Da Pertinência das Discussões Atuais sobre Cinema Clássico (parte 2)

Finalizei a primeira parte desse artigo procurando esclarecer a minha visão sobre filmes como o da franquia da saga Crepúsculo. Fugindo da mera adjetivação entre bom ou ruim, procurei aprofundar uma visão sobre eles a partir de uma perspectiva histórica e teórica. Tentando fugir um pouco de conceituações estanques, embora centrando a minha análise sobre um núcleo explicativo que possibilite refletir sobre os filmes rotulados pela indústria e pelos críticos de blockbusters.

Tudo isso para responder a uma “provocação” pessoal, mas a verdade é que nunca afirmei categoricamente que Crepúsculo era um filme ruim – do ponto de vista técnico. Afirmei que não gostava, pois já tinha visto o primeiro filme, o que é bem diferente.  Tentei expor não somente o que significa bom ou ruim do ponto de vista da crítica e de como ele se encaixa no cinema, enquanto um artefato cultural. Embora explícito em minha opinião, procurei não adjetivar diretamente o filme, mas sim o modelo que ele segue, na tentativa de aprofundar a reflexão.

Assim, podemos seguir adiante na discussão, partindo do cinema clássico e dirigindo para uma problematização que podemos encontrar em discussões como essas, pautadas numa dicotomia que caracterizei como sendo entre arte versus entretenimento. No meu breve intercurso histórico, descrevi rapidamente como essa discussão surge no cinema, numa oposição entre os cinemas europeus (de arte) e o sistema de estrelato (de entretenimento) liderado por Hollywood, sobretudo a partir da década de 1960, com a entrada em cena de movimentos como a Nouvelle Vague francesa e os novos cinemas ao redor do mundo. Coloquei também que alguns teóricos do cinema afirmam ser essa dicotomia uma forma simplista de analisar o cinema, o que não significa que ela não tenha sido válida para explicitar o estado das coisas num determinado período. Se essa leitura foi gerada é porque havia um contexto sociocultural e político que o permitiu.

Arte e entretenimento se “contaminam”

De qualquer forma, transpor essa dicotomia de forma estrita ao que vemos hoje, acredito que não seja possível. Os meios de comunicação sofreram alterações gigantescas com as novas tecnologias (as Tecnologias da Informação e Comunicação, TIC). Elas não só baixaram os custos de produção como pulverizaram as formas de difusão de filmes e também promoveram a diversificação da divulgação deles como, por exemplo, por meio da web: em redes sociais, blogs, microblogs, etc.

Há um embaralhamento entre os termos, ainda que possa haver uma distinção entre os conceitos de entretenimento e arte e mesmo que a intencionalidade delas sejam claras, demonstrando uma leitura e um posicionamento político sobre o mundo em que se vive. A verdade é que desde sempre a grande indústria cinematográfica esteve atenta aos cineastas que rompiam com as suas regras.

Nesse ponto é que observamos que há uma relação imbricada entre entretenimento e arte, em que o cinema de autor se encontra com o esquema industrial hollywoodiano, não sendo tudo tão puro quanto gostaríamos que fosse. Há diversos filmes que se utilizam das estratégias blockbuster, mas aliam elementos que os diferenciem dos meros produtos de entretenimento. Trata-se de diretores que galgam certo status dentro de um sistema e imprimem um toque pessoal aos produtos quase sempre despersonalizados de Hollywood.

Podemos citar diversos diretores que trabalham nessa lógica, como Christopher Nolan e sua trilogia de Batman (BeginsO cavaleiro das Trevas e O Cavaleiro das Trevas Ressurge), Tim Burton e praticamente todos os seus filmes. Martin Scorsese, Steven Spielberg, James Cameron, Quentin Tarantino, etc., enfim, poderíamos até fazer uma grande lista sobre diretores que se inserem no formato blockbuster sem, contudo, deixar de imprimirem suas marcas pessoais sobre elas.

Todos esses diretores (alguém consegue lembrar o nome do diretor ou diretora dos filmes da franquia Crepúsculo?) trabalham em algum nível de espetacularização das histórias contadas, são filmes que prendem pela tensão emocional irrefreada, com poucos espaços de “respiro” entre uma cena e outra. São filmes nos quais os sentimentos são “manipulados” à exaustão e não o pega de surpresa em relação ao seu desfecho, ainda que haja algum final “inesperado”. A satisfação do cliente é garantida.

