Cinearte e Scena Muda: de graça

Duas antigas revistas brasileiras de cinema estão disponíveis na internet gratuitamente. Cinearte e Scena Muda foram digitalizadas pela equipe do Museu Lasar Segall e podem ser lidas neste endereço. Capitu fala das características da primeira e mais antiga delas, para analisar a ideia, a conceituação de cinema que ambas ajudaram a construir. São bem parecidas em seus propósito: as afirmações a respeito de uma valerão para a outra na maioria dos casos. O conceito de um cinema americano todo-poderoso e um cinema brasileiro com complexo de vira-latas, ou a de que temos que defender nossa produção cinematográfica de forma ufanista já estava lá. Ao lado de tudo isso, um retrato histórico do Brasil.

Em um anúncio de 1933, no seu número 375, Cinearte se apresenta:

“A melhor revista cinematographica do Brasil é Cinearte porque contém nas suas 48 páginas em off-set a varias cores e couché a uma cor, todos os assumptos de Cinema, com photographias as mais nítidas e variadas. Representante especial em Hollywood. Publicação quinzenal.”

Péssima estrutura do cinema brasileiro

Um pequeno texto da revista Cinearte (nº 367, de 1933) trata da situação dos cinemas brasileiros e de qual eram as dificuldades para distribuir pelo Brasil obras do cinema sonoro:

O Brasil segundo a última estatistica organizada pelo Ministerio da Educação, possue 658 cinemas equipados para exhibir Films falados sendo que apenas 308 possuem e usam o systhema movietone.

“E nós podemos assesgurar sem medo de errar que apenas um terço desses aparelhos, ou menos, estão em perfeito estado de funcionamento.

Na maioria, a reprodução é péssima. O publico nada percebe porque a maioria dos Films exhibidos são falados em inglez e com os letreiros sobrepostos em grande quantidade, já não deixando o publico ouvir, porque está lendo, os dialogos apenas como o som de vozes humanas.

Quando se exibe um Film falado em lingua que se entenda, porém, a pessima qualidade do som é atribuída à má qualidade do próprio Film.

Análise cinematográfica vaga

A resenha típica de Cinearte é assim (exemplos do número 370, de 1933):

“Canção de Primavera, a produção dos Laboratorios Capitol, que foi exhibida durante uma semana do ‘Eldorado’, e depois em alguns cinemas dos bairros é mais um Film paulista que agradou bastante.

“O assumpto explorado é desses que geralmente cahem na sympathia do publico e é pena que o Film não tenha sido um pouco mais cortado, melhorando certas scenas que são longas demais. As canções são bonitas e o inicio do Film, bastante movimentado, impressionam bem. O que não é muito agradavel é aquella figura do deformado, que não precisava ser assim e lembra um velho papel de Wyndham Standing num Film de Vivian Martin, para a Goldwin. Ali bastava ser um typo humilde, assim como Carlito em Luzes da Cidade, por exemplo. Agradava mais. Como novidade, há uma scena passada no interior de um ‘bond’, cousa nova nos nossos Films e é pena que não seja mais natural, foi mal aproveitada.

“A photographia de Francisco Campos não é homogenea, mas satisfaz. Boas scenas externas. Fabio Cintra, como director, tem as suas qualidades. (…)”

Canção de Primavera “agradou bastante”, as canções são “bonitas”, o início do filme, que tem bastante movimento, “impressiona bem”, a figura do deformado não é “agradável”, a cena dentro do bonde não foi “natural” e foi “mal aproveitada”, a fotografia de Francisco Campos “satisfaz” e Fabio Cintra, como diretor, “tem suas qualidades”. As afirmações que estão implícitas nesses conceitos vagos são a de que um filme deve agradar, impressionar, ser movimentado, aproveitar bem as suas cenas, ou seja, há uma noção de eficiência que, é evidente, está vinculada ao cinema hollywodiano.

Nada melhor que o cinema americano

Há nas páginas de Cinearte, ao mesmo tempo, uma defesa desse cinema americano e outra, desejando a evolução da indústria brasileira. No exemplo que segue, por exemplo, as obras européias são um tanto quanto ridicularizadas em prol de Hollywood. No número 367, de 1933:

“De quando em quando, e aqui mesmo é frequente essa mania, um chronista desgarrado, derradeiro mohicano do Cinema europeo, eleva às nuvens um Film que viu, francez quase sempre:

Maravilhoso! Aquelle sim é um Film para intellectuales! Que expressão! Que subtileza!

“E a maravilha passa para as moscas, por isso que a platéa em geral é avessa a essas subtilezas, não é constituida por intellectuales.

“E como estes, via de regra, frequentam os Cinemas só quando tem entradas de favor, o resultado é que a maravilha volta para o escriptorio do importador e os filmes americanos continuam a exercer a sua função de atrahe nickeis”.

