O Que Filosofia da Ciência Pode nos Ensinar sobre os Problemas da Informação?

A pedido de um amigo me incumbi da missão de elaborar um texto relacionando a minha área de estudos com um tema proposto para dar início a um debate sobre ele. A questão trabalhada seriam os problemas da informação nos nossos modelos de mídia e comunicações, e a minha área de especialização é a filosofia da ciência. Não sei se a tarefa devia ser fácil ou difícil, mas é uma relação que eu pessoalmente nunca tinha feito. Depois de refletir no assunto me coube aqui levantar quais são as contribuições que a tradição da filosofia da ciência podem nos trazer para pensar os problemas da informação atual, as bolhas de opiniões, as fake news, e a polarização social decorrente desses conflitos de informação.

A primeira observação que se pode fazer é que caberia no caso levantar inspirações e influências, não um estudo com uma aplicação direta e apropriada. A filosofia da ciência é um ramo específico da filosofia que se propõe a fazer um discurso sobre a ciência, seja para elaborar críticas à metodologia científica e ao discurso científico contemporâneo, seja para defender o projeto científico e elaborar bases mais sólidas para esse discurso. Em todo caso é uma área da filosofia bem direcionada, e à primeira vista seria um equívoco aplicar sem ressalvas as suas considerações a outros objetos que não o objeto a que ela se destina. E cabe então pensar aqui quais são as relações possíveis e por que seria uma aplicação adequada.

Filosofia da ciência é um ramo de uma área maior da filosofia que chamamos de epistemologia. Este seria o estudo do conhecimento, seu funcionamento e suas possibilidades. Em nosso tempo, provavelmente porque a ciência passou a ter grande destaque na nossa sociedade e a se mostrar como a forma de conhecimento com maior sucesso e maior prestígio, o ramo da epistemologia que se debruçou sobre a ciência passou a crescer muito e a dominar o discurso da área (gerando até críticas da parte de filósofos de que a epistemologia mais geral estaria sendo esquecida em favor dessa filosofia da ciência). Por outro lado cabe dentro de uma epistemologia mais geral tratar sobre o assunto da informação e suas problemáticas, já que são relações de conhecimento e de tipos específicos de conhecimento e de relações que se convencionou tratar por “informação”. De fato, está se desenvolvendo um ramo da filosofia chamado filosofia da informação, e eu não penso que seria nem um pouco polêmico categorizá-lo como um ramo tanto da epistemologia quanto da filosofia da ciência.

A ideia de um método científico está totalmente na alçada da filosofia da ciência. Nem é novidade também que se busque metodologias para lidar com o problema da informação. O ponto é que isso não foi suficientemente popularizado

Porém de minha parte eu não tenho leitura o suficiente sobre esse campo relativamente novo para me arriscar a tratar dele com segurança, e por isso me atenho à minha área. Deixo para os amigos que possuam mais leitura quanto a isso que me complementem e apontem contribuições.

Lendo por cima, porém, alguma coisa sobre o tema, me surpreendeu (ou nem tanto) que em alguns artigos os autores se referem eles mesmos a bases de filosofia da ciência. E na verdade esse tipo de procedimento não é pouco comum. Acontece que a filosofia da ciência em seu percurso sempre aparentou ser um ramo que direcionava um enfoque sobre a ciência, mas com pretensões de ser um pouco mais. Apareceu principalmente como um discurso que se debruçava sobre as ditas ciências naturais para avaliar seus avanços e a segurança de seu conhecimento.

Em específico, boa parte de uma primeira leva da filosofia da ciência parecia tecer avaliações sobre a física e áreas próximas a ela, sendo que isso se tornou até uma crítica recorrente, de que nosso ramo se dedicava muito à física e ignorava as particularidades de outras áreas científicas. Isso não foi, no entanto, arbitrário. A física se mostrou repetidamente uma área bastante sólida e causou forte impressão. Pierre Duhem, em seus textos muito pertinentes de filosofia da ciência, fazia antes de tudo um discurso sobre a física (ele mesmo era um físico), mas não sem deixar escapar pretensões maiores, de que a física matemática, sendo a ciência mais aperfeiçoada e precisa, era um modelo para as outras ciências 1, esperando que esse modelo fosse seguido.

