Eu preferia não fazer’ é um slogan perfeito para os aglutinadores de plantão, para os Bartlebys do século XXI, que ficam presos à sua própria inércia, seres que desconhecem aquela carta de Kafka a Oskar Pollak, na qual ele diz que precisamos de livros que quebrem o mar de gelo que há em nós.
Aí está a diferença entre os que não preferem fazer, por medo e incapacidade, e os que verdadeiramente fazem, e que são facilmente reconhecidos, porque permanecem.