Barreiras derrubadas, segredos penetrados

“Onde os monstros do século XIX metaforizaram a subjetividade moderna em um elemento de equilíbrio entre interno/externo, feminino/masculino, corpo/mente, nativo/estrangeiro, proletário/aristrocáta, a monstruosidade no filme de terror pós-moderno encontra seu lugar no que Baudrillard chamou de ‘visibilidade imdediata’ e o que Linda Willians traduziu como ‘o frenezi do visível’.”

– Judith Halberstam (2000)

As manifestações artísticas atuais do estilo gótico, inspiradas na própria sociedade — caracterizada por suas “deformações” morais e psicosociais; suas desconfigurações e fragmentações; e um enorme abismo cultural e social — relatam e expressam a gritante hipocrisia de uma sociedade moralista, que aponta o dedo ao primeiro sinal de erro; uma sociedade de indivíduos que fazem uso deste mesmo dedo, quando confortavelmente sentados diante da televisão, e sentindo-se donos do mundo com seus controles na mão, escolhem assistir cenas e relatos horrendos de violência reais, transmitidos pelo jornalismo sensacionalista, que tornou-se o exemplo de exploração da miséria alheia.

Ao afirmar que todas estas caraterísticas sociais dão origem à um imaginário coletivo povoado por medos — que passam a guiar os caminhos a serem trilhados à partir de então — vemos esse imaginário interiorizado pelo indivíduo a tal ponto que ele já não identifica seus medos e angústias como adquiridos. O imaginário do medo então, estende o gótico até as manifestações da própria sociedade: nas atitudes individuais, nas ações governamentais, e na violência propagada pela mídia. Uma enorme parte do que envolve nossa existência, hoje, encontra-se impregnado de uma imoralidade expressa pelo mundano, de ameaças invisíveis, e de uma não-permanência que se fixa como um sentimento de perda. São estes sentimentos que alimentam a produção artística, incomodando e ao mesmo tempo inspirando. Modificando-se e influenciando-se mutuamente, a sociedade e a arte são espelhos; onde a arte, se revela um importante elemento de estudo na história social e psicosocial.

A abordagem de analogias entre as manifestações góticas na literatura, na pintura, na fotografia e no cinema, atravessando, ainda, o tempo em seus contextos históricos, requer uma abrangência que alcance até mesmo aquilo que se encontra fora de definição. Em seu caráter tão amplo e diverso, a arte tornou qualquer tentativa de categorizá-la obsoleta. Cabe-nos, então, a liberdade de analisar a arte — em suas diversas facetas — como um elemento originado de, e ao mesmo tempo criador de uma sociedade. Sem a necessidade da refutação à outros argumentos, o caminho se torna mais livre à uma visão atual.

No decorrer do texto, acompanharemos o desenvolvimento desse imaginário através do tempo até suas representações em filmes de nossa contemporaneidade, a saber, A Cela (2000), passando antes por A Metamorfose, de Kafka, e Dr. Jekyll and Mr. Hyde (O Médico e o Monstro), de R.L. Stevenson, até chegarmos às fotografias de horror de Joshua Hoffine, esse artista que manipula arquétipos junguianos procurando reinventá-los e pensa nas suas obras como “pedaços de doce”.

O belo não tem significado

Percorrendo toda a linha do tempo entre a Idade Média até a atualidade, vemos uma constante que se mostra na presença do medo, ora simbolizado por figuras grotescas e transfiguradas, demônios, deuses irados e cenas fantasiosas influenciadas pela Igreja Católica; e ora os vemos expressos por um realismo exagerado de imagens e narrativas impregnadas de violência e incostância; de figuras que também apresentam deformações, mas já não físicas, e sim deformações psicosociais, expressas em mentes destruídas por uma “sociedade de valores perdidos”, que banaliza a violência.

