Esse mundo não é o suficiente?

De onde vem essa a nossa necessidade de fantasiar outra realidade?

Imagine um mundo sem tecnologia, onde seus habitantes convivem pacificamente com seus semelhantes e com a natureza. Esse mundo tem uma rica cultura e uma história maravilhosa.

Você encontra algo assim em Avatar. Pandora é uma das luas do planeta Poliphenus, esse satélite é essêncialmente uma floresta gigante com grande diversidade de plantas e animais. Existe também uma raça humanóide chamda Na’vi, que diferente de nós, convive pacificamente com seu mundo.

Não vou focar especificamente no filme, você já deve tê-lo visto, ou pelo menos lido resenhas por ai. O fato é que não é difícil se apaixonar por esse mundo fictício, principalmente pela ótima qualidade visual do filme, mas ele se tornou um tipo de religião, alguns fãs até cogitaram suicídio:

“Eu não consigo parar de pensar sobre todas as coisas que aconteceram no filme e todas as lágrimas e arrepios que tive com ele. Eu até contemplei suicídio pensando que se eu fizesse isso, eu renasceria em um mundo similar a Pandora e tudo seria como em Avatar.”

“Eu tive exatamente o mesmo sentimento depois que vi Avatar – a doentia sensação de que Pandora não é real – e tentar tudo para apenas fugir dessa realidade e viver lá, até tentar me colocar em coma para que meu mundo dos sonhos fosse igual o de Pandora.”

[Veja também: Homem morre após assistir Avatar]

Quando li os depoimentos acima sobre Avatar fiquei imaginando em que mundo fictício eu gostaria de viver e imediatamente lembrei de Vanilla Sky, que possivelmente foi o filme que mais mexeu com minhas fantasias. Viver para sempre dentro de minha própria mente seria o meu desejo mais fantasioso.

Mas assim como em Matrix, viver dentro de minha própria mente não poderia ser distinguido desse mundo real, afinal o sonho é a realidade enquanto sonhamos.

Mas mesmo ao racionalizar a questão ainda fica aquele sentimento de que “poxa, como eu gostaria de viver em uma realidade paralela!”. De onde vem esse sentimento? Por que não nos contentamos como nosso mundo real?

Esse sentimento de desencanto perante esse nosso “mundinho feio e sem graça” não é algo novo; desde de que foi inventada a primeira história de fantasia, os homens sonham com outros mundos.

A fantasia em nossa infância

Para entender um pouco sobre como criamos essa necessidade de fantasiar encontro uma boa resposta na literatura infantil.

Do mesmo jeito que temos a “jornada do herói” em praticamente tudo que é produzido para adultos, temos os contos de fadas como grande maioria das histórias infantis.

A formula mais simples é tirar uma criança infeliz desse mundo feio e injusto e torná-la especial em outro mundo.

Pegue todos os filmes de princesa da Disney, pegue todos os livros infantis sobre bravos cavaleiros e teremos a mesma formula. Não me admira o estrondoso sucesso de Harry Potter, menino comum, órfão, mora com tios que o odeiam, sofre bulling do primo e de todos os colegas da escola. Qualquer garoto se reconhece imediatamente e é levado a fantasiar que um dia alguém irá buscá-lo para estudar numa escola de magia (ou treinar para ser um guerreiro, cavaleiro jedi, etc).

Para a criança que não tem força alguma para mudar o mundo tudo que lhe resta é sonhar com essa realidade paralela. Nós crescemos acreditando que alguém viria nos buscar, que finalmente nos tornaríamos o herói que salvaria o mundo, ou, no caso das meninas, o pai, rei de sei-lá-onde, a buscaria para torná-la princesa. (Como em Labirinto do Fauno).

Mas logo entendemos que não somos nenhum bruxo esperando Dumbledore, nosso pai não é um rei de tão-longe-distante e nenhuma fada vai nos levar para a terra do nunca.

A jornada do herói

Mas a maioridade chega, ninguém busca a gente para coisa nenhuma, normalmente nossa vida fica pior, somos subjugados violentamente pelo mundo, a responsabilidade sobre nossas ações recaem bruscamente sobre nossos ombros e não temos mais tempo para sonhar. (Tudo bem, não é tão dramático assim, mas vocês entenderam.)

A sensação imediata é que dentro desse mundo normalzinho que vivemos é praticamente impossível fazer alguma diferença, ser reconhecido ou lembrado. Mas o nosso ego precisa se sentir especial apesar de nossa insignificância, por isso nós simpatizamos tanto com os personagens heróicos que existem na literatura desde que foi contada a primeira lenda ao redor de uma fogueira.

As novas fantasias que consumimos nos vendem a ideia de que podemos sim fazer a diferença, que temos sim a possibilidade de mudar tudo. No entanto, analisando a “jornada do herói”, perceberemos que ela nos engana. Em um primeiro momento você imagina que as decisões para ser bem sucedido são inteiramente suas, mas vamos observar mais de perto os passos dessa jornada.

Tudo começa com o cotidiano, o herói com todo seu potencial é apenas mais um na multidão. Como exemplo veremos Neo (protagonista do filme Matrix) trabalhando insatisfeito na grande empresa de softwares. Então alguma coisa acontece.

Aqui já observamos a influência externa, se nada acontece então não haverá jornada. A maioria das pessoas para por ai, fica esperando eternamente tal acontecimento. Mas outros, com olhos atentos, percebem que “essas coisas” acontecem o tempo todo. Neo, por exemplo, procurava pela verdade, tentava descobrir uma resposta.