Martin Scorsese, ilusionistas, iconoclastas e contrabandistas cinematográficos

Martin Scorsese é um desses cineastas que explicitamente reconhece a existência dessa “contaminação” entre arte e entretenimento no cinema norte-americano, vendo-se inserido nela. Tais ideias estão presentes no livro Uma Viagem Pessoal pelo Cinema Americano (editora Cosac Naify), obra que é, na verdade, a transposição do roteiro de um documentário, escrito junto com Michael Henry Wilson, realizado sob encomenda para as comemorações do centenário do cinema, em 1995. Acredito que é uma ótima leitura para os interessados na discussão destes meus artigos. Vale a pena desenvolver um pouco as suas ideias para avançarmos mais um pouco e chegar na problematização sobre a tão famigerada dicotomia citada exaustivamente aqui.

Scorsese cria três tipologias para caracterizar alguns cineastas hollywoodianos: o ilusionista, o iconoclasta e o contrabandista. Cada um deles consegue, à sua maneira, burlar os esquemas de produção industrial, firmar uma “marca” pessoal em suas obras e acabaram por guardar seus nomes dentro do cinema e do mundo artístico. Os exemplos do cineasta norte-americano procuram rememorar grandes figuras do cinema mais antigo, das décadas de 1940 e 50, mas a sua tipologia é válida para analisarmos até mesmo cineastas em atuação.

Tim Burton, por exemplo, se encaixa muito bem como um verdadeiro ilusionista. Trata-se de um cineasta que prima pela diferenciação estética que utiliza em seus filmes, embora não arrisque muito em enredos labirínticos ou mais complexos, retratando quase sempre uma história de amor não compreendido, em que o mocinho pode acabar não ficando com a mocinha, mas apresenta todo um enredo com todos os elementos da narrativa clássica.

O caso mais emblemático dos iconoclastas até hoje talvez seja Orson Welles, realizador do filme Cidadão Kane (1941), que contou com um privilégio inédito e que não se repetiria em nenhuma outra de suas obras – e com nenhum outro diretor dentro do cinema norte-americano. Nesse filme, impulsionado por uma carreira brilhante no teatro e na rádio, chegou em Hollywood com toda liberdade de criação nesse filme, desde a produção até à finalização. Isso o levou a desafiar abertamente os padrões convencionais dos grandes estúdios, tamanha a liberdade de criação adquirida. O filme gerou problemas judiciais para RKO, e isso acabou por prejudicar a carreira artística de Welles, que nunca mais conseguiu contar com essas mesmas condições de produção.

Na atualidade, é difícil pensar em um perfil de iconoclastas inserido em Hollywood (Jean Luc Godard pode ser uma referência, muito embora tenha iniciado sua carreira na década de 1960 e seja europeu), dado que a expansão dos meios de comunicação permitiu que cineastas encontrassem outros canais de realização de suas obras, que não o esquema industrial e sem bater de frente com os padrões e normas dos grandes estúdios.

Nesse mesmo sentido, cineastas que podemos caracterizar como contrabandistas também são difíceis na atualidade, ou seja, cineastas que produzem sutilezas magistrais, com o intuito de fugir à censura dos produtores, em cujos filmes o implícito se revela em tela e é capturada por alguns espectadores mais atentos a alguma forma de denúncia moral ou social que o diretor se engaja. Isso se deve por dois motivos: o primeiro é que já não há uma cartilha de normas de conduta, como nas décadas de 1940 e 50, que balizem a produção hollywoodiana, e também porque atualmente não é preciso estar atrelado aos grandes estúdios e produtoras para se consagrar como um bom cineastas, embora isso ainda seja o anseio de alguns deles.

A fruição artística e a construção de significados da arte

O que é importante destacar dessa discussão sobre ilusionistas, iconoclastas e contrabandistas colocado por Scorsese é a de que mesmo o sistema de estrelato de Hollywood, para sobreviver, precisará contar com cineastas que tenham uma visão criativa para além das produções médias, vez ou outra, para conseguir sair do marasmo. Quando isso acontece, vemos surgir nomes como os que citei aqui, que são diretores diferenciados em suas visões sobre cinema, mas acabam por se confundir dentro desse sistema de celebridades e participam do mesmo jogo. O que não significa despirem-se de suas ousadias e criatividades para se encaixarem nesse status. Arte e entretenimento se confundem.