Karl Popper foi pessoalmente muito tocado pelo poderio teórico da física no acontecimento histórico em que a teoria de Albert Einstein previa um fenômeno ainda não observado anteriormente, e que foi confirmado no eclipse de 1929. Era muito poderoso esse modelo de conhecimento capaz do que chamamos de “poder preditivo”: de tal forma conseguia apreender a realidade (ao menos num discurso de realismo científico como o de Popper) que conseguiu prever dados empíricos antes que eles ocorressem. Einstein previu que a gravidade de um objeto muito massivo poderia curvar a trajetória da luz (que se supunha ser sempre reta) e no eclipse foi possível tirar fotos das estrelas por trás do sol, cuja luz passava próxima a ele, e observar que suas posições estavam realmente erradas, ou seja, a luz curvou sua trajetória ao se aproximar do Sol e chegou na câmera num ponto diferente do que normalmente chegava no céu noturno.

O poder da física chocava, e hoje mais ainda o poder das ciências em geral, em especial os desenvolvimentos biológicos e suas capacidades de intervenção tecnológica. Entretanto, uma filosofia que se detém na tarefa de abordar esses diferentes campos científicos acaba esbarrando em suas particularidades, e antes de se unificar num discurso só sobre o conhecimento ela se fragmenta em filosofia da física, filosofia da biologia, filosofia da química e mesmo filosofia da medicina etc.

Ainda assim é recorrente que discursos inicialmente direcionados para ciências específicas, como o sobre a física do Duhem, ou aquele sobre as ciências mais experimentais, como o de Popper (e ele tinha critérios bastante rígidos para determinar o que era ciência ou não, com seu conceito de falseabilidade) 2 foram muitas vezes tomados como influência e generalizados como ferramentas para ajudar a pensar outras formas de ciências, como as ciências humanas, ou mesmo conhecimento no geral. Nesse espírito, é reconhecendo o poderio do conhecimento científico e sua influência em outras formas de conhecimento que eu levanto a seguir qual o tipo de ajuda no que se refere a pensar os problemas da informação esse instrumental teórico pode nos fornecer.

Metodologia

Um problema recorrente promovido pela rapidez e multiplicidade das mídias atuais é a quantidade massiva de informação e a perda da confiabilidade, a dificuldade do leigo, do usuário comum, de ter critérios para avaliar a veracidade da informação. Isso cria as famosas fake news, e ambientes de polarização em que grupos escolhem por critérios inadequados quais informações são verdadeiras e quais informações são falsas. Em geral esse critério (mesmo que implícito) é o da concordância ou não da informação com crenças que esses grupos de indivíduos já tinham de antemão. Isso é o que alguns teóricos e muitos discursos científicos atuais denunciam como o pecado do viés de confirmação, a predisposição (que devemos evitar) de acolher conhecimento que nos é conveniente.

Mesmo autores clássicos sempre atentaram para problemas parecidos, muitas vezes com outros termos que hoje soariam polêmicos em muitos meios (porém ainda de uso corrente em filosofia da ciência), como critérios metodológicos de neutralidade cognitiva ou ideais que deveriam ser almejados pelo fazer científico como a imparcialidade. Diferente do que muitos acreditam hoje em dia, nunca se tratou de supor ingenuamente que homens de ciência pudessem ser particularmente imparciais e neutros, mas de estabelecer metodologias e critérios para que as pesquisas fossem realizadas de modo a não deixar as preferências pessoais ou crenças anteriores influenciarem no resultado. E tudo bem, a filosofia da ciência com o tempo estabeleceu críticas de que essa influência não era tão nula quanto se pensava (como vamos ver mais a frente). Ainda assim a principal contribuição que conseguimos extrair inicialmente ao nos debruçarmos na ciência em busca de inspirações pro problema da informação é que uma boa forma de lidar com o conhecimento (em busca de uma confiabilidade) é estabelecer um método.

