Essa ânsia de escavar à força – três poemas inéditos do “Osso Vazio”

Chiu Yi Chih compartilha versos de um livro a ser lançado: “[…] as turquesas, tropeçando nos abismos do céu, já tinham pavimentado […] uma constelação”

imagem: Jannis

a cada retenção e contração, renasce um osso de ventosas raríssimas, respiradouro indevassável, êxtase das pedras, orquídea que reverbera na nevasca: um desfiladeiro-de-mil-labaredas ruminando num mundo de obscuridades, quase como aquelas folhagens que mastigam algumas miniaturas: o avesso-milagre da fúria se refazendo com outras vísceras, com vidas de outras raízes, rouquejando por entre as alígeras arestas de uma pilastra insaciável, quase como essas profusas colisões de pérolas se esfarelando em direção ao doce orvalho luminescente: espelho de águias endomórficas, cataratas vermiculosas, germes pontiagudos, caranguejos de coxas adamantinas: um caracol-emblema de caudalosa convulsão que mal saberia se estancar na vastidão de sua própria injuriosa fulguração

Veja também:
>> “Outras Cidades Invisíveis | Vigorosa“, por Thiago Rosenberg
>> “Ricardo Aleixo: sobre o poeta e a poesia“, por Letícia Silva

***

somente nas resinas da inútil escavação se derramam as risadas insubordinadas de um animal irredutível, ó horror involuntário que se congela entre os escárnios de zinco, onde cada vez mais meu corpo se reveste de uma estatura colossal, enquanto a estrada de fogo aspira o inexprimível eclipse das molduras insulares, enquanto os rangidos são irrisórios vidros vacilantes, as manchas proscritas que se encravam nas imensidades, ó tremores e inervações se enrubescendo em cada veia adormecida, em cada derrisão de raríssima regeneração, opulência-escuridão que todavia se extravasa além das secreções de fósforo, como se nada mais pudesse ser encenado nas fétidas e difusas difamações, como se contra as multidões intransitáveis, a altivez humana se tornasse inverossímil, ó audácia fatídica por onde o cascalho de mercúrio escancara a insolente barbaridade das águas adiposas, como num instante em que os pensamentos são inexoravelmente arremessados pelos músculos dissonantes de todas as malhas desvencilhadas

***

para Alberto Marsicano

essa ânsia de escavar à força, com sibilantes maquinações dos diamantes, escarificando o crânio por onde se desatam translações de alto a baixo, essa rotação de sobrancelhas e tumefações no éter, tal como a nervura dos ponteiros se alçando fora das vitrines ou a evasão infrene que bruscamente se assoberba, estalando algumas agulhas histriônicas à nossa espera, tal como o sangue da esmeralda nos torvelinhos de sempre, da cabeça aos pés, essas turmalinas secretadas ao fôlego de límpida resina, essa tempestade de carvões estridentes se soerguendo à altura do pescoço, nossa tentativa de apagar a fome das lânguidas embocaduras, as faces plúmbeas se reclinando sobre a madeira, nosso inverno de políssonas opalas solfejando a intercalação ferruginosa, mal sabendo se aqueles quartzos oculares da suntuosa orquestra permaneceriam na fogueira renitente ao ruído das cavalgadas, onde, de tanto se incharem, os topázios se irrigaram a plenas cutiladas com todas as camisas, chifres e espumas equinoformes sedentas de outrora, onde aos nossos passos se curvaram os penachos da correnteza – esse bafejo estonteante dos estuários – quando éramos incapazes de resguardar os cristais do espólio estrangeiro, incapazes de perceber que as turquesas, tropeçando nos abismos do céu, já tinham pavimentado em cada braseiro-cinturão, uma usina de safiras, uma constelação tão vívida, tão temível, como essas abóbadas, essas volutas de rubis incandescentes que se exalam de nossas gargantas

Autor

  • Chiu Yi Chih (邱奕智) é chinês nascido em Taiwan e naturalizado brasileiro, professor de filosofia taoísta e de mandarim (leitura instrumental). Filósofo, poeta e tradutor das obras clássicas Dao De Jing, de Laozi; Vazio Perfeito, de Liezi e A arte da guerra, de Sun Tsu, todos publicados pela Editora Mantra. Mestre em filosofia antiga grega e graduado em Letras (grego clássico-português), ambas as formações pela Universidade de São Paulo. É autor dos livros Naufrágios (2011), Metacorporeidade (2016) e dos e-books Filosofia do Dao, Meditações e comentários sobre Dao De Jing, dentre outros. Mantém um site profissional.

    Ver todos os posts

Compartilhe esta postagem:

Participe da conversa