Angel Cabeza: Alquimista dos Fatos

“O poeta tem a visão daquilo que muitos não percebem e usa a escrita para realizar a alquimia, recriar a bela pintura da vida”

O autor de Vidro de Guardados, Angel Cabeza, encarna o mito do poeta romântico. Os seus poemas tratam da morte, da infância, da passagem do tempo, do amor, da lembrança. Neles, se encontra a ideia do poeta como “um alquimista dos acontecimentos”, alguém que vê algo no mundo que as pessoas em geral não veem. Cabeza trata a poesia como uma força em si, ela escreve o autor, ela se faz, ela se cumpre. Defende uma independência da obra frente ao que a crítica possa dizer dela. Faz poemas que podem ou não cair nas mãos de quem possa entendê-los e/ou acolhê-los. Quer-se um poeta da simplicidade, longe de palavras buriladas, para quem “o vento já é poesia”. Goethe disse: “Quanto mais a alma se levanta em direção ao sentimento (…), tanto mais feliz é o artista” — e talvez essas palavras pudessem ser ditas também por ele.

Cabeza é poeta e cronista, tendo publicado nesse segundo gênero o livro A Beleza do Feio. Abaixo, você lê a uma crítica de Vidro dos Guardados e, logo após, uma entrevista em que todos esses conceitos — poesia, poeta, crítica — são explorados.

Crítica

Talvez as palavras do “Decálogo do Poeta” possam expor de imediato o cerne de sua poesia:

I – Engulo pedras para transfigurá-las em sonhos
II – Escrevo para me reinventar
III – Verterei a água da minha própria essência
IV – A única roupagem que me veste é a palavra.
V – Simultaneamente sou novo e velho no reflexo do espelho.
VI – Rabisco dois sóis onde jamais haveria luz.
VII – Não adianta procurar: sou mais nítido na escuridão.
VIII – Gritar no silêncio é minha maneira de ser.
IX – Amar me faz mais forte do que o próprio amor.
X – Jamais assinei meu nome em vão.

A função única, criadora, descobridora, do poeta, se encontra no primeiro e no sexto. Sua solidão característica está no sétimo e no oitavo. A poesia como algo que o determina surge no segundo e no quarto, e como algo que flui de si naturalmente no terceiro. No novo, amar está além do amor (que pode ser tão frágil e acabar tão rápido, alguém poderia dizer) e, no último, vemos a individualidade convicta do romântico. É nesse tipo de frase curta, concisa e potente que está o melhor da poesia de Cabeza: as imagens que se criam num instante por um lado; e a solenidade e o gosto de experiência encerrada por outro. No entanto existe um outro tipo de poema em Vidro de Guardados, que assume um tom memorialista, espécie de crônica concisa em forma de versos. Diferente do anterior, esse tipo me parece permitir um número mais limitado de reações possíveis. Em “Aniversário”:

Fiz aniversário até meus 14 anos de idade,
com amigos, música e roupas novas.
Guardo algumas prendas recebidas até hoje.
Contudo, depois de um tempo,
você se acostuma com as marcas no rosto
e cada data passa a ser um sopro nas velas da vida.

O que nos resta após esse poema? Talvez um movimento de empatia, talvez concordar com a ideia de que o tempo passa inexorável, talvez discordar de algo. Em contraste, tal como as frases do Decálogo, o poema “Algum Dia” deixa mais a interpretar, sugere um mundo oculto, sugere algo a ser cumprido, sugere o que além disso ou em vez disso?:

Algum dia, assim,
como quem não quer nada,
conseguiremos ir além
da linha do espelho.

E é só. O “como quem não quer nada” indica que a conquista do que quer que seja virá sem aviso, não há gesto ou preparo adequado; e a “linha do espelho” pode ser o que?