O que é o fato? O dado empírico é um ponteiro que atinge determinado número ou a oscilação da haste? A possibilidade da observação científica, de apurar os dados empíricos, de se relacionar com os fatos, depende de um conhecimento teórico anterior que interprete aquele fenômeno

A ideia de um método científico está totalmente na alçada da filosofia da ciência. Nem é novidade também que se busque metodologias para lidar com o problema da informação. Existem recomendações, e mesmo guias ilustrados, asseverando metodologias para o leigo lidar com o influxo de informação e avaliar ela. Checar fontes, buscar citação em mídia tradicional, rejeitar sensacionalismos e clicar em notícias suspeitas invés de acolher pela manchete, não pretendo aqui inventar a roda. O ponto que se poderia ressaltar é que isso não foi suficientemente popularizado. Não entrou na cabeça do publico médio que uma metodologia é a base imprescindível para o recebimento de informação. E aqui nós poderíamos nos alongar nas buscas de soluções e de instituições para aplicar esse tipo de método (como as agências de fact checking). Isso tudo seria necessário para modificar a situação social atual da informação, em que a falta de confiabilidade gera disputas sobre o que é fato e o que não é. E num cenário ideal as divergências deveriam ser sobre ideias e não sobre fatos.

Fatos, dados, e fontes empíricas

Falar de fatos também não é um tema tão simples, e muito disso se deve à filosofia da ciência. Não é algo surpreendente para a filosofia da ciência a crise de informação atual estar relacionada a disputas sobre o que é um fato e o que não é. Isso porque no nosso ramo de estudos o fato não é algo colocado de forma inequívoca como costuma ser para o leigo. Para entender isso, vai ser necessário adentrar um pouco em alguns autores e debates da tradição da filosofia da ciência.

Quando pensamos em fatos e em informação, talvez pudéssemos representar num esquema simplista (e aqui ressalto que não estou tratando de uma abordagem mais técnica como pode haver na filosofia da informação) que nós imaginamos no geral que a coisa se dá do modo como represento na figura a seguir. Os acontecimentos do mundo, sendo acolhidos por jornalistas, testemunhas ou câmeras, constituindo os fatos. Esses agentes disseminam os fatos através de seus discursos e transmitem como informação. Uma informação que confere com os fatos é verdadeira. Por outro lado outras informações que transitam nos discursos não correspondem a nenhum fato e assim não falsas.

Esse modelo talvez não contraste muito com a noção de “fato” que alguns autores clássicos estabeleceram. Em David Hume, temos a noção clássica da dicotomia entre fato e valor. Era importante estabelecer que alguns discursos como o científico deveriam se estabelecer apenas sobre fatos, que eram conseguidos empiricamente no mundo, e era inadequado derivar os fatos de valores ou vice-versa. Num empirismo clássico, simplificado, talvez pudéssemos colocar para comparar com nossa primeira figura que os tipos de juízos adequados e inadequados ocorriam de tal modo:

Assim os fatos eram acolhidos como uma relação direta com o mundo (como comumente se pensa ser a informação hoje) e o erro ou inadequação de um juízo ou informação seria decorrente de sua origem. A relação entre o fato e o conhecimento é direta ou pelo menos mediada por procedimentos e métodos que apenas assegurem essa relação simples.

Numa abordagem mais recente da filosofia da ciência a coisa já não funciona assim.

Ao se debruçar no conhecimento científico, físicos e filósofos começaram a perceber que a relação do fato com a ciência talvez não fosse tão direta. Muitas vezes na história das ciências (e vocês vão notar em meu texto que a filosofia da ciência conversa o tempo todo com a história da ciência) algo que se pensava ser fato depois se descobre não ser. E conhecimento que antes era científico depois é substituído por outra ciência. Em especial alguns autores, olhando a forma como os experimentos científicos se relacionavam com os fatos, perceberam que essa relação não era direta, mas era mediada.