Se temos a percepção acurada vamos receber “o chamado“. Assim como no passo anterior, esse “chamado” pode acontecer o tempo todo e é visto por quem quer ver. Até ai a responsabilidade é nossa. O elemento que nos engana é a questão de aceitar ou não esse chamado. De acordo com a jornada do herói, assim que você negar o chamado “real” apareceria um mestre que aconselha a aceitar.

Esse é o truque. Se o mestre não vem, é por que não é a jornada, portanto vamos ficar a vida inteira esperando o tal mestre. Eis a fórmula para nos manter inertes e ainda infantis dentro de nossas fantasias. Antes a gente esperava Dumbledore, depois a gente espera por Morpheus, mas nenhum dos dois chega.

Ainda que nossa vida não seja como um roteiro de cinema não é difícil adaptá-la à “jornada do herói”, quando imaginamos que nossa vida seria muito melhor em outro emprego, em outra cidade, com outras pessoas, há resquícios dessa fantasia. Conscientemente sabemos que a mudança de espaço não muda nada se não houver uma mudança interior, mas ainda sim fantasiamos a vida em outros lugares.

O fato é que enquanto ficamos preocupados com essas mudanças externas e acontecimentos extraordinários, acabamos por esquecer de tudo que poderíamos fazer em relação a essa mudança que almejamos. A fala toma o lugar da ação e passamos a discursar sobre os nossos planos como se isso fosse em si a realização dos mesmos.

A frustração é marcada pela espera, seja de promessas de outrem, seja pelo “tempo certo”, mas, sem um movimento real acabamos por permanecer inertes.

O mestre não veio, e agora?

Obviamente as duas fases anteriores não são regras gerais para todos os seres humanos, há quem morrerá esperando Dumbledore, há quem se matará para encontrar com Neo e há aqueles que não tomaram responsabilidade nenhuma, nem por sonhar, e se entregarão aos desígnios divinos.

O nosso egocentrismo se espalha por todos os pilares da estrutura social sendo a religião o mais emblemático. Segundo Osho: “acreditamos em Deus por causa do nosso ego: Deus criou o homem, e Deus criou o homem à sua imagem, e Deus criou o homem como a criação suprema”. Então criamos uma rede complexa de realidades paralelas, seja o céu, os jardins de Alá, reencarnação, Nirvana, Tao, qualquer fantasia que possa dar um pouco de significado a nossa existência.

Sem dúvida essa é a fantasia mais presente na sociedade, ainda que tivermos sonhado em ser o cavaleiro dourado em nossa infância, ou ser “O Escolhido” no início de nossa maioridade é na religião que depositamos nossas mais valiosas fichas. Se nada der certo pelo menos ainda podemos ir para o céu.

Mesmo aqueles que não acreditam em nenhuma outra realidade fantástica (religiosa ou não) guardam um sentimento de memória, eles querem ser lembrados por esse mundo real marcando seu nome na história seja pela ciência, literatura, esporte, etc. Todo mundo tem essa ânsia de se tornar herói de sua época.

Claro que olhando por esse lado cético a fama e fortuna também não adiantariam de nada pois não haverá nada após essa existência, todos os esforços acabarão sendo inúteis.

Então somos insignificantes?

Os seres humanos se imaginam importantes por causa da autoconsciência que nos distinguem dos demais animais. Quando nos percebemos diferentes de todo o resto do mundo a primeira conclusão que tiramos é que somos especiais.

Esse é o começo de toda a fantasia, a nossa autoconsciência nos impressiona de tal forma que temos que criar uma bela história para nossa existência, afinal nosso ego não aceita que somos fruto do puro acaso. Podemos até aceitar que o universo é fruto do caos, que o planeta é fruto da sorte, que a seleção natural nos levou a dominar os outros animais, que não somos nada mais que a combinação genética dos nossos pais, mas não podemos acreditar que somos insignificantes.

Perdemos tanto tempo esperando por outros mundos, desígnios divinos, jornadas fantásticas que quando percebemos serem todas elas ilusórias caímos em outro erro, achar que não há nenhum sentindo em viver. É por isso que aqueles fãs de Avatar que citei no começo preferem morrer sonhando com o mundo de Pandora, eles imaginam que sua vida não tem significado no nosso mundo real.

Essa sensação não é incomum, afinal estamos cansados de esperar pelo mestre, não temos nenhuma certeza se existe o céu, ou reencarnação, o príncipe encantado está atrasado há décadas. Essa frustração pela inexistência de um mundo fantástico cria a sensação de que o mundo real é algo genuinamente ruim.

Mas vamos fazer uma jornada no mundo que podemos sentir, esse cheio de teorias e incertezas. Observando a história desse mundo lembraremos como tudo começou: grande explosão, caos, estrelas, vida, evolução, consciência, corrida de espermatozoides.

Só então perceberemos que essa sucessão de acontecimentos incríveis culminou na nossa existência. Se observarmos por esse ponto de vista entenderemos que dentro desse universo realmente não existe nada mais especial do que nós mesmos.

Há muito tempo desejo presenciar um evento desse tipo.
Contudo, ignorei que na procriação humana.
Milhões de células competem para criar vida.
De geração em geração, até…
Finalmente, sua mãe ama um homem, Edward Blake, o Comediante.
Um homem que ela teria todas as razões para odiar.
Mas a despeito da contradição, e incalculáveis improbabilidades.
Foi você.
Somente você.
Que surgiu.
Em uma forma tão específica.
De todo o caos.
É como transformar ar em ouro.
Um milagre.

– Cena de Watchmen (2009)

Autor

  • Formado em jornalismo, sempre trabalhou com programação. Depois, se especializou em marketing e agora está mais focado na disseminação da magia do caos e da filosofia zen.

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