Há poemas que misturam essas duas formas. Em “Domingos Santos”:

Domingo era dia de missa.
Todos assistiam ao padre e seu sermão com medo do divino.
Quando recebiam a hóstia,
uma inveja penetrava o meu espírito.
– Só depois da comunhão! – Diziam os mais velhos.
A comunhão aconteceu e não foi nada tão altivo.
Confesso-me comigo mesmo e aprendi
que Deus jamais mostraria sua ira por isso.
Todos recebiam o chamado corpo no domingo
e desvirtuavam-se nos outros dias da semana,
e não eram repreendidos.
Entendi que tudo não passava de dogmas
e que minha primeira hóstia, engolida em seco,
não significava a santidade suprema.

A verdadeira hóstia está bem guardada dentro da gente.

Há uma primeira parte que talvez se realizasse melhor em uma crônica e essa segunda parte compacta, que já carrega em si todo o sentido do trecho anterior e que não precisa dele. Do modo como se apresenta, fica como “moral da história”. Se estivesse sozinha, exigiria que o leitor se aproximasse e a desmontasse. O autor nos apresenta a memória e o processo que o levou a criar o verso final. Há um tom qualquer de didatismo nesse estilo — degradação da simplicidade que se busca. Existia a possibilidade de contar só a cena; só a opinião; ou só a conclusão; e todas elas dariam mais liberdade de leitura.

Em poemas como “Cronologia”, porém, essas duas vertentes se unem de forma mais fluída e, em “Senso Comum”, há uma sensibilidade que descobre sentidos delicados em uma cena do cotidiano, em compras no supermercado. Esse último, no entanto, demonstra o que poderia ser um problema para o conceito da poesia de Cabeza. Ao mesmo tempo em que prega que a sua obra seja simples, ao mesmo tempo que quer se afastar do rebuscamento, ele faz uso de formas verbais da norma padrão culta: “agrada-me”, “exijo-te”, “tu páras” — e eu talvez esteja exagerando — mas ir em direção ao coloquial não cumpriria o objetivo do simples de forma mais completa? Ele diz: “não sou como os que intelectualizaram a linguagem”, mas não há resquícios disso aqui? Como avaliar esse conceito e essa poesia?

Com a entrevista que segue, o leitor decide. Cabeza fala sobre a crítica, do policiamento da forma executado por ela (e que executei também?), do ofício de pintar pedras e de diálogos com escritores mortos. E o que é o poeta, o que é a poesia, essa deusa voluntariosa: “a poesia tem o poder de ser autoritária. Ela não dá aberturas. Ou você ama ou odeia”.

“Se gostarem, ótimo. Se odiarem, ótimo também. Nem tudo agrada a todos. E, bem ou mal, o filho feio deve ser preservado.”

Entrevista

Em diversos momentos do livro e, notadamente, esse trecho: “mas coube a nós, seres separados da sociedade, a visão das águias e o sentir das mãos”, você classifica o poeta como um ser, digamos, sobrenatural. Ele é, de fato? E o que o faz assim?

O poeta é um alquimista dos acontecimentos. É como costumo dizer: pintam pedras. Essas pedras são o cotidiano simples, dificuldades e glórias da sociedade ou apenas subjetividades. Cabe ao poeta a transfiguração de tudo como em uma fotografia, onde as lembranças jamais serão abandoadas.

Para muitos, o poeta é sobrenatural pelo peso que a poesia tem. Lembro-lhe que até o século XIX, antes da inserção do romance como gênero popular, a poesia era a arte maior e estava em todas as rodas sociais. O escritor era vislumbrado como um ser além da sociedade, com uma capacidade intelectual que o retirava de sua normalidade e o transportava para um pa tamar quase filosofal. Eram os donos da verdade, sejam quando versavam sobre amores, morte ou social. Qualquer casa tinha poesia. Se colocássemos os ouvidos nas paredes de outrora, ouviríamos poesia. Hoje isso não existe mais, o que não aboliu a função do poeta. O que eu quis com o poema “Os Olhos de Poe” foi demonstrar que o poeta tem a visão daquilo que muitos não percebem e usa o sentimento das mãos, no caso a escrita, para realizar a alquimia, recriar a bela pintura da vida. Sobrenatural, não. Carne e cinzas, com certeza.