Duhem, entre os muitos avanços que trouxe para a filosofia da ciência, mostrou algumas limitações entre as relações que as teorias científicas têm com os fatos 3. Ele defendia, sim, que a ciência (e em especial a física) se relaciona com os dados empíricos e deriva deles. Não se trata de abandonar o papel empírico da ciência. Porém ele apontou que num experimento científico a coleta de dados não é uma relação direta, é uma interpretação dos fenômenos que pressupõe conhecimentos científicos anteriores. Um físico, descreve Duhem, num laboratório, faz testes numa máquina com um medidor. A aparelhagem talvez pouco compreensível para um leigo expressa os resultados do teste num ponteiro com marcações numéricas ou em outra máquina nas oscilações de uma haste de metal que marca um papel. O que é o fato? O dado empírico é um ponteiro que atinge determinado número ou a oscilação da haste? Certamente que não, isso tudo representa valores e fenômenos. Porém o leigo olhando a máquina, o que compreenderia desses fenômenos além do ponteiro? O físico imaginado pelo Duhem recomenda ao leigo que faça um curso da disciplina científica específica que lida com aquele assunto para que entenda o fenômeno. E esse é o ponto importante que Duhem nos mostra: a possibilidade da observação científica, de apurar os dados empíricos, de se relacionar com os fatos, depende de um conhecimento teórico anterior que interprete aquele fenômeno.

E não só isso: apenas para montar o equipamento que permite uma experiência empírica, uma série de conhecimentos teóricos anteriores são pressupostos para que se entenda o funcionamento da máquina, como teorias científicas que a expliquem e as coisas que ela mede. Além de uma série de conhecimentos anteriores em que essas teorias se embasaram, como a matemática e lógica. Para um exemplo mais simples, imaginemos um telescópio, que permite a obtenção de dados empíricos sobre as estrelas e outros corpos celestes. Para aceitar o funcionamento do telescópio, e que ele nos mostra imagens de coisas reais lá em cima, é preciso uma teoria sobre como funciona a óptica, como a luz se reflete e permite a visão, e porque as lentes do telescópio ampliam aquela imagem refletindo a luz de maneiras específicas. E isso não é pouca coisa. Tanto que quando Galileu apontou pela primeira vez um telescópio para os céus e divulgou suas observações 4, as primeiras críticas que ele recebeu eram de que seu instrumento não era confiável e que não mostrava imagens reais.

Duhem e outros filósofos da ciência explicam que toda observação ocorre com uma interpretação daquele fato a partir de conhecimentos anteriores. Hanson vai mais além de assegura que não existe observação pura, e que toda observação é simultaneamente uma interpretação 5 E eles não são os únicos a fazerem críticas à crença de que a simples obtenção de fatos nos dariam um conhecimento direto. Popper nos mostra como elaborar teorias que correspondam aos fatos é simples e defende que o que garante a força de uma teoria não é a quantidade de fatos que a confirmam, mas a possibilidade de que novos fatos possam refutá-la, e isso ele chamou de falseabilidade. Ele nos dá o exemplo de que nós podemos observar na natureza dezenas de cisnes brancos. Nem por isso seria correto concluir com base nesses fatos que “todos os cisnes são brancos”. E isso independente de vermos centenas ou milhares de animais, da frequência da repetição daquele fato. Isso não nos dá um conhecimento científico adequado sobre cisnes, simplesmente porque basta que observemos um único cisne negro para que esse conhecimento seja falso. A função do cientista seria para Popper a de procurar testes que mostrassem que sua teoria era falsa, pois apenas nessa ocasião é que os fatos seriam relevantes. Popper critica severamente modelos de conhecimento que não são “falseáveis”, ou seja, que embora correspondam a muitos fatos não abram possibilidade para que novos fatos o refutem. É possível inventar qualquer teoria arbitrária com base em fatos reais (como a teoria de que todos os cisnes são brancos) sem que essa teoria seja verdadeira.

Se voltarmos à história da ciência, podemos pensar em exemplos interessantes sobre como a relação com os fatos dependia do conhecimento teórico anterior. Na ciência clássica e medieval ao se desenhar a trajetória de um projétil arremessado para cima (e temos os registros em textos daquela época com esses desenhos) se representava o projétil subindo em linha reta e depois caindo em  linha reta. Isso soa absurdo para um conhecimento atual que entende que uma trajetória do tipo ocorre num arco, fazendo uma curva. A questão é: a pessoa que fez o desenho nunca viu uma trajetória acontecer de fato? O que a levaria a desenhar daquele modo? Isso não era arbitrário. Tinha um motivo muito claro para desenharem as trajetórias retas: a física de Aristóteles.

