A Amargura da Doce Vida

Filme sobre prazeres, o clássico do italiano Federico Fellini, lançado há quase 50 anos, é pontuado por mortes, falta de sentido e abandonos. O jornalista interpretado por Marcello Mastroianni frequenta a doce vida das celebridades e da burguesia romana em festas e passeios, mas carrega a angústia de um casamento em crise e o reconhecimento amargo da falta de sentido de seu ofício. O hedonismo faz a sua vida doce, porém cobra-lhe as dores do fim de festa.

Se a carga existencialista trágica decorrente da falta de sentido de uma certa vida burguesa torna Fellini tematicamente um tanto similar a Michelangelo Antonioni, a vibração cênica e o frenesi narrativo o tornam antagônico ao seu compatriota e parceiro de geração. Na mise en scène repleta de acontecimentos e circulação de personagens, e na utilização de temas musicais de Nino Rota que ecoam o circense, A doce vida é um filme alegre na medida dos prazeres festivos e estranho à gravidade crítica do cinema de alguns de seus colegas, como Luchino Visconti e o próprio Antonioni.

Fellini nunca abandonou as suas raízes do neo-realismo, de quem chegou a ser colaborador como roteirista de filmes de Roberto Rossellini. Por outro lado, no lidar lúdico com narrativas popularescas, há um alinhamento notável entre os fanfarrões Fellini e Sergio Leone. Assim, Fellini é inigualável em sua capacidade de ser tematicamente muito próximo aos cineastas italianos de sua época, mas distante deles o suficiente para imprimir sua marca num cinema essencialmente extravagante.

Mas o cineasta italiano da geração de Fellini que mais lhe permite comparações talvez seja Pier Paolo Pasolini. Se eles não são cineastas católicos no sentido rigoroso do que se poderia esperar, tanto Fellini como Pasolini, vez ou outra, constroem alegorias que justificam o próprio credo. No início de A doce vida, a estátua de Cristo, erguida por um helicóptero que perpassa das ruínas da Roma Antiga à atual metrópole, é admirada por operários, jovens à beira da piscina e outras pessoas de diversas classes sociais, o que confirma o universalismo cristão que resiste pela história.

A doce vida é um filme profundamente moral, mas bem pouco moralista, naquilo que seria o sentido vulgar do termo, de construções simplórias de juízos morais. É interessante como o registro de Fellini dos prazeres mundanos é distante do sensacionalismo presente em alguns melodramas de matiz puritana. Fellini é antipuritano o suficiente para retratar a agradabilidade dos prazeres com uma sinceridade sempre festiva, ainda que seja devidamente católico para entender as conclusões negativas do hedonismo.

As analogias transcendentais do filme se encerram na cena do gigantesco peixe morto à beira mar. Quando o jornalista contempla a representação da morte com os seus amigos de festa que correram alegremente para a praia, há uma certa desolação em seu olhar. Desolação antagônica à da garota de feições angelicais que lhe convida, do outro lado da praia, para ele estar junto a ela. Numa cena anterior, Marcello conhecera a garota num bar e havia se encantado com o seu perfil angelical. Porém, ele recusa o convite da proximidade com o belo e segue o destino incerto dos amigos em fim de festa. Ele opta por um tipo amargo de doce vida. O rosto da garota em close, que parece ser uma representação da própria complacência providencial, sorri. É o fim de um grande filme.

 

Autor

Compartilhe esta postagem:

Participe da conversa