Dossiê Avatar

De Avatar, foi dito que era antimilitarista, ambientalista, revolucionário. O quanto isso é verdade? E entre outros filmes de fantasia, qual seu valor?

Foi dito que Avatar foi o primeiro filme a tratar mal o chamado imperialismo americano e o avanço irreprimível de seu exército. Foi dito que ele culpava em definitivo a sociedade pela agressão à natureza. Assumir que essas afirmações sejam verdade sem nenhuma gradação é um engano. No que tange ao militarismo, Avatar se inscreve em uma linha que não o nega e que já teve expressões em outros filmes de Hollywood; sobre a natureza, segue a natureza dos estúdios e trata de ideias que podem ou devem ser tratadas; seu apelo à tradição antiga é bem mais um horror à tecnologia comum em outras obras do mesmo diretor, e se mostra em descompasso com a forma da própria produção: evolução tecnológica, 3D, computação gráfica, excesso de energia e dinheiro para proteger o ideário de quem vive e entende o que está nas plantas, nos animais, no conhecimento ancestral? Incoerente. Como isso se dá?

É claro, como filme de ação vertiginosa e efeitos especiais impressionantes, Avatar é muito bem realizado. Além disso, houve detalhismo na criação de Pandora, o desenvolvimento de uma língua para seus personagens, o desenho de nova fauna e flora, etc. Também creio ser necessário atentar para a importância que o diretor James Cameron tem para a cultura pop, ele que dirigiu Exterminador do Futuro, Titanic, True Lies, Aliens — incorporou imagens e frases ao nosso imaginário, gerou produções derivadas de suas ideias e continua relevante para a indústria cinematográfica. É um homem perfeccionista e ambicioso, que disse para a New Yorker: “se você coloca seus objetivos em um nível ridiculamente alto, você termina fracassando acima da maioria das pessoas”. Não vamos tratar do filme nestes âmbitos, mas eles devem ser considerados, porque dimensionam seu valor.

Também é preciso dizer que, apesar das inovações tecnológicas, a estrutura de roteiro segue princípios antigos. Primeiro, segue Griffith: temos uma situação de equilíbrio, antagonistas que a ameaçam, forças heroícas que os enfrentam, restabelecimento do equilíbrio. Segundo, os estágios da saga do herói, reconhecidos por Campbell em mitos: o herói é contatado por alguém que o leva a conhecer um mundo novo, conhece um mentor (que em geral morre, e é o que ocorre em Avatar (a doutora), Star Wars (Obi-Wan), Harry Potter (Dumbledore) e passa por provações extremas, vence, depois a provação extrema posterior… o contrataque da natureza, providencial, se parece muito com a ajuda das Águias em O Senhor dos Anéis também. Retornamos uma tese do primeiro parágrafo: a forma do roteiro é conservadora; em Hollywood, o fascínio de nova tecnologia e novos efeitos também é conservador.

Essas semelhanças posicionam Avatar em uma certa tradição, e é nela que, em um primeiro momento, podemos julgá-lo. Quão bem-acabada é Pandora se comparada com Hogwarts ou com a Terra-média? O quanto a língua Na’vi impressiona perto da língua élfica de Tolkien? E o quão fascinantes são suas criaturas e plantas frente aos sucessivos diferentes mundos de Final Fantasy, entre outros? Seu vilão é tão interessante quanto Darth Vader? O herói tem o carisma de um Indiana Jones? Repito: ação e efeitos especiais, relevante. No entanto, como fantasia, o quanto podemos valorizar Avatar?

Anti-imperialismo

Tem-se a impressão de que o filme é contrário ao avanço militar americano porque se pensa de acordo com um paralelismo simples: em Avatar, os exércitos avançam sobre uma região em que algum povo vive porque lá se encontram recursos valiosos. Todo filme dialoga com a história e com o momento em que é lançado; lembramos dos EUA da invasão do Iraque e de outros muitos, muitos exemplos de interferência militar americana em nome de interesses econômicos escusos. Um documentário para dar alguns dados sobre isso é Razões para a Guerra (Why We Fight, no original), de Eugene Jarecki (2005) [assista no Google Vídeo]. Pelo fato de que esses exércitos invasores são derrotados, crê-se que o filme de Cameron é uma espécie de mea culpa. Não é.

Em primeiro lugar, se se afirma que esse filme dialoga com os fatos recentes dos EUA, não é com o governo Bush e anteriores que ele conversa, mas com Barack Obama e a mudança ou aparência de mudança na diplomacia, não mais as guerras preventivas, e sim o diálogo, certa abertura com Cuba, discursos no Oriente Médio, Nobel da Paz, etc. Se a eleição disse ao mundo: somos um novo país, Avatar vem e fala de um soldado americano que percebe a destruição causada pela ambição indiscriminada, assume a culpa, luta por ideais. Cameron e Obama, entretanto, não negam a necessidade de guerra, como expresso pelo presidente no discurso do Nobel: existem situações (ele cita Hitler) em que o uso da força é necessário. E a guerra é feita no filme, reunindo todos os povos em comum alegria de combate, contra as forças do mal. Hoje, o Irã continua sendo força do mal, por exemplo. Ele é, de fato?