Já no número 371, no mesmo ano, de forma mais direta, um louvor aos sucessores de Edson e Griffith:

“Hollywood… Não pertence aos Estados Unidos, aos directores allemães, nem as ‘estrellas’ canadenses… é do cinema!

“Representa o maximo que já se conseguiu até agora no mundo, pelas mais lindas artes e sciencias…

Entretanto Hollywood para os pessimistas continua a ser a cidade que não pensa sem imaginação, a cidade do estomago… Hollywood tem cafés bonitos, muito sol, gente satisfeita, operarios contentes, machinas, lindas musicas, cerebros, sport e tanta cousa mais.

“Mas… continuam comentarios romanticos sobre o preço do sucesso e dos seus corações partidos…

“Como poderão deixar de contrariar o Cinemazinho Brasileiro?”

Por outro lado, discutem as críticas feitas à indústria brasileira e tentam desconstruir os seus ofensores não com argumentos, mas com ironia (número 372, de 1933)

“(…) Não sei porque, lembrei-me do trecho que se segue de um artigo de Arthur Coelho, que trabalha no departamento estrangeiro da Paramount em New York como traductor, aliás muito competentes, de letreiros e noticias para o Brasil. É brasileiro e, mesmo em New York, é contra… leiam:

“De ha muito se fala no Brasil numa Cinematographia brasileira, de producções brasileiras. Escusado é dizer, nesse projecto, de brasileiro só ha a vontade. Onde estão as nossas fabricas de Film virgem, os nossos fabricantes de projectores, de reflectores, de dynamos, de caminhões para tomada de vistas exteriores, de microphonios, de camaras, de mil e um instrumentos delicados e apetrechos e inventos, graças aos quais é o verdadeiro cinema o que é? No dia em que desse na veneta do estrangeiro de não mais nos suprir do material necessario ao nosso cinema, acabar-se-ia a nossa industria.”

[o cronista ironiza e minimiza esse trecho e diz] “E é a tal cousa. Agora que já vae apparecendo, embora annualmente um ou dois Films brasileiros parecidos com Cinema, já querem uma industria completa em pouco tempo”.

Destaque-se que o cronista divide o mundo entre os contra e, logicamente, os a favor. Aqui um outro exemplo da edição anterior:

” ‘Outra’ de nosso amigo Magalhães, de A Noite:

“O exito de A Severa tem uma significação especial. Constitue, antes de tudo, uma lição para os cineastas brasileiros, illudidos até agora nas suas tentativas e cujo esforço se desenvolve sempre no sentido de imitar o Cinema americano”.

“(…) Quando os nossos Cinematographistas se preoccuparem menos com os angulos ‘close-ups’, ‘long-shots’, e outras coisas de que, em geral, só conhecem o nome, passando a considerar, em primeiro plano, o interesse emotivo, humano ou documental dos seus Films e, em segundo, os enfeites technicos, elementos subsidiarios e não essenciaes”.

[novamente, o jornalista segue pelo caminho da ironia] “Os representantes das companhias americanas começaram a oferecer almoços e cock-tails aos jornalistas. O Raymundo é jornalista…, e comparecia e teve occasião de ver alguns Films e hoje ainda pensa que ‘close up’ e ‘long shot’ é technica ou escola cinematographica.”

Temos de defender nosso cinema!

Defender o cinema brasileiro assume um caráter de missão (o que na Cinearte é suspeito, já que se poderia dizer que defender o sucesso comercial de Adhemar Gonzaga é que recebe essa forma de missão). Vemos na 371, de 1933:

“Na secção Cinematographica do novo jornal A Hora (…) encontramos mais um orgão de imprensa que emprestará o seu estímulo valioso ao Cinema Brasileiro e vale a pena transcrever suas primeiras palavra sobre tão sympathico assumpto:

“(…) o produtor brasileiro terá também a sua disposição o maior paladino das suas aspirações, numa forma mais alevantada possível.

“Deixemos de parte se este ou aquelle Film brasileiro fracassou. Nos demais Cinemas também encontramos muitos fracassos; innumeros fracassos, e nem por isso elles desanimam.
“Tudo uma questão de persistência. E aqui no Brasil, em materia de Cinema, tudo depende da persistência.

“Porque, se não fôra mais do que o patriotismo, o Cinema estrangeiro actualmente falado, não teria vencido entre nós. Seria repugnado, ou seria um simples caso de curiosidade”.

Na época do lançamento de Central do Brasil (1998) e sua disputa pelo Oscar, havia, senão a mesma, ideologia semelhante: éramos convocados a torcer pelo cinema brasileiro, a dar valor à nossa produção, prestigiar a nossa cultura.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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