Na física aristotélica os movimentos não podiam ser compostos. Eram sempre movimentos uniformes numa só direção. A bala do canhão primeiro subia numa diagonal reta e depois caí numa reta em direção ao chão. O ponto é que esse movimento apesar de ser contrário ao fato era o que esperava a teoria. Será que os manuais militares, bastante práticos, estariam se preocupando em agradar os filósofos ao desenhar a trajetória aristotélica como faziam? Ou será exagero supor que a teoria já possuída de antemão afetava de tal modo a interpretação dos fatos, que o desenhista realmente se forçava a enxergar a trajetória real da bala daquele modo quando a via? Claro, todos podiam na praça pública ver o desenho bem claro de uma trajetória em arco, realizado por uma fonte jorrando água pra cima. Provavelmente Aristóteles diria que aquele erro da fonte se devia aos acidentes da matéria.

Além disso, durante a história da ciência, muitas vezes a mudança de teorias científicas não se devia a descoberta de novos fatos. Numa visão ingênua da ciência, poder-se-ia supor que as teorias científicas se desenvolvem e se modificam de acordo com a acumulação de novos dados empíricos, novos fatos sobre suas áreas de estudo. Porém por muitas vezes foram as mudanças meramente teóricas que determinaram a escolha de novos modos de entender os fatos e de se obter os dados. Nada exemplifica melhor isso do que a revolução copernicana.

Durante toda a história do pensamento os homens comuns e os filósofos olhavam pra cima e viam o Sol se mover nos céus, fazendo um movimento em torno da Terra. Isso era o fato. E era um fato óbvio, que poderia ser conferido por qualquer um. Quando Copérnico propõe em sua obra clássica 6 mover o observador, que a Terra é que estava se movendo e carregando com ela quem observa, e causando a impressão de que o Sol se move, ele não estava com isso mudando os fatos e colhendo novos dados empíricos. Os dados continuavam os mesmos, o fato era um só. Porém a mudança teórica corrigia drasticamente a forma como entendemos esses fatos. E isso mesmo na contribuição de Galileu, que foi importante para a queda do geocentrismo e para popularizar a visão copernicana. É um erro comum achar que os dados empíricos do telescópio foram o mais importante para a mudança de paradigma sobre os astros. Eles foram importantes, claro, e ajudaram a conceder plausibilidade para uma visão da astronomia nova que estava sendo proposta e que entrava em choque com a visão aristotélico-ptolomaica da tradição. Porém o mais importante para essa contribuição foi a refutação teórica que Galileu fazia da física aristotélica no seu Diálogo. E Galileu deixa claro que pela sua teoria era impossível se mostrar empiricamente que a Terra se movia de dentro dela 7 (isso só podia ser feito de modo indireto, com uma teoria científica e não com fatos).

Evitar ler as opiniões apenas de quem concorda com suas posições, tentar conhecer a ideologia dos outros. Isso possibilita uma abertura para o diálogo. Atirar suas críticas de dentro de sua bolha não vai alcançar a bolha do outro, não alcança porque seus fatos não são reconhecidos enquanto tais

E como fica em vista dessa crítica da ideia de fatos a nossa compreensão da informação? Nossos filósofos se referem a conhecimento científico, mas não é difícil ver como isso pode ser facilmente aplicado na obtenção comum de informações. Dependendo dos conhecimentos anteriores de um observador, de suas crenças e ideologias, uma mesma informação pode ser interpretada de maneira drasticamente diferente. Suponha uma breve imagem gravada de forma amadora num celular, de um policial fardado desferindo golpes de seu cassetete num jovem negro e mal vestido. O fato gravado é um só, e ainda assim a forma como dois cidadãos diferentes compartilhariam a informação nas suas redes sociais apresentaria diferenças drásticas. Um com um texto comemorando: “É isso mesmo! Alguma coisa errada o vagabundo tá fazendo pra apanhar. Pelo fim da impunidade”. Enquanto o outro se revoltaria “É um absurdo, a polícia truculenta agride um jovem inocente sem motivo”. Ambos pretendem estar embasados diretamente em fatos. E, mais do que isso, ambos acreditam com seus comentários estar defendendo a justiça! Casos como esse não são pouco frequentes, pois as disputas políticas atuais quase sempre se dão por choques de narrativas, raramente os dois lados da disputa concordam sobre os fatos, e isso se dá porque os conhecimentos anteriores determinam a forma como eles interpretam os fatos.