Depois, consideremos que a superioridade americana, por assim dizer, é mantida. Pense em O Último Samurai, em que tudo ocorre como em Avatar. O herói é levado à convivência de seus inimigos, ele, um homem machucado pelo passado e lutas antigas. Lá, descobre que os que eram chamados de bárbaros possuem uma tradição fascinante, aprende, evolue, se torna uma pessoa melhor. Ele inclusive se torna um dos melhores segundo as regras bárbaras. No momento da guerra, é só sob a liderança dele que a vitória se dá. Tanto em um filme como no outro, o americano absorve todo o conhecimento útil, mas os bárbaros precisam de tutela sempre. Isso remete aos filmes ‘latinos’ feitos à época da política da boa vizinhança, como os que estrelou Carmem Miranda e Alô, Amigos, da Disney — a utilização diplomática do cinema, política, com intuito de colonização cultural. Avatar realiza ato parecido e, por sua forma metáforica, atinge muito mais do que um só povo.

Ambientalismo

Avatar demonstra como o homem pode agredir a natureza. Sim. Mas já sabemos disso. O filme foi lançado mundialmente no dia 18 de dezembro, coincidentemente (?) no período em que era realizada a Conferência do Clima de Copehangue. Há uma consciência mundial crescente, que se desenvolveu nos últimos cinquenta anos, em prol da defesa do meio ambiente. O que Avatar acrescenta, a, por exemplo, Uma Verdade Incoveniente? No artigo “Assim é se não lhes parece“, publicado na Piauí (com cadastro gratuito, você lê online), João Moreira Salles trata de Milk, e afirma que, mesmo o sendo a história de um ativista gay, se mantém conservador pela forma. Desde a escolha de Sean Penn para o papel principal, “um homem com sólidas credenciais de macho no papel de um homossexual”, até a narrativa convencional que destoa do estilo de Gus Van Sant, é deste tipo de concessão que se precisa para tratar de ideias mais liberais. Destarte:

“Hollywood é ambígua e se desdiz o tempo todo. Ainda que à revelia, o conservadorismo pode gerar avanços, do mesmo modo que a posição liberal é capaz de perpetuar o estado das coisas. O cinema industrial não é liberal nem conservador, pois não pode se dar ao luxo de ser bem uma coisa nem outra. A grande sabedoria da indústria do entretenimento é intuir o que pode ou não ser dito em determinado momento. Filmes tidos como liberais muitas vezes apenas ratificam posições já consolidadas na sociedade (…)”.

Por outro lado, também se pode ver nesse ambientalismo um pavor do progresso que existe nos outros filmes de Cameron. Em Exterminador do Futuro, a tecnologia foge do controle humano e passa a assassinar seus criadores. Em Aliens, a viagem ao espaço traz problemas, lá existe algo forte e rápido que não podemos conter. Em Titanic, toda a técnica humana, e a arrogância do construtor do navio (“nem deus afunda o Titanic!”), tudo posto abaixo por um bloco de gelo. Foi em um texto de Daniel Piza que encontrei essa análise; como se verá na íntegra do artigo dele, não concordamos em tudo, mas, entre outras coisas, ele diz:

“(…) essa crítica da civilização técnica, que mostra mais uma vez como ambientalismo e religião têm se confundido nos últimos tempos (e a própria escolha do nome Pandora para o planeta dos lépidos gigantes azuis não me deixa mentir), soa estranha num produto que não seria nada sem as invenções da informática e dos satélites. Os chamados “progressistas”, pelo jeito, continuam a detestar o progresso. (…) Steven Spielberg e George Lucas não pensam menos superficialmente, certo, só que se permitem mais lirismo e leveza”.

O que ele chama de “crítica da civilização técnica” e eu chamei de “pavor do progresso” se inscreve em uma tradição que inclui, por exemplo, ideias que trouxemos no texto “Contra a Cidade“. O valor dado à natureza, o conceito de ‘bom selvagem’, que define bem todos os Na’vi, tudo isso aproxima Avatar de alguns princípios românticos e da fuga idealizada. Até a infância, que já recebeu a nostalgia de Casimiro de Abreu, de certa forma é representada. Assim que entra no corpo de seu avatar, o protagonista brinca, joga, corre, e só pára frente ao que poderia representar sua mãe — a mentora, a chefe do projeto. E é pela curiosidade dele que os primeiros problemas acontecem. O mesmo herói que planejou um ataque e era um velho sofrido no início do filme, soldado experimentado, se diverte com plantas desconhecidas. E talvez seja por isso que algumas pessoas pensam em fugir para Pandora, e pensam mesmo em suicídio, como tratado em outro texto da revista.

Esse pavor e essa fuga são extremismos. É possível argumentar a favor deles?

No Mais

Da evolução técnica em Avatar e sua exibição em 3D foi dito que representam o que seria uma tendência do cinema atual e uma resposta à pirataria: a indústria passa a proporcionar, nas salas, uma experiência que não se pode ter em casa. O Estado de S.Paulo tratou sobre essas perspectivas em dois textos: um, analisando se essa seria uma revolução como foram as outras na história do cinema; outro, sobre o que 3D está fazendo, fez e talvez faça.

No mais, resta saber como serão os próximos filmes, já que Avatar será uma trilogia. Pelas regras de George Lucas, o segundo será mais sombrio e o terceiro, redentor. A descobrir.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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