Entre estes dois extremos, encontramos ainda, uma expressão gótica que se põe entre a fantasia e a realidade, que manifesta não só o próprio conflito da arte de então como o conflito da Londres vitoriana, que em meio ao processo de industrialização e simultâneo desenvolvimento científico do final do século XIX, configura-se à partir de um racionalismo que substitui o antigo ideal imaginário. Nesta Londres, o medo é um elemento constante assim como a violência de uma grande cidade; mas as novas descobertas da ciência que espalham a idéia de uma dualidade do indivíduo — a existência de um corpo separado do espírito — geram uma sensação de magia no cidadão comum. Este conflito é expresso na arte por monstros humanóides ou humanos monstruosos; pela magia que mais se assemelha à ciência; e por uma temática narrativa e visual, que confunde corpo e espírito, realidade e fantasia.

O gótico não vê razão nem inspiração, na representação do belo — expressão de significação tão efêmera quanto o tempo ao qual está relacionada — mas ao contrário, enxerga o belo tão desprovido de significados em sua relevância para a expressão artística, que direciona sua atenção ao grotesco, ao crime, ao imoral. Em lugar de uma organização e clareza visuais e narrativas, emprega um excesso de significados, elementos, sentimentos e sensações. Ora representados com sarcasmo, ora intencionados em provocar o horror puro; em suas diversas expressões, o obscuro e o sombrio estão sempre presentes.

Penetrando tudo aquilo que é suprimido e proibido, o gótico está diretamente ligado a transgressão. Glennys Byron (1999) explica esta ligação ao escrever que “não apenas as narrativas em si, ao atravessarem os limites da realidade, transgridem, como a transgressão em si é o foco central nos temas góticos: onde todas as barreiras são derrubadas, todos os segredos penetrados.” Curiosamente, a transgressão mostra-se em seus diversos momentos da história, na duplicidade do indivíduo; no desejo de fugir de sí mesmo, de não pertencer à seu corpo, de não pertencer à sua própria realidade. E mais importante, de não pertencer a uma sociedade, vendo-se então livre dos encargos atribuídos por esta à moral e ao dever do espírito.

“Esta enorme sensibilidade na representação do horror poderia influenciar a sociedade à absorver as narrativas e imagens do jornalismo espetacular em sua realidade. Provocando, talvez, uma mudança de valores”

Faces do gótico

O desejo de não ser, de não pertencer, de não sentir-se parte, que caracterizam a tendência à transgressão na duplicidade do indivíduo, mostra-se presente em todas as obras citadas aqui. As reinterpretações desta duplicidade, apesar de análogas, adquirem caráteress diversos como: a cisão de um indivíduo entre o mal e o bem, e a liberdade do mal invisível; a metamorfose do corpo no grotesco, por um desejo invisível de manter-se distante do mundo; o abandono do corpo para uma vida dentro da mente, da imaginação; a existência baseada na necessidade da alma e do corpo do outro (ou pedaços deste). Essa multiplicidade de expressões nos mostram, além da criatividade e das particularidades de cada autor, o contexto no qual criaram.

Alguns exemplos:

A Metamorfose, Frank Kafka

“Quando, certa manhã, Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso”. É assim que Kafka dá início a A Metamorfose, sua narrativa tragicômica que traça uma analogia com os sentimentos moderno e atual, originados de um encarceramento moral e social que leva o indivíduo à alienação. Esta, representada na metamorfose sofrida por Gregor Samsa e em sua aceitação fácil do fato de ter-se transformado em um inseto, também nos mostra a capacidade do autor em empregar a naturalidade e o detalhismo na descrição do grotesco e do insólito, tornando-os fatos comuns. O sarcasmo e o cômico, são elementos da narrativa singular de Kafka.

A narrativa segue até que Gregor Samsa, e seu novo corpo grotesco tornam-se uma realidade e um fardo para sí próprio e para sua família. À partir de então uma série de fatos — em que, sofre um ferimento em sua inabilidade de se mover; é tratado com repugnância semelhante à que sua imagem causa na família; seu quarto, aos poucos começa a se tornar um depósito de todo o lixo da casa — que levam Gregor Samsa até o seu triste fim. A profundidade de suas dores nos revelam um espelho da alma, através do qual somos confrontados com as nossa própria dor: de sentir-se insignificantes e frágeis perante às imposições e doenças de nossa sociedade. O autor explora as deformações e dores do personagem, que já não pode mais viver, já não pode mais existir dentro de um corpo ao qual não perntence. A Metamorfose se fixa como uma obra de extremo realismo, ao destruir nossa ilusão de liberdade, confrontando-nos com a verdadeira existência na alienação.