Porém não estamos perdidos num relativismo em que não seja possível uma apuração de fatos. Com todas as suas limitações expostas, ainda assim Duhem e Popper defendiam a validade da ciência. Com os conhecimentos anteriores adequados era possível entender o medidor do aparelho do experimento físico. Da mesma forma o acontecimento real do nosso policial agressor se deu de uma única e determinada forma. Um terceiro cidadão mais interessado poderia procurar exaustivamente mais sobre o acontecido, descobrir quem gravou as imagens, procurar testemunhas ou conseguir identificar o policial. Muitas vezes o ocorrido poderia muito bem se encaixar em tons de cinza, não ser algo tão simples e que se adeque tanto a qualquer um dos dois discursos ideológicos. O policial do vídeo poderia estar de fato capturando um bandido que acabava de agredir alguém e, entretanto, o rapaz poderia já ter se rendido e não apresentado resistência, configurando a agressão do policial como um abuso de poder, uma ilegalidade prevista em lei, tanto quanto a que o rapaz tivesse cometido.

Sendo a interpretação dos fatos determinada por nossos conhecimentos e crenças anteriores, como conseguir uma visão adequada sobre eles? Como conseguir uma informação que concorde fatos de diversas posições do espectro e evite a polarização e a disputa de narrativas? A nossa figura da recepção dos fatos e informações agora deve aparentar de uma forma desanimadora:

A resposta pode ser novamente a nossa resposta do começo: método. A virtude de reconhecer a forma como nossas crenças podem enviesar os fatos é que se pode tomar um cuidado maior com a procura de informações, para que isso não ocorra, ou que pelo menos diminua. Estipular a imparcialidade como um ideal possível, ainda que se entenda que em suas redes de informações normais, atualmente, as pessoas não sejam imparciais. Em nossa última figura podemos ver que cada grupo está fechado dentro de sua bolha, com o seu conhecimento prévio e a parte dos fatos que sua ideologia permite acolher. De dentro da sua bolha é impossível ter uma compreensão mais completa dos fatos, assim como Galileu apontava com o conhecimento de sua época que de dentro da Terra era impossível perceber seu movimento. A forma mais fácil de estourar a bolha é buscar informações de diversas fontes, diversificar e ver inclusive quais são os “fatos” diferentes que estão sendo interpretados pelos opositores. Evitar ler as opiniões apenas de quem concorda com suas posições e está na mesma ideologia, mas tentar conhecer a ideologia dos outros, tentar compreender quais são os critérios que eles usam para interpretar os fatos. Isso possibilita uma abertura para o diálogo, porque é muito mais fácil argumentar com alguém entendendo as suas posições e as suas crenças, criticar de dentro da bolha dele. Atirar suas críticas de longe, de dentro de sua bolha, não vai alcançar a bolha do outro, não importa se sua crítica fez trajetória reta ou em arco, ela não alcança porque seus fatos não são reconhecidos enquanto tais.

Bolhas, câmeras de eco, e paradigmas

Então chegamos mais propriamente ao problema das bolhas sociais. Num vocabulário mais crítico sobre a organização da informação nas redes sociais e nas novas mídias, se tornou de uso popular esse termo, “bolhas” de opinião. Mais raramente ouço “câmaras de eco”. Acho ambos relevantes para se entender o fenômeno da informação. Pessoas se agrupam nas redes sociais preferencialmente de acordo com suas ideologias, posições políticas e opiniões. Tornou-se bastante comum nas redes sociais atuais excluir e se afastar de pessoas que não tem as mesmas visões de mundo. E aí não só as pessoas se fecham numa bolha com suas crenças e ideologias, mas também em um convívio social de outros que concordam com essas crenças e ideologias e que reforçam as mesmas opiniões. A metáfora da câmara de eco é interessante porque a situação gerada se assemelha a de um espaço em que o som fica rebatendo e se repetindo. Nas câmaras de eco ideológicas as informações, visões de mundo, crenças, fontes sobre acontecimentos etc, ficam se repetindo dentro dos mesmos grupos.

