Ensaio sobre o Fracasso

Fracasse. Fracasse de novo. Fracasse melhor.

A frase acima é do dramaturgo Samuel Beckett. Até onde pude perceber, o entendimento que se tira, em geral, do dito, é que Beckett seja extremamente pessimista; que não alimente qualquer esperança — que sugira a derrota e prometa que a vitória raramente virá. Longe de destruir a esperança, Beckett a restitui como algo possível, a recria como algo concreto.

Considere palavra por palavra, vá devagar através das orações. O primeiro “fracasse” vem em tom imperativo ordenar ou pedir ou sugerir o exato oposto da ordem social cotidiana: vença. Antes, não havia uma escolha, era ganhar ou ganhar, conseguir ou conseguir, a perda é indesejável, é prejuízo, é atraso, é vergonha. Certo? Após a primeira palavra, o fracasso se torna uma atitude ativa, uma escolha. Então, “fracasse de novo” reforça tal ideia, tira da derrota o estigma de fim de caminhada, nos diz que depois de fracassar você pode fracassar novamente. Isto diz: não pare. Isto diz: persista. Mas Beckett não é Coelho. Ele não diz “persista, porque mesmo um relógio parado tem razão uma vez ao dia, você vai conseguir!”. Não. Beckett diz: “persista”. E é só.

Por fim, “fracasse melhor” estabelece a evolução por via da falha. Uma tentativa. Fracasso. Outra tentativa. Outro fracasso, mas um passo adiante da última vez… isso não é pessimismo. É a formulação da esperança em termos de esforço. Uma espécie de fé sem garantias.

Saindo disso, desembocamos em Clarice Lispector. No A Paixão Segundo GH, ela escreve: “o erro é um dos meus modos fatais de trabalho“. Repare primeiro na palavra “fatais”. Não significa isso que fatalmente, inexoravelmente, invariavelmente ela incorre no erro? Porém, ela vincula esse erro a trabalho. Assim, o erro é algo que produz. Vejo aqui um paralelo com toda a dissertação acima; Clarice leva adiante tudo aquilo. Se o trabalho é o que permite o progresso, o sustento próprio, a evolução tecnológica e intelectual, a arte — não seria absurdo dizer que o erro desenvolve, alimenta e cria. Não diretamente por isso, mas por algo regido por essa lógica, Oswaldo de Andrade clamava pela “contribuição milionária de todos os erros“…

Oswald se refere à língua. E ela, como a própria vida, evolui erro a erro.

Com uma poesia mais leve, Fernando Sabino, em O Encontro Marcado, expressa algo similar:

E de tudo restaram três coisas: a certeza de que estaria sempre começando, a certeza de que era importante continuar e a certeza de que seria interrompido antes de terminar. Fazer da interrupção um caminho novo. Fazer da queda um passo da dança, do medo uma escada, do sono uma ponte — da procura, um encontro.

O medo como instrumento, o sono como transporte, a dança é ininterrupta.

Portanto, fracasse. De novo. E, então, melhor.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

Compartilhe esta postagem:

Participe da conversa