A Crítica! A Santa Crítica

Karl Marx está em dívida com o escritor Honoré de Balzac, nascido em 20 de maio de 1799 e falecido em 18 de agosto de 1850. A imensa obra do francês — sua Comédia Humana e seus oitenta e oito títulos — compuseram um painel da vida burguesa como emaranhado de relações sociais e interesses, que, de acordo com autor de O Capital, demonstrava o mundo capitalista com mais realismo do que qualquer um já tinha feito. Balzac criou um universo particular. Misturou-se com o vulgo, observou em silêncio como fantasma discreto, coligiu seus dados das várias fontes e conseguiu o que se propôs quando decidiu ser romancista: o seu objetivo era “fazer, com a pena, o que Napoleão fez com a espada”.

Sua análise social é precisa e ácida. Um dos trechos de Pai Goriot diz o seguinte: “Sabes como fizeram seu caminho até aqui? Pelo brilho do gênio ou pelo recurso da corrupção. É preciso penetrar nessa massa de gente como uma bala de canhão, ou devastar como uma peste. A honestidade não serve a ninguém. A corrupção predomina, o talento é raro. Sendo a corrupção a arma da mediocridade que abunda, você a sentirá por toda a parte”.

Nesse texto, esta revista usa Balzac contra si mesma — ou contra o jornalismo cultural de forma geral. Em As Ilusões Perdidas, o escritor descreve os jornalistas tais como manipuladores, chantagistas, sofistas que controlam as palavras e as opiniões segundo sua necessidade momentânea. No caso específico de um livro ou de peça, um dos personagens ensina como escrever um artigo positivo e um outro negativo — ambos sem dar concessões — sobre a mesma obra. Um texto a louva, outro a execra. Isso se dá com a escolha certeira de quais elementos colocar em evidência e quais não citar: o corpo do texto cria a imagem desejada do livro ou peça, e bloqueia ou aumenta a vontade do leitor em conhecê-la.

Não se afirma aqui que haja um tipo de prática tão baixa no jornalismo atual. Mas mesmo o crítico bem intencionado tem suas convicções, suas predisposições. O que se sugere é que se use esses trechos de Balzac como uma espécie de antídoto: passar a reparar, na estrutura de qualquer crítica, todo o contracampo (para usar um termo cinematográfico), tudo aquilo a que não se faz menção e que amenizaria ou transformaria o teor do texto.

Modo de Usar

Suponha um livro, qualquer livro, e veja se consegue enxergá-lo em dois. Difícil?

— Ora! Você nem imagina como isto se faz às pressas. Quanto ao Voyage em Égypte, eu abri o livro e li uns trechos aqui e ali sem cortá-lo, descobri onze erros de francês. Vou fazer uma coluna dizendo que o autor ficou sabendo das notícias falsas através das inscrições das pedras chamadas de obeliscos, mas que ele não conhece a própria língua, e eu vou prová-lo. Direi que em vez de nos falar de história natural e de antiguidades, ele devia ter tratado apenas do futuro do Egito, do progresso da civilização, das maneiras de unir o Egito à França, que, depois de tê-lo conquistado e perdido, pode se ligar de novo a ele por ascendência moral. Para culminar, uma ladainha política, tudo entremeado com tiradas sobre Marselha, sobre o Levante, sobre nosso comércio.

— Mas suponha que ele tenha afirmado exatamente isso, o que você faria?

— Bem, eu poderia dizer que em vez de nos chatear com assuntos políticos, ele deveria ter escrito sobre arte, e descrito os aspectos pitorescos do país, sua cor local. Então, a crítica se lamenta: a política está infiltrada em todo lugar, nós estamos cansados de política — política por todos os lados. Eu poderia dizer que sinto falta daqueles charmosos livros de viagem que falaram das dificuldades de navegação, os prazeres de cruzar a fronteira, e todas as coisas que aquele que nunca viajará nunca saberia.

— Meu deus! Mas a crítica, a santa crítica! — diz Lucien.

— Meu caro — diz Lousteau — a crítica é uma escova que não pode ser usada em tecidos leves, de onde ela levaria tudo.

Aí o tal trecho de As Ilusões Perdidas. Tente você, leitor.

Aplicação Prática

Vamos tentar com esse texto que você está lendo agora. O primeiro parágrafo é de tom explicitamente promocional: há ali o objetivo evidente de engrandecer o autor e a obra, para que o leitor se interesse por ele e, por conseguinte, pelo próprio artigo. Se eu tenho a intenção de ‘engrandencer’ o escritor, ou ao menos evidenciar seus pontos principais, já é um bom sinal de que não sou totalmente confiável. Eu poderia dizer, no entanto, em minha defesa, que Balzac é um autor consolidado, seu valor é reconhecido por todos. E isso seria verdade, mas só demonstraria que estou disposto a seguir ao cânone, o que o senso acadêmico determinou como importante. Por que eu deveria seguir esse cânone?