Sinto que cada vez mais há uma dificuldade em visualizar essa distinção entre arte e entretenimento de forma tão acentuada como foi algum tempo atrás. Hoje em dia, até mesmo o dito cinema de arte perpassa pelas mesmas estratégias de divulgação que os blockbusters: diretores são idolatrados e lotam salas quando da exibição de seus filmes, festivais abundam na divulgação desse nomes, angariando um público tão fiel quanto os espectadores das grandes produções hollywoodianas. Daí a dificuldade de se discutir tais aspectos na mesma lógica dicotômica de antes.

Se diante dessa constatação, onde alguns diretores contam com uma inserção na grande estrutura industrial e de estrelato de Hollywood ou mesmo adquirem status suficiente para que conquistem a fidelidade de suas plateias ao redor do mundo, como ir além, então, das velhas discussões? Acredito que o ponto central está em superar a ideia de que existem filmes para se pensar e filmes para se distrair/divertir. É falsa a visão de que somente os filmes de arte façam as pessoas pensarem e refletirem. Isso decorre de uma visão errônea, a meu ver, sobre a fruição artística, onde separam formas racionais e não racionais de se apreciar qualquer obra/expressão artística.

Toda e qualquer forma de expressão artística depende de processos cognitivos para ser apreciado, o que vale dizer que há uma correlação entre processos puramente intelectuais e sensitivos, sendo que a nossa apreensão mais imediata está nos aspectos sensitivos e não racionais. Somente é possível a fruição completa se há um processo de imersão, de entrega, sobre o que se frui, caso contrário, a construção de sentidos fica prejudicada. A partir dessa premissa não há diferença entre assistir a Crepúsculo ou a Terra em Transe, de Glauber Rocha.

Isso não significa descartar a reflexão dos filmes, mas significa dizer que os processos intelectuais e de construção de significados explicativos sobre os filmes que vemos se dão após termos o contato com eles, é onde procuraremos interpretar o que vimos no filme. E isso está relacionado à visão de mundo. Ou como disse no artigo anterior, não pensar está muito mais atrelado a uma confirmação de modelo de mundo, sociedade, indivíduo, etc. que vivenciamos e temos como modelo para as nossas vidas do que simplesmente não pensar.

De modo geral, os filmes que se rotulam de arte, procuram retratar formas de questionamento ao que está estabelecido, mudar as perspectivas pelas quais a sociedade constrói seus modelos, e essa desconstrução perpassa não apenas o enredo, mas também a linguagem e a estética, daí que alguns filmes sejam “difíceis”. Porém, isso não significa que tais filmes sejam isentos de mecanismos de “manipulação” dos sentimentos quanto os filmes mais comerciais.

De certa forma, “filmes de arte” são feitos para confirmar a visão de mundo daqueles a quem agradam, o que não significa que sejam mais esclarecidos e/ou intelectualizados quanto o público dos “filmes de entretenimento”. Acredito que seja importante conseguir destacar os mecanismos da fruição artística, problematizando os aspectos que permeiam o debate entre os tipos de cinema que estamos abordando.

Os filmes, como artefatos culturais, dizem muito sobre nossas sociedades

Assim, do ponto de vista da fruição, há muito pouca diferença entre um “modelo” e outro de filmes, pensando que os seus mecanismos de apreensão e interpretação não diferem. O questionamento, então, é saber onde fica a diferença entre esses dois tipos de filmes? Essa é uma questão importante de ser respondida para que não se caia num relativismo vazio e o seu ponto central está em algo que chamei muito a atenção nesses dois artigos: a visão de mundo.

Essa palavra aparentemente simples (porém um conceito central para as ciências sociais e para a filosofia modernas) são as responsáveis por ditar as discussões que travamos até aqui. A expressão artística, como artefatos culturais, é uma das formas de transmitir valores, modelos e significados sobre o mundo em que vivemos. E uma vez em contato com o seu público, trabalham no sentido de definir, moldar, reafirmar, questionar e refutar ideias que entrem em conflito com o que elas expressam. Isso não é dado de forma consciente, ou não de forma tão clara quanto um artista gostaria que fosse.