O Médico e o Monstro, R.L. Stevenson

R.L Stevenson, em O Médico e o Monstro, diz, por meio de uma carta de seu personagem Dr. Jekyll: “o homem acabará sendo conhecido como uma simples política gerencial de habitantes multiformes, incongruentes e independentes uns dos outros.”. E não é assim que vivemos hoje? Arrastando um pesado baú onde guardamos nossas diversas máscaras?

A história de Stevenson se desenrola na sombria Londres do fim do século XIX, onde a névoa acinzentada pela poluição da indústria é um elemento sempre presente, acompanhado da miséria, da pobreza e de elementos sombrios que completam o cenário do medo criado pelo autor: “A estação dos nevoeiros já começara… no deprimente bairro do Soho, com suas passagens enlameadas, seus transeuntes desleixados, seus lampiões… que haviam voltado a ser acesos para combater aquela triste reinvasão das trevas, parecia… um recanto de alguma cidade de pesadelo.”. O livro nos conta a história do renomado Dr. Jekyll — homem de grande honra e bondade — que envolvido em suas pesquisas da medicina transcendental, acredita poder manipular e separar o bem e o mal no corpo humano. Servindo a seu experimento como cobaia, o médico inicia um perigoso caminho em que experimenta a natureza bipartida do ser humano. Surge então Mr. Hyde, seu alter-ego, o lado mal de sua alma cindida. Mr. Hide afigura-se como a transgressão da temática gótica em sua personalidade obscena, perversa e violenta.

O livro trata principalmente — além da duplicidade da natureza humana — das reações e sensações que temos quando somos confrontados com a violência. Mr. Hyde, não se mostra como um monstro em si, mas sim como a pura representação do mal, “o único, nas fileiras da humanidade, feito apenas de mal” — trecho da carta final em que conta a Mr. Utterson toda a história de sua transformação. Sendo o mal um sentimento, e sendo estes invisíveis, Mr. Hide também o é. Mas ao dominar seu alter-ego Dr. Jekyll, tornando-o invisível, o mal representado em Mr. Hyde torna-se realidade ao fim.

A Cela (2000), Tarsem Singh

Em A Cela, a psicóloga Deane especializada no tratamento infantil — interpretada por Jennifer Lopez — comanda um tratamento experimental em que o uso da realidade virtual lhe permite entrar na mente de pacientes em coma na tentativa de trazê-los de volta. Quando o detetive Novak do FBI descobre que o serial-killer Stargher se apoderou de mais uma vítima, Deane é persuadida pelo detetive a se aventurar dentro da mente perturbada e fantasiada de cenas de horror do serial-killer, que entra em um coma antes de revelar o paradeiro de sua vítima. A possibilidade de ainda poder salvar a vítima — que como logo Deane descobre encontrasse presa dentro de uma cela semelhante a um aquário, que aos poucos enche-se de água sob o controle de um timer automático — a chance de salvá-la torna-se o motor que leva Deane a ir a fundo na mente do assassino, correndo o risco de perder-se nesta para sempre e causar danos irreparáveis em sua própria mente.

O diretor Tarsem Singh deu uma nova direção ao gênero de horror. Ao nos contar a história à partir da mente fantisiosa do serial killer, abriu a possibilidade do emprego do terror psicológico como elemento narrativo, em conjunto com a subjetividade de um mundo imaginário impregnado de fantasias e simbolismos. Adentrando a mente de Strager, somos hipnotizados por um caos organizado em que vemos: suas lembranças traumáticas, nas quais vemos ora o Strager assassino e ora o Strager ainda criança; imagens de extrema violência temática e visual, como a de um cavalo fatiado por placas de vidro, deixando à mostra todo seu interior; as transformações que se realizam no cenário e em ambos personagens, que expressam através do simbolismo o contexto em que se encontram no exato momento da luta que travaram entre si.