Em qualquer um dos casos, vendedor do próprio peixe ou maria-vai-com-as-outras, não me dê total importância. Mantenha um pé atrás.

Há também nesse primeiro parágrafo alta carga opinativa, defendendo alguns ideias que eu não talvez não devesse defender. Eu digo “a imensa obra…” — mas isso diz de fato alguma coisa sobre a qualidade da mesma obra? Não. É um autor com muitos livros até aqui, mais nada. Acredito que o valor de um escritor aumenta segundo sua produção? É um tipo de visão liberalista da literatura. Arte é capitalismo?

No mesmo parágrafo, eu cometo uma falácia da autoridade. Cito Karl Marx para emprestar ainda mais valor à Balzac — se até Marx gostou, leitor, você irá, ou mais precisamente, deve gostar. Mas isso também não diz nada sobre a obra.

O terceiro parágrafo tenta atrair a atenção com um perfil de jornalista que não confere com a visão que geralmente se tem da profissão hoje. Não se acredita que nós sejamos manipuladores, chantagistas, sofistas que controlam as palavras e as opiniões segundo sua necessidade momentânea — mas por que não, se há exemplos históricos da traição, digamos, do jornalismo? Por que confiar no jornalismo? Se o leitor partisse desse ponto de vista, o meu parágrafo não teria metade da força. Ele diria: inteligente esse Balzac. Mas me diga algo novo.

Se eu expusesse apenas as ideias opostas que acabei de apresentar, o efeito poderia ser o de afastar o leitor da obra. Assim:

Com um obra grande demais para ser lida por inteiro nos tempos em que vivemos, esse escritor francês Balzac faz uma crítica à sociedade e ao capitalismo com a qual estamos já por demais acostumados. Relações sociais e amorosas pautadas pelo interesse, lucro, vingança, ascensão social — todos esses são remoídos nas novelas toda estação. Filmes como Closer também tem suas paixões cínicas. Ou De Olhos Bem Fechados. Se formos ler Balzac apenas pelo seu cenário de época, seu valor histórico — por que não um livro de história propriamente dito, uma pesquisa na internet, em que poderemos ver a carga de informação com nuances das várias fontes? Não leia Balzac. Fique com o resumo.

Meu Deus! A Crítica, a Santíssima Crítica!

Mas o que fiz não foi boa crítica. Pode ter sido razoavelmente informativa, mas não boa crítica. Isso é indicado pela terceira seção desse texto e provado pela segunda. Na seção que acabaste de ler, leitor, eu tenho o objetivo claro de derrubar o texto anterior, pondo-o como a obra de uma besta. Não menciono, no entanto, o segundo parágrafo, e é fácil que isso passe despercebido. Nesse trecho, eu não produzo uma opinião, mas sustento uma interpretação. Primeiro, faço uma afirmação:

Sua análise social é precisa e ácida.

Verdade? Mentira? Confirme por si mesmo:

Um dos trechos de Pai Goriot diz o seguinte: “Sabes como fizeram seu caminho até aqui? Pelo brilho do gênio ou pelo recurso da corrupção. É preciso penetrar nessa massa de gente como uma bala de canhão, ou devastar como uma peste. A honestidade não serve a ninguém. A corrupção predomina, o talento é raro. Sendo a corrupção a arma da mediocridade que abunda, você a sentirá por toda a parte”.

Não consigo imaginar uma pessoa que não veja uma atemporalidade nesse trecho, uma pessoa que não veja que o que escreveu alguém que viveu no século 19 permeia a nossa sociedade moderna. O poder de observação de Balzac está um pouco provado, esse não é o único valor na literatura, mas certamente é distintivo. Um resumo não dará senso da habilidade do escritor. O interesse disso terá julgamento dentro do gosto de cada leitor: não digo que é bom ou ruim, digo que é e ofereço uma prova. O leitor que escolha.

Mas, mesmo isso, é uma questão de opinião pessoal… por que deve o leitor escolher? Eu poderia dizer que, se ele passou a me ler, em princípio quer que eu lhe diga o que fazer. Então, caberia a mim dizer o que é bom ou ruim…

Ou: para que a crítica? Gosto não se discute.

Não? Por que não?

 

Autor

  • Jornalista formado pela Universidade Santa Cecília. Doutorando e mestre em Ciência da Informação e graduado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Pós-graduando em Filosofia Intercultural pela Universidade de Passo Fundo (UPF). Especializado em Gestão Cultural pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (Celacc), um núcleo da USP. Como escritor, publicou o romance "As Esferas do Dragão" (Patuá, 2019), e o livro de poesia, ou quase, "*ker-" (Mondru, 2023).

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