Você cita conversas com Poe, Dostoievski, Florbela Espanca, Giuseppe Ungaretti… com quais outros escritores você conversa, digo, quais te influenciam?

Todos sofremos influências, e eu não seria diferente. O que é necessário é a dosagem das conversas para a influência não se tornar espelho. Converso com muitos autores. Giuseppe tem o ar da concisão, do simples. É isso que a poesia deve ser: um suspiro. Ungaretti tem um poema maravilhoso que se chama Danação [“Danazione”, no original]:

Faço coisas de mortais
(Mas um dia o céu estrelado morrerá)
Por que chamo por Deus ainda?

Vemos a nítida subjetividade e a relação entre o homem e a vida que um dia findará; entre o sentimento de que tudo termina e o descontentamento com Deus por este fato. Mas todo este peso filosófico que captamos é belamente pintado com formas suaves. E tudo isso em poucas linhas, o que é maravilhoso. Esse é o ofício de pintar pedras. Ainda tenho várias conversas com Bandeira, Drummond, Bukowski, Leminski, Quintana, Adélia, Conrad, Maiakóvski, Brecht, Gullar, Colasanti, Éluard, entre outros. Um de que gosto muito é o poeta americano Gary Snyder. Influencio-me, no fim das contas, de mim mesmo.

Em “Aprender Sentimento”, você diz:

Por muito tempo, temia retratar o simples
nos poemas que escrevia.
Acostumei-me aos rebuscados estilos
que eram glorificados pelos críticos,
deixando de lado a simplicidade poética.

E depois glorifica a assim chamada simplicidade poética. Mas esse seu embate com os críticos me parece algo do século passado. Depois de Oswald de Andrade, Manuel Bandeira, Maiakóvski, os escritores do beat, entre outros, não é antiquado crer que os críticos decidam a linguagem dos poemas? Ou ainda existe esse policiamento da forma?

Iniciei na escrita aos 10 anos de idade numa Olivetti. Somente aos 14 comecei a ler os românticos, parnasianos e outros, sendo apresentado à liberdade da forma. O poema referido é uma fotografia desta época. Sempre busquei a perfeição de Machado, Augusto dos Anjos etc., por meio das rimas, figuras de linguagem, e outros métodos poéticos que eram glorificados por professores, críticos e outros. Até o dia em que fiz uma lavagem interna e pensei que apenas o mecânico da poesia, como os parnasianos faziam em sua arte pela arte, não adiantaria. Larguei as regras e fui andar à margem. A partir deste dia, a poesia tomou a forma da chuva, vento, sol. Comecei na literatura dando muito valor a forma do pensamento de terceiros. Importava-me parecer perfeito através da forma quando a perfeição vem do sentimento. Ainda não sou perfeito e talvez nunca seja. Mas minha concepção continua.

Antiquado falar sobre a crítica? É evidente que eles não decidem mais a linguagem, mas há o policiamento da forma em algumas críticas, sim. Não adianta sair escrevendo qualquer coisa e dizer que é poesia. Eles atentam para isso, mas com uma outra ótica.

Não fico procurando a crítica. Ela tem um papel e eu outro. Quando aparece, leio. O crítico é um profissional como outro qualquer. Só acho que alguns exageram e parecem não ter lido a obra a que se referem. Se gostarem, ótimo. Se odiarem, ótimo também. Nem tudo agrada a todos. E, bem ou mal, o filho feio deve ser preservado. A crítica deve existir, sim, mas que ela não seja base para novos escritores mudarem o rumo das idéias. Os melhores críticos são os leitores.

Em algums momentos, você parece desprezar o conhecimento acadêmico, ou científico, ou tecnicista. Isso é bem explicíto em:

Eu queria ser um sábio,
mas não me foi conferido
o dom do conhecimento universal das coisas.
Fui laureado com a dádiva da visão ínfima,
aquela que ilumina os primeiros grãos de areia.
Assim como Einstein,Copérnico, Freud,
que também foram desses que receberam
apenas o olhar reto

Existe esse desprezo mesmo? E o que seria essa sabedoria, esse “dom” a que você se refere?