São sobre os nossos modelos e visões de mundo que assimilamos a cultura e a arte, e é a partir delas que acabamos por considerar as expressões artísticas. Daí que afirmei que gostar ou não de um filme diz mais respeito a afirmar ou não aquilo que já temos estabelecidos dentro de nossas personalidades. É interessante perceber, portanto, que a audiência de determinados filmes podem ser um “termômetro ideológico” predominante em nossa sociedade. Aqui, acredito que podemos transpor o nível de discussão que faremos sobre os filmes blockbuster e os de arte.

Paulo Emílio Salles Gomes (1916-1977), um dos mais importantes críticos de cinema que pensou sobre o cinema brasileiro, já afirmou algo no sentido que coloquei acima. Parafraseando-o, ele afirmou que o pior filme brasileiro é mais importante do que o melhor filme estrangeiro. Afirmativa mal interpretada por muitos, ele tinha a intenção de dizer que até mesmo o pior filme brasileiro que for exibido em uma sala de cinema dirá muito mais sobre a nossa cultura e nossa sociedade do que um filme estrangeiro. E, se o intuito é refletir a partir da arte, esse é o ponto onde a discussão mais prolifera. Não na mera adjetivação sobre um filme blockbuster do tipo Crepúsculo ser bom ou ruim.

Mas e daí, o que eu quero dizer com tudo isso?

Para concluir essa discussão, uma última problematização. Mais do que ficar numa discussão vazia, que no fundo é pouco produtiva, na medida em que criticar o cinema hollywoodiano não o fará perder seu poder sobre a indústria cinematográfica, é mais profícuo pensar que o ideal é não haver essa dicotomia – quase uma distinção criada pela própria indústria, como maneira de ter cada um os seus nichos de mercado. O importante é lembrar que se pensamos que a arte é fundamental e essencial para influenciar e moldar comportamentos e hábitos, é na sua diversidade que poderemos efetivamente trabalhar de forma a não cair em maniqueísmos.

O ideal é que todos pudessem ter acesso aos mais diversos tipos de filmes, histórias, linguagens possíveis. E isso perpassa por criticar o modelo de mercado baseado na falsa ideia da oferta e demanda sob a qual a cultura está submetida, como se a arte pudesse ser tratada como mera mercadoria. É difícil se estabelecer uma discussão saudável quando um filme estreia em mais de mil salas no país, enquanto que outros conseguem no máximo dez, ainda assim concentrados nas capitais. É óbvio que um vai se sobressair sobre o outro pela desigualdade da estrutura exibidora do país.

Ou seja, se estamos pensando que a diversidade é o que deve marcar uma cultura, é discutível afirmar que os filmes de arte são chatos quando a esmagadora maioria das pessoas não tem sequer oportunidade de entrar em contato com esses tipos de filmes – os modelos de filmes comerciais infestam toda a vida cotidiana de qualquer um nós, seja no cinema seja em casa, na televisão (aberta ou à cabo) e na internet. Trata-se de praticamente uma ditadura cultural. Numa constatação que é perceptível a qualquer um, a falta de acesso a diversidade de linguagem e estética, no cinema e na arte em geral, acaba por moldar um público de um gosto só.

Esse é o principal ponto a ser combatido, em minha visão. Sem que essa equação desigual seja razoavelmente resolvida, qualquer discussão parecerá uma tentativa doutrinária de se afirmar o que é arte e o que não é, além de taxar negativamente a priori o público de determinados gêneros de filmes. Obviamente que tudo isso que coloquei nesses artigos não significa dizer que não tenham filmes que sejam ruins do ponto de vista técnico, de criação artística e do ponto de vista cultural ser um material que somente reforçam estereótipos e modelos sociais distorcidos, etc. Nesse sentido, é preciso começar a afirmar claramente esse último ponto, não apenas taxá-los de ruins.

E para aqueles que assistem aos filmes blockbusters, como eu, não há nada de errado nisso. É um filme, como qualquer outro. O importante, como já disse, é estar em contato com todos os tipos de filmes, é isso que constrói o seu repertório cultural e artístico, bem como é ele quem vai construir as suas formas de avaliar e analisar os filmes e refletir sobre eles – para então afirmar se considera um filme ruim ou bom.

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