As câmaras de eco são incomensuráveis. Isso significa inclusive que seria impossível dentro de uma dessas ideologias avaliar se ela é a verdadeira ou não, se você está do lado certo do debate político ou não. Esse questionamento é difícil e é algo que poucos conseguem fazer para si mesmos

Isso é reforçado pela forma como muitas mídias e redes sociais atuais funcionam, com algoritmos que controlam o que vai ser exibido para os usuários, se baseando nas suas escolhas e preferências. Um jovem que se interessa por uma visão de mundo de esquerda iria deixar o seu algoritmo viciado e lhe direcionando informações que coincidem com essa visão de mundo. Não apenas a sua interpretação dos fatos estaria enviesada pela sua visão de mundo (como tratamos acima), mas mesmo o tipo de informação que chega a ele estaria limitada por esse algoritmo que se baseia na mesma visão de mundo. Somado a isso os amigos que ele escolhe compartilham de suas opiniões e a reforçam. Se ele e alguns amigos se pronunciam que são “contra a atitude x”, e isso se torna uma tendência dessa visão de mundo, mais e mais pessoas que pensam parecido com ele começam a repetir essa posição. Pois mais um problema que se acumula nessa situação de reforço múltiplo é que as pessoas tentam adequar as suas posições às de seu grupo, para serem aceitas (afinal hoje em dia é normal até que excluam do convívio quem pensa diferente) e isso se torna mais um padrão de reforço. Uma voz gritada na câmera de eco será ouvida várias vezes, e relida nas redes sociais por quem gritou. Isso gera mais uma situação de reforço para o nosso jovem esquerdista, porque ele agora vê que todos à sua volta, todas as informações que lhe chegam e pessoas que ele considera sensatas (por concordarem com ele) repetem a mesma opinião, fazendo com que essa posição pareça hegemônica ou dominante. Isso reforça a sua visão de mundo como a única correta e a única correspondente aos fatos, e lhe traz a impressão que essa visão veio de fora, como informação, quando é um eco que ele (e seu algoritmo) construiu cuidadosamente ao redor de si.

A situação desse mapa de reforços, mostrando os reforços múltiplos que condicionam a informação, parecem constituir um cenário assustador ao indivíduo sincero que queira diminuir o viés e conseguir informações que ao menos busquem um ideal de imparcialidade. É uma tarefa difícil, um esforço pessoal hercúleo. Não é uma predisposição natural que alguns grupos tenham (pois talvez seja comum pensar que seu próprio grupo está mais próximo da verdade e que seja mais imparcial), mas é antes um esforço ativo para buscar se esquivar dos vieses e reforços.

Outra perspectiva que traz uma visão de mundo desanimadora, e que pode se assemelhar com essa em alguns aspectos, é a visão desenvolvida por Thomas Kuhn 8. Ele faz um estudo histórico reconstituindo as revoluções na ciência, os momentos da história científica em que houveram grandes pontos de virada, mudanças decisivas nas teorias, como, por exemplo, a revolução copernicana. Ele retrata as comunidades científicas a partir de uma abordagem social e tenta entender a forma como se dão essas modificações. O grande problema é que, segundo Kuhn, as teorias científicas numa ciência normal estão tão fechadas em si mesmas e comprometidas a achar dados apenas que lhe favoreçam, que elas não conseguem sequer conversar com teorias concorrentes. Kuhn estabelece a ideia de que diferentes teorias científicas são incomensuráveis, ou seja, que elas não podem ser comparadas diretamente para tentar avaliar qual delas é melhor ou para pegar partes boas de uma ou de outra. Elas são pacotes fechados e estão limitadas por relações de reforço e seus ambientes sociais (das sociedades científicas) e esses pacotes fechados muitas vezes são escolhidos mais por uma posição de crenças do que baseadas em dados ou fatos. Esse ambiente todo é chamado por Kuhn de paradigma. Minha intenção aqui é fazer uma comparação entre a ideia de paradigma do Kuhn e as câmaras de eco.