A Cela combina elementos do simbolismo da arte da Idade Média com o imaginário atual do terror psicológico e de indivíduos que se mostram múltiplos em suas representações do bem e do mal. O filme parece reunir as características marcantes de todas as obras relacionadas acima, absorvendo de cada uma as características que expressam o medo individual e coletivo do contexto social.

Joshua Hoffine

As fotografias de terror do artista contemporâneo Joshua Hoffine, se assemelham ao filme A Cela em sua combinação entre realidade e fantasia, aqui empregados como elementos visuais além de narrativos. Suas fotografias, que remontam à lendas e medos de outras épocas, representam os medos atuais ao mesmo tempo em que expressam um desejo de retorno a um passado de fantasias. Estas questões se mostram na própria personalidade do artista, que descreve seus principais interesses e opiniões sobre a arte do horror — criando uma ligação desta com a morte — com economia de palavras: “Me interesso pela ciência dos contos de fadas. Eu quero reinventar arquétipos. Eu uso o poder Junguiano do clichê. Acredito que a história de horror está essencialmente interessada na iminência e aleatoriedade da morte, e na implicação de que não existe uma certeza para a existência. A experiência do horror reside no confronto com a incerteza. O horror nos diz que nossa crença na segurança é ilusória, e que os monstros estão em toda parte”.

O trabalho de Joshua Hoffine, como que reafirmando uma valorização do passado, é praticamente todo criado manualmente. Usando amigos e familiares como atores e ajudantes; cria todos os cenários de horror — que expressma-se por si só em suas fotos — com a produção de figurinos, “suportes elaborados”, máquina de gelo seco, e efeitos especiais de maquiagem. Conta-nos que todos fazem o trabalho de graça e que se divertem muito durante todo o processo. Talvez isto explique um pouco a visão que tem de sua própria arte quando afirma: “Eu penso em minhas fotografias como pedaços de doce.”

Mudança de Valores a Partir do Gótico

É impressionante a capacidade mostrada nas obras dos artistas de diversas épocas, em observar a sociedade ao redor e conseguir extrair desta a subjetividade presente no imaginário coletivo. E ainda transformar, deformar e recriar esta subjetividade em uma obra de arte que se comunica não só com a época à que pertence, mas também com as sociedades posteriores à sua. Muitos vão além da simples comunicação, e parecem prever os caminhos que a humanidade irá traçar. Como o faz R. L. Stevenson, que através de dr. Jekyll, diz: “O homem acabará sendo conhecido como uma simples política gerencial de habitantes multiformes, incongruentes e independentes uns dos outros.” E não é assim que vivemos? Carregando nossas diversas máscaras?

Nos tornamos administradores das diversas facetas de nossa natureza humana, que agora já sabemos impossíveis de serem representadas por uma simples dualidade entre o bem e o mal. Mais conscientes de nossa enorme complexidade, somos capazes de entender, por exemplo, que o filme A Cela, ao nos mostrar as realidades do Strager criança e do Strager assassino, comunica-nos a impossibilidade de atribuir-lhe como única qualidade, a maldade. Mostrando-o como um ser humano dono de uma história que o tornou o que é, prova que este, antes de ser monstro, é uma vítima de sua época.

Diante desta visão de nossa sociedade, prova-se não apenas justificado, como até necessário que obras tanto literárias como visuais, expressem o monstruoso e o grotesco de ambos os lados da sociedade: o lado que vive a violência, dividindo-se entre o violentador e o violentado; e o lado que assiste à violência, entregando-se ao prazer e curiosidade mórbidos. Um maior contato com estas obras do passado e do presente, ao mesmo tempo perturbadoras e profundas, poderia inverter uma sociedade apreciadora de uma cultura que ignora a realidade social à seu redor. Estas expressões artísticas, de enorme sensibilidade na representação do horror, poderiam influenciar a sociedade à absorver as narrativas e imagens do jornalismo espetacular, em sua realidade. Provocando, talvez, uma mudança de valores na sociedade.

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