Arriscar-se em Direção à Empatia

Às vezes, a música ressuscita. Há súbitos aspectos religiosos, psicanalíticos, messiânicos em algumas letras e algumas canções. Indo aos extremos, sabe-se que há quem caminhe dentro de uma canção e converse com ela e ouça o que diga apenas para aprofundar a tristeza, para ter essa morte sublimada, escapar pelas frestas do cadáver ainda morno e se reerguer, agora sem o peso dos sentimentos, exauridos por ora, feitos nada pela catarse. E há quem se dirija a uma melodia para escutar a esperança. Provavelmente, aquela que funciona comigo não é das que funcionam contigo; como comunicar, então, que tais músicas retiram fardos?

Bem, é o esforço da coluna presente. Falar desta segunda espécie fugidia.

Defina ai com suas palavras nosso tema para irmos comparando junto: esperança.

Adiante.

Este colunista sentiu-se preenchido e algo mais confiante dias desses em que entendeu o significado de uns poucos versos de uma banda que usava desprezar.

I think I’m falling (…) Hold me now;
I’m six feet from the edge and I’m thinking:
maybe six feet ain’t so far down

É do Creed. Tem um clipe bem pouco sutil (o vocalista seguindo a letra, isso é, caindo) e o vocal que lembra demais o Pearl Jam. Mas repara nisso: você está caindo. Está a seis pés do chão, doze polegadas, duas jardas, trinta centímetros e meio. E talvez — talvez — isso seja ainda bastante coisa. Porém, mesmo o vocalista emenda um I’m so far down; quer dizer, crê e descrê. Coisa comum. Diga lá você.

Ainda há tempo, tudo passa, continue em frente. Esses versos se aproximam da fé.

Bob Dylan anunciou o fim das cruezas e injustiças em uma melodia doce, reconfortante.

(…) Sim, e quantas orelhas um homem precisa ter
para que possa ouvir as pessoas chorando?
Sim, e quantas mortes vão haver até que ele saiba
que já morreu gente demais?
A resposta, meu amigo, sopra através do vento.

Blowing in the Wind, como você talvez saiba.

E os Beatles foram profetas de um recado de Maria, mãe do Cristo.

When I’m in times of trouble, Mother Mary comes to me
speaking words of wisdom: let it be.

Trata-se de Let it be, em inglês mesmo, porque temi fazer uma tradução mesquinha.

Adiante. O tipo acima diz que as coisas mudam. Tente outra vez, Raul Seixas; Quando o Sol Bater na Janela do seu Quarto, Legião Urbana; Mais uma Vez, Renato Russo; entre outras amplamente conhecidas participam de tal gênero. Mas adicionam uma ideia valiosa: o que se lamenta e pede por esperança é cocriador da própria desgraça. Quando o Sol…, diz, quase, que sua esperança se esvai porque seu esforço se foi:

Por que esperar se podemos começar tudo de novo agora mesmo?
Até bem pouco tempo atrás, poderíamos mudar o mundo.
Quem roubou nossa coragem?

Embora Mais uma Vez tenda a expor uma fé de que tudo passa, também recai nisso. Diz: se quiser alguém em quem confiar, confie em si mesmo. Se não acrescenta a culpa, claramente se restitiu a responsabilidade. Melhor do que todas essas neste quesito, é a que segue:

Você pode gastar o seu tempo sozinho remoendo o remorso,
ou você pode aceitar os fatos e perceber que é o único que pode se perdoar.

É do Pearl Jam, chama-se Present Tense. A primeira estrofe é:

Você vê a maneira com a qual essas árvores se curvam?
— se inclinando para receber os raios de sol.
É uma lição ser aplicada.

A árvore se coloca onde a luz possa atingi-la. A música sugere para te ponha onde a luz te toque… a decisão de permanecer na sombra será sempre sua, como, com lirismo inferior, na minha opinião, diz Renato com ‘o sol nasce pra todos, só não sabe quem não quer’.

E durante a luta? No decorrer do esforço. Passo a passo enquanto se acumula o cansaço. Ia ser só impróprio se esses versos te chamassem à batalha que você já batalha. Mas há versos para os que caminham deveras. Parade, do Pretty Girl Make Graves, por exemplo:

Estivemos conversando sobre o que estivemos fazendo e o que conseguimos
Estivemos conversando sobre trabalho e desassossego e olhos fixos no relógio
(…) Nós já andamos tanto…
mas ainda podemos caminhar a noite toda.

Para mim, é o exemplo-síntese dessa espécie de música. Em outro registro:

Fé em Deus que ele é justo, irmão, nunca se esqueça,
na guarda, guerreiro, levanta a cabeça, truta.
Onde estiver, seja lá como for,
Tenha fé porque até no lixão nasce flor

Essa é do Racionais, Vida Loka — Parte um. É um registro diferente porque fala do cenário de opressão, pobreza e crime que o nome do grupo deve lembrar a você, e também porque é uma reação à tentativa de assassinato que o rapper teria sofrido. Essas músicas se dizem: eu já fiz tanta coisa, pra que continuar, de que vale? E elas se respondem: por tal e por tal.

O álbum em que está essa música do Racionais fala de esperança ainda em duas outras: A Vida é Desafio e Sou Mais Você. Tente compreender como exatamente esses versos servem para sustentar e guiar o público-alvo do grupo. É o diálogo de uma classe e podemos saber apenas abstratamente de seu conteúdo concreto. Mas tente reconhecer as distâncias. Segue agora outro diálogo de classe, outro conteúdo que não entendemos de fato:

Meu povo, não vá simbora pela Itapemirim
Pois mesmo perto do fim nosso sertão tem melhora
O céu tá calado agora,mais vai dar cada trovão
de escapulir torrão de paredão de tapera

Ressoa por trás disso um Vidas Secas, um Os Sertões, um Corpo de Baile, um O Quinze. O Cordel do Fogo Encantado recolhe poesia de várias fontes e nos entrega, sulistas sem seca. A citada se chama Chover. Qual a distância entre você e o compreender exato dos versos? Percebe-se, pelos dois últimos exemplos, que podemos, por uma música que funciona para certo povo, certa classe, determinada pessoa — vislumbrar sua esperança.

No livro Mensagem, Fernando Pessoa faz poesia na qual a viagem por mares desconhecidos tem grande importância; um navio cruza esse azul sem confortos e não se vê vestígio da praia distante. O sonho, a esperança é conseguir ver além da neblina ou do sol imenso a praia potencial. Buscar na linha fria do horizonte a árvore, a flor, a ave, a fonte. E em todas as músicas acima existe esse movimento: primeiro o crer na mudança do vento, depois a precisão de inteligência no leme e da força nos remos e ainda o fato de que ele trata de uma esperança particular, mas comunica todas a nós.

(…) O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esp’rança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte —
Os beijos merecidos da Verdade.

Como comunicar que tais palavras retiram fardos? Não parece ser possível. Mas podemos saber pela música que se escuta e a que se sorri o que se precisa em dado momento; e assim se conversa consigo; e assim se entrevê um mistério de outra pessoa.

Daí, há o espaço para tentar entendê-la. E arriscar-se em direção à empatia.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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