O tipo de ideia que Kuhn expôs fez com que ele não seja exatamente o autor mais popular entre os teóricos que querem defender a ciência. Seu texto abriu muita margem para relativismo e para discursos de que a ciência seria um fenômeno social arbitrário. De fato Kuhn chega a colocar que quando há troca de teorias a escolha não é racional e que por vezes a teoria anterior para de ser defendida simplesmente porque os cientistas mais velhos morrem. Apesar disso é importante acentuar que Kuhn nunca quis que suas ideias resultassem numa visão relativista, ele se declarou publicamente contra o relativismo e contra essa interpretação de sua obra. Mesmo assim a partir dela surgiram diversas correntes relativistas de interpretação da ciência de um ponto de vista social.

É semelhante nas nossas câmaras de eco a forma como seu corpo se constituí num todo fechado e que não tem ferramentas para se comunicar com outras câmaras de eco. Pois todas suas referências de base de visão de mundo, conhecimentos que pressupõe para conversar, os fatos que aceitam como verdadeiros, são restritos a essa câmara. Assim como no paradigma se poderia colocar que as câmaras de eco são incomensuráveis. Pode-se inclusive levantar que seria impossível dentro de uma dessas ideologias avaliar se ela é a verdadeira ou não, se você está do lado certo do debate político ou não. Esse questionamento é difícil e é algo que poucos conseguem fazer para si mesmos.

E quando se parte do pressuposto que a ciência funciona desse modo, quando se aceita essa abordagem social, não se tem uma resposta fácil ou uma forma de lidar com isso. Muitos teóricos rejeitam essa abordagem e rejeitam o conceito de incomensurabilidade (pois existem visões concorrentes em filosofia da ciência e bem embasadas que permitem uma interpretação diferente desse ambiente científico). Em nossa abordagem aqui, em busca de ressaltar os problemas e buscar soluções, pode ser fecundo usar esse conceito da incomensurabilidade como uma comparação, como uma forma de ajudar a pensar as diferentes câmeras de eco, mas não o aceitar de forma absoluta, ou seja, não aceitar que comunicação seja mesmo impossível e que não possamos pensar em soluções.

Soluções passam por formas de fazer os diferentes grupos conversarem e conseguirem pensar fora das câmeras de eco. Isso passa principalmente por reconhecer que esses mecanismos existem, que o tipo de informação que recebemos chega por esses reforços. Disseminar a ideia de que devemos buscar métodos de conseguir informações que escapem desse viés. Debater publicamente sobre as essas limitações e entender como a busca de superá-lo é um requisito para o debate público ocorrer. Tentar fazer com que os dois lados reconheçam sua tendência e busquem fontes e fatos que possam ser compartilhados por ambos os lados, e que assim possibilitem o debate. Perceber que tipo de discurso, que tipo de notícia é meramente informação de “eco” e que não ajuda nada em melhorar a discussão pública. Tentar ao máximo buscar avaliar se fatos e informações são verdadeiros ou não por critérios que não tenham relação com eles concordarem com sua visão de mundo (é sempre importante lembrar que os fatos são cruéis e que as vezes o mundo simplesmente não é o que gostaríamos que fosse para se encaixar em nosso discurso). Buscar e valorizar iniciativas de checagem de fatos e preferi-las como fontes de informação, e não sites ideologicamente comprometidos com nossas bolhas. Criticar abordagens que tendem a fechar as bolhas ao invés de favorecer um diálogo mais amplo. Principalmente fazer um esforço individual constante para que pelo menos nós como indivíduos consigamos na medida do possível escapar dessas armadilhas. Buscar se cercar de diversidade de ideias, buscar ao menos individualmente ouvir as narrativas de diversos grupos diferentes, para saber que não estamos nos fechando em um só. A ciência, ao tentar superar suas limitações e seus vieses, consegue um conhecimento importante e poderoso. Talvez nós, enquanto grupos sociais, se nos inspirando no modelo da ciência, conseguiremos também realizações importantes como as dela.

imagem: Daniel Friedman

Autor

  • Bacharel em filosofia, largou um mestrado em filosofia da ciência. Teve formação bem tradicional, mas fugiu para a filosofia analítica. Possui interesse em diversas áreas filosóficas, questões políticas, sociais. Entusiasta da ciência no geral, da economia, e do bom diálogo aberto e democrático com o diferente. Atualmente, está mudando de área de atuação, estudando programação e tentando escrever romances no tempo livre.

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