Não existe um desprezo, mas uma afirmação de que a poesia necessita de muito pouco para acontecer. Pode ser uma conversa entre amigos, um caminhar na praça, o peso do mundo – como diria Drummond. Tenho amigos que dizem que escrevo simples, que eu deveria rebuscar mais e mostrar toda a capacidade linguística do poema. Para que enfeitar se o belo é simples? O leitor precisa entender o poema. Não há necessidade de o escritor escrever apenas para ele apenas. Há os que defendem isso, não eu. A questão neste poema é justamente a sublimidade poética, se assim posso chamar.

Não sou intelectualizado, não sou dono da verdade absoluta do mundo. Não tenho o dom do conhecimento universal das coisas. Meu dom é outro. Interesso-me pelas pequenezas da vida e delas retiro o material de que preciso. Sou um poeta de olhares e não de intelectualidade, embora tenha a minha (risos). Mas, para a poesia, não sou como os poetas da geração de 90, que intelectualizaram a linguagem. Há uma racionalização dos sentimentos. Pode existir isso? Sim, pode. O que não quer dizer que não sejam bons. Gosto do Eucanaã Ferraz e da Cláudia Roquette-Pinto com suas imagens. Mas acho que a poesia também pode existir do sentimento comum. Se ele quiser, vá em frente, rebusque. Eu não. Meu dom é o olhar reto, o olhar simples, mas abrangente, dentro do caminho que escolhi. Para muitos o vento é apenas vento. Eu já o considero poesia.

A literatura, o ato de ler, é sempre um diálogo com o autor?

Sim e não. Existem livros em que o diálogo com o autor só acontece quando o leitor consegue captar a essência do texto. É como se tudo o que estivesse contido na obra fizesse parte do pensamento do leitor. É o que vemos em poetas como Mário Quintana, tão popular pela facilidade de escrever o que muitos acreditam e pensam. Há uma conexão, uma química, como em um “namoro”. Depois vem a eternidade. Quando a literatura é utilizada apenas como forma prazerosa de navegação pelo conhecimento, como uma pessoa que lê A Divina Comédia [do escritor italiano Dante Alighieri, séculos 13 e 14], não existe o diálogo, mas apenas a abertura para a cultura. Entretanto, todo autor deseja que seu texto dialogue com o leitor. O interessante é que a poesia tem o poder de ser autoritária. Ela não dá aberturas. Ou você ama ou odeia.

Morte, velhice, entes queridos que se foram, lembranças, momentos que ficam guardados em fotografias, lugares, vidros — esses temas surgem muitas vezes ao longo do livro. Você também está “em busca do tempo perdido”, como Proust? Qual o valor “do que acaba” para você e para a sua poesia?

O valor do que se foi é imenso para o meu fazer poético. Não somente do que se foi, mas do que virá e do que ainda é. Algumas vezes, damos valor às coisas somente depois de se esvaírem. E esse é o pior momento: a consciência do extinto. Temos que dar valor a tudo agora para que os fantasmas antigos não voltem para nos assombrar. Existe muito de mim em cada texto, e talvez eu seja uma dessas coisas que também ficarão na memória de muitos. Ou não, apenas uma poeira no chão da estrada morta enquanto outros virão. Por enquanto estou aqui, “em busca do tempo que virá”.

Vidro de Guardados é como uma cápsula atemporal que jamais deve ser esquecida, embora seja perecível. Quando comecei o livro não esperava que ele terminasse como um álbum de fotografias já amarelado pelo tempo ou uma coletânea de reminiscências. Mas a poesia é que escreve o autor não o contrário. Se você luta, perde. A poesia tem mais fôlego.

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

Compartilhe esta postagem:

